• Nenhum resultado encontrado

Por causa de seu caráter de depositário da expressão do eu, o diário é, por via de regra, uma narrativa escrita em primeira pessoa, onde o autor conta acontecimentos do seu dia a dia. O diário é um gênero flexível, isto é, não está sujeito a regras rigorosas enquanto a forma ou o conteúdo. Além da anotação de uma data que indique o momento em que foi feito o registro, praticamente nada mais é indispensável para que exista o diário, exceto que as histórias contidas no relato sejam verdadeiras, da mesma forma que as pessoas nele mencionadas. Contudo, basta a análise de alguns exemplos de diário para compreender que o diário dificilmente se sujeita a quaisquer regras e que quase cada diarista pode criar seu próprio sistema de anotação diária21. Assim sendo, podemos chegar a

21 É realmente tão ampla a variedade de formas e métodos de escrita de diário que podemos encontrar, que resulta bastante difícil falar de características fixas que definam o gênero, pois aquilo que é verdade em relação a uns quantos diários, não se cumpre em relação a outros tantos e, contudo, não podemos

48 pensar que existem tantas variedades de diário como autores. E então deparamo- nos com um fenômeno interessante: já que o diário pode ser redigido por pessoas comuns desconhecidas, ou por pessoas célebres (como artistas ou escritores), observamos que o diário adota formas próprias em decorrência da função a ele atribuída por seus autores. Assim podemos afirmar que dentro do gênero de diário existem algumas variedades de diário: os diários autênticos, que seriam aqueles redigidos por pessoas comuns desconhecidas de qualquer profissão, que não têm pretensões literárias e, portanto, não colocam entre seus objetivos a publicação do diário. Ainda dentro deste grupo, aparecem os diários escritos por pessoas comuns que, por exemplo em razão de circunstâncias históricas particulares, tornam-se famosas, especialmente, após a publicação de seu diário que, muitas vezes, pode não ter sido planejada por elas próprias. Entre diários desse tipo temos por exemplo os muito famosos diários de Anne Frank e o diário de Amiel.

negar que todos esses textos sejam um diário. Se pensamos no diário como a narrativa das vivências de um determinado indivíduo, esperamos logo que essa narrativa seja redigida diretamente pela própria pessoa que vive as experiências. Se o redator ou o ponto de vista do narrador passam a ser outros

diferentes do eu, provavelmente estejamos diante de outro dos gêneros da memorialística (uma biografia, umas memórias), mas não de um diário. Contudo, podemos achar diários, por sinal bastante conhecidos, que contrariam essa concepção: o diário de Elena Serguéievna Bulgákova, esposa de Mikhail Afanásievitch Bulgákov é um interessante exemplo disso. Bulgákov, escritor russo cujas relações com o poder soviético foram complicadas, teve seus manuscritos apreendidos em 1926. Entre o material que lhe foi retido, estavam seus diários. Ao que parece, nesse momento o autor resolveu renunciar a manter a escrita de um diário. Hoje é famoso o texto que, em 1933, começou a redigir sua esposa, Elena Serguéievna, começando com as palavras “Micha insiste em que eu escreva este diário. Ele próprio, depois que em 1926 lhe tomaram o diário durante as buscas, deu para si a palavra de nunca mais escrever um diário. Para ele é terrível e inconcebível a ideia de que o diário do escritor pode ser arrebatado” (BULGÁKOVA, 1990, pag. 29). Mas como Bulgákov sentia a necessidade da escrita do diário, pediu a esposa que o escrevesse. E assim, esse que é hoje conhecido como o diário de Elena Bulgákova, é, enquanto o autor esteve vivo, o diário comum dela e do escritor. Em realidade, Elena Serguéievna escreve nele os acontecimentos que tangem a Bulgákov, mas do que a ela própria, e nas suas entradas de diário, até 1940, costumam ser redigidas em primeira pessoa, sim, mas do plural. Após o falecimento de Bulgákov, Elena Serguéievna mantém por muitos anos a escrita do diário que se constitui em uma memória da vida e percurso criativo do autor de Mestre e Margarida, e dos trabalhos que sua esposa teve para preservar essa memória.

49 Outra variedade de diário está constituída pelos diários ficcionais criados por escritores. Esses diários podem ser trechos redigidos em formato de diário que se introduzem no corpo de uma obra artística quando, por exemplo, alguma das personagens redige um diário (como o caso do diário de Pietchórin em O herói de nosso tempo). Também podem ser obras de ficção integralmente redigidas em formato de diário, como O diário de um louco de Nikolai Gógol.

Existe ainda o diário de escritores, sem dúvida, uma das variedades mais produtivas de diário, no sentido de abrigar a maior diversidade quanto a forma e conteúdo. O limite é o talento e a criatividade do autor. Um exemplo significativo é o Diário de um escritor de Fiódor Dostoiévski. Os textos que compõem o diário foram originalmente publicados pelo autor como o texto de uma coluna também chamada “Diário de um escritor” que ele manteve ao longo de muitos anos em vários jornais. Dentro desse diário, Dostoiévski tratava dos assuntos mais variados da atualidade de seu tempo, mas também teve ali espaço para a publicação de textos literários que ganharam fama como textos independentes, como o caso de Bobok, Uma criatura dócil, e O sonho de um homem ridículo. Por outra parte, no diário Dostoiévski é possível também encontrar “uma teoria estética”, como garante Irineu Franco Perpétuo em sua apresentação à mais recente publicação da obra no Brasil.

Com efeito, os estudiosos do gênero de diário coincidem em afirmar que um traço comum aos diários de escritores é o fato de eles constituírem não apenas uma maneira de autoexpressão mas, com frequência, uma oficina criativa na qual

50 podem, de uma maneira ou outra, colocar-se em evidência os planos criativos do