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Capítulo 5: Análise comparativa da representação do caipira

5.3. Euclides e a “rocha viva”.

Voltemos ao ano de 1902, mais precisamente ao dia primeiro de dezembro. O cenário é o Rio de Janeiro, então capital federal. A cidade voltava os olhos para o porto, aguardando a chegada do navio que traria de volta à pátria o Barão de Rio Branco, nobre ainda estimado em tempos republicanos, responsável, dois anos antes, pela expansão do território brasileiro em aproximadamente 260 mil quilômetros quadrados, a região que compreende o atual Estado do Amapá.

Tão entretida estava a cidade em acompanhar a chegada do novo Ministro das Relações Exteriores do Brasil, nomeado por Rodrigues Alves, que pouco reparou na novidade que algumas livrarias traziam em suas vitrines. Mesmo tratando-se de um livro grosso, recheado de mapas e fotografias, os primeiros exemplares expostos de Os Sertões (Campanha de Canudos), escrito pelo estreante Euclides da Cunha não

foram mesmo páreo para o Rio Branco.54

E talvez não tivessem sido jamais notados, não fosse a providencial intervenção do escritor e crítico literário José Veríssimo cuja crítica extremamente positiva ao livro fez com que o retumbante fracasso da estréia se tornasse uma das obras mais comentadas da literatura nacional, ainda mais instigante por sua resistência a deixar- se classificar dentro de um gênero literário. Documentário, crítica, romance histórico ou relato científico? De que se tratava aquele livro, afinal? O fato é que este buscava resgatar não só a história do levante de Canudos, mas também um universo composto por tipos e cenários que há muito eram mantidos em posição desfavorável na escala de valores do povo do litoral, dos habitantes da antiga corte, onde se lia em francês e inglês e muito se sabia sobre as ruas das grandes capitais mundiais, mas pouco ou nenhum contato era feito com a gente do interior, dos sertões, dos grotões perdidos do país.

54 Como descrito por Adelino Brandão na Introdução de Os sertões. São Paulo, Martin Claret, 2003.

Euclides escreve no contexto das idéias de Nina Rodrigues e outras teorias calcadas no argumento de que a amalgamação de raças trazia consigo um forte caráter degenerativo, fazendo com que os distintivos menos interessantes de cada umas se sobrepusessem às qualidades, gerando indivíduos portadores de todo tipo de incapacidade, tendência à demência e à criminalidade. (Lima & Hochman in Maio, 1998) Portanto, a princípio, a mestiçagem seria algo negativo, uma desordem capaz de desfigurar as raças:

A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso.(...) (Cunha, 2003[1902]:110)

No entanto, o sociólogo polonês Ludwig Gumplowicz, autor de quem Euclides se declarava discípulo, seguia em outra direção. Calcado no conceito de singenetismo, o “sentimento da ligação entre todos os membros do bando” (apud Lima, 1997:30), não sendo este necessariamente expresso por laços de consangüinidade, mas sim da sensação de pertencimento ao grupo, o autor se vale de uma premissa diversa da apregoada pelo evolucionismo corrente no período para explicar a luta entre os povos:

A luta das raças pela dominação, pelo poder, a luta sob todas as formas, sob uma forma confessada e violenta ou latente e pacífica, é portanto, o princípio propulsionador propriamente dito, a força motriz da história; mas a própria dominação é o pivô em torno do qual giram todas as fases do processo histórico, o eixo em torno do qual elas se movem pois os amálgamas sociais, a civilização, a nacionalidade e todos os fenômenos mais elevados da história só se revelam em decorrência de organizações de poder e por meio dessas organizações. (idem:31)

Deslocando o foco de análise do biologismo para o político, Gumplowicz abre uma nova perspectiva de entendimento das sociedades que chama a atenção de seu leitor brasileiro, o qual não consegue, contudo, escapar totalmente das idéias que lhe cercavam. Do embate entre a admiração pela proposição antibiologista de Gumplowicz e as doutrinas racistas do final do século XIX, decorre uma outra teoria, não inédita, mas gerada a partir dos ajustes do pensamento do sociólogo polonês ao cenário brasileiro. Aqui veríamos dois desdobramentos possíveis da mestiçagem: a mestiçagem do litoral, que geraria tipos raquíticos e neurastênicos e o caboclo do Norte do país:

Entretanto, a observação cuidadosa do sertanejo do norte mostra atenuado esse antagonismo de tendências e uma quase fixidez nos caracteres fisiológicos do tipo emergente. Este fato, que contrabate, ao parecer, as linhas anteriores, é a sua contraprova frisante. (Cunha, op.cit.:112)

Esta contraprova deve-se ao isolamento que o meio físico proporcionou ao sertanejo. Resguardado pela geografia, manteve-se longe da civilização, que não lhe pôde impor seus vícios, aos quais necessariamente sucumbiria, como acontecera no litoral, devido à fraqueza moral herdada da mestiçagem. O isolamento preservou-os da mistura infinita, resguardando-os como em um cadinho, dentro do qual as reações advindas das misturas genéticas puderam ser mais controladas. Daí concluir Euclides que o isolamento:

(...) destaca fundamentalmente a mestiçagem dos sertões da do litoral. São formações distintas, senão pelos elementos, pelas condições do meio. O contraste entre ambas ressalta o paralelo mais simples. O sertanejo tomando, em larga escala, do selvagem, a intimidade com o meio físico que, ao invés de deprimir enrija o seu organismo potente, reflete, na índole e nos costumes das outras raças formadoras apenas aqueles atributos mais

ajustáveis à sua fase social incipiente. É um retrógrado, não um degenerado. Por isto mesmo as vicissitudes históricas o libertaram, na fase delicadíssima da sua formação, das exigências desproporcionadas de uma cultura de empréstimo, prepararam-no para a conquistar um dia.A sua evolução psíquica, por mais demorada que esteja destinada a ser, tem, agora, a garantia de um tipo fisicamente constituído e forte. Aquela raça cruzada surge autônoma e, de algum modo, original, transfigurando, pela própria combinação, todos os atributos herdados (...) (id. ibid.:113. Grifos meus)

Contudo, segundo Euclides, tal combinação de atributos não está ligada necessariamente a uma configuração física privilegiada:

Sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. (...) É homem permanentemente fatigado. Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo (...). Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. (id. ibid.:115-116)

Diante de qualquer adversidade, este ser molenga e desgracioso se transformaria, assumindo “o aspecto dominador de um titã acobreado e potente”, de postura ereta, compleição forte e gestos magníficos. Desnutrido e forte, sábio e analfabeto, simplório e inteligente, entre os extremos de uma tipização cabocla descrita em termos dualistas, Euclides opta pelos dois planos. O caboclo euclidiano é, ao mesmo tempo, herói e deserdado, um ser seco e maltratado pelo sol, mas portador de uma promessa de resistência latente. Não estamos, é preciso afirmar, diante de uma fala que se assemelhe à máxima que Monteiro Lobato cunharia anos depois (“O Jeca não é assim, está assim”). Em Lobato, o elemento que possibilita ao Jeca elevar-se de seu estado de preguiça e apatias perenes tem caráter exógeno. É a ciência que lhe transformará, calçando-o, curando suas verminoses e doenças, retirando dele o que não lhe serve para que,

via trabalho, possa progredir. Em Euclides, por outro lado, o sertanejo já possui, dentro dele, as características de grande homem, de grande raça e, para que esta se deixasse vislumbrar sempre e não apenas nos momentos de tensão, seria apenas uma questão de tempo. O sertanejo seria o responsável por apagar de vez os traços indesejáveis do selvagem presente no caboclo, aproximando-o da civilização, mas não de uma sociedade corrompida, degenerada, como acontecia no litoral. O tempo deveria ser o responsável pela gestão daquele povo que conquistaria a “cultura de empréstimo”, impondo-lhe o autêntico caráter nacional.

A interpretação euclidiana do singenetismo aplicado aos trópicos, a partir da qual o mestiço, em condições favoráveis (como era o caso do sertanejo) travaria uma luta surda pelo desenvolvimento em si das melhores características recebidas de seus pilares fundadores e, com o curso do tempo, inevitavelmente acabaria por se impor àqueles que, por se tratarem de meros imitadores de civilizações alheias, não estavam verdadeiramente adaptados ao meio em que viviam, é de suma importância para toda a construção da obra. Sem a idéia de que o sertanejo, por suas características atávicas constituía uma “rocha viva”, de dentro da qual uma “raça forte” eclodiria, a denúncia presente em Os Sertões se restringiria à descrição de uma carnificina premeditada, de uma ação política desabonadora do governo, enfim, de algo significativamente menos impactante que a idéia da civilização de empréstimo litorânea havia exterminado um povo que encerraria a quintessência da nacionalidade.

Sem esta idéia, proveniente de um desvio da tese central de Gumplowicz, o ataque a Canudos passava à condição de um luta entre forças diversas, desiguais, mas que se incluiria entre os imemoriais embates movidos pela “força motriz da história”, a luta pelo poder, pela qual os pólos mais fracos estão condenados a desaparecer ou, pelo menos, a serem subjugados pelos mais fortes. A este respeito afirma Luiz Costa Lima:

Não é que a explicação evolucionista impugnasse o tom de denúncia, mas a enfraquecia de maneira taxativa: a

comunidade que ali se trucidara, durante anos numa luta desigual, já estava fadada pela “força motriz da história” a desaparecer. Conquanto a ação do governo republicano haja sido impiedosa ou mesmo criminosa (...) o fato científico cru era que os assassinados tinham curto prazo de vida. A explicação evolucionista não coibia a denúncia, mas a limitava ao aspecto humanitário. (Lima, op.cit.:27)

O problema central que a teoria de Gumplowicz apresentava a Euclides era a idéia de que, no caso do Brasil, a “força motriz da história” seria encarnada por um grupo gerado a partir do amálgama de outros. Isto significava dizer que o pólo mais forte da luta de raças seria mestiço. Ou seja, ou Euclides deveria mostrar-se um bom discípulo, ater-se a seu mestre e reconhecer a vitória da raça mestiça num futuro impreciso, traindo o evolucionismo; ou deveria trair o filósofo polonês, assegurando a vitória aos brancos do litoral, o que equivaleria a dizer que, independentemente do embate apregoado por Gumplowicz, o lado vitorioso fazia-se conhecer pelo evolucionismo das raças. Era, portanto, necessário justificar esse destino de vitória reservado à raça forte do sertanejo a partir de outro parâmetro que não aqueles apregoados pela ciência. “E essa essência [encarnada pelo sertanejo], incompatível seja com a idéia de evolução, seja com a ’cor’ da raça forte, só poderia entrar por uma torção específica: a do mito.” (idem:55)

É a partir desta noção atemporal, que estabelece uma familiaridade com o leitor e que não necessita explicar suas origens, pois “a única maneira de aceitá-lo consiste em responder-lhe afetiva, ainda melhor se passionalmente.” (id.ibid.:56) Desta forma, repousando a essência de sua raça forte num passado mítico Euclides não precisa explicar nada, pois o mito não se explica, o mito apenas é. Assegura-se assim uma raça forte para a formação do Brasil. Seu representante não é apenas um mestiço, é também um ser transcendental. Como afirma C. Lima, poderíamos supor que o caminho pelo qual Euclides envereda viesse a se transformar num beco sem saída, do qual o autor só poderia ter escapado a partir de uma revisão de sua base teórica, mas como não houve tempo para tal,

resta-nos observar os desdobramentos de sua obra que, apesar de não tratar diretamente do caipira (vale lembrar que Euclides se reporta sempre ao sertanejo), influenciou as representações posteriores deste tipo.

5.4. Joaquim Bentinho versus Jeca Tatu: O tipo nacional