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Independência! Originalidade! Personalidade!

44 Disponível no sítio eletrônico:

4.3. Independência! Originalidade! Personalidade!

Às palavras de ordem da Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo de 13 a 18 de fevereiro de 1922 transcritas acima, poderíamos acrescentar mais uma: Identidade! Muito mais do que um evento de artes, a Semana foi uma tentativa, em termos foucaultianos, de inserção do pensamento brasileiro na episteme moderna. O século XX trouxe para o Brasil uma nova maneira de ver o mundo. A incorporação de novas tecnologias industriais, muitas das quais desenvolvidas em virtude da Primeira Guerra Mundial, a crescente urbanização e a presença cada vez maior da máquina na vida cotidiana, fenômenos que já haviam deixado seus rastros na Europa e nos Estados Unidos, ocorriam agora em cidades como São Paulo, cujas ruas ficaram salpicadas de bondes e lâmpadas elétricas, carros de passeio, arranha-céus. Fala-se em “civilização técnica”. Velocidade era a palavra de ordem. Velocidade inclusive de tipos humanos que surgem na paisagem urbana: burgueses, operários, imigrantes convivem com descendentes de escravos ou mesmo ex- escravos. A primeira greve geral (1917) aponta para a futura crise das oligarquias. A arte, no entanto, conseguiu preservar-se ainda durante algum tempo e permanecer pautada, na literatura pela poesia parnasiana, a métrica e a rima; na música pelas óperas italianas do Teatro Municipal e, no teatro, pela tradição francesa. E foi justamente a cidade de São Paulo que veio a sediar duas exposições de pintura que exprimiam de maneira bastante concreta o conceito de arte moderna: a de Lasar Segall, em 1913, e a de Anita Malfatti, em 1917.

O choque causado por Segall foi atenuado pelo fato de ele ser um estrangeiro. Malfatti, por sua vez, não obteve perdão. Sua exposição provocou um verdadeiro alvoroço, cuja extensão podemos medir pelo artigo de Monteiro Lobato publicado na seção de Artes de O Estado de São Paulo, em 20 de dezembro de 1917, intitulado: “Paranóia ou mistificação? - A propósito da Exposição Malfatti.” Nele Lobato afirma:

(...) Embora se dêem como novos, como precursores de uma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal

ou teratológica: nasceu como a paranóia e a mistificação. (...) A única diferença reside em que nos manicômios essa arte é sincera, produto lógico dos cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas zabumbadas pela imprensa partidária, mas não absorvidas pelo público que compra, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo tudo mistificação pura. (...) Estas considerações são provocadas pela exposição da sra. Malfatti (...).Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros ramos da arte caricatural. (...) mas caricatura que não visa, como a verdadeira, ressaltar uma idéia, mas sim desnortear, aparvalhar, atordoar a ingenuidade do espectador.

A reação de Lobato, ele mesmo um “pré-modernista”, crítico dos padrões oficiais de educação e cultura, preocupado com a discussão de temas brasileiros, criador de um estilo próprio foi incompreensível

mesmo para seus contemporâneos,45 mas não deixa de ser um registro

do início, no Brasil, de uma polêmica que, de uma certa maneira, ainda não foi resolvida a respeito da definição do que é arte. Afinal, até onde vai a liberdade de um artista? A arte deve ser a cópia fiel do real? A Semana de Arte Moderna de 1922 realizada no Teatro Municipal de São Paulo foi uma tentativa de levar estas questões para além das discussões nos cafés. Alguns documentos da época nos revelam as reações geradas pelo evento. Menotti Del Picchia, escritor, pintor e escultor participante da Semana de 22 escreveu sobre o evento:

Foi então que, sob o comando dos piquetes de vaia, rompeu no Teatro Municipal a maior assuada que me foi dado ouvir na vida. Uivos, gritos, pateadas no assoalho, risadas, dichotes chistosos ou impertinentes. Um caos! Oswald não se perturbou. Marchou, impávido, para a frente da ribalta. Tomou entre as mãos gordas, mas firmes, as

45 Sabe-se hoje que Lobato nem mesmo foi à exposição e cinco anos mais tarde a sua editora, a Monteiro Lobato e Cia., publicaria um livro de Oswald de Andrade com ilustração de capa de Malfatti.

tiras datilografadas de um capítulo de "Os Condenados" e pôs-se a ler fundindo-se sua voz na gritaria. Em vão tentei restabelecer silêncio e ordem. -Escutem e julguem antes de vaiar!- gritava eu inutilmente. Ninguém obedecia.46

Falava da segunda noite do evento, considerada a mais agitada, mas em todas houve reações do mesmo quilate. O público vaiava um número, aplaudia o subseqüente, fazia miséria. Estava lançada uma polêmica que somente renderia frutos, pois a primeira reação da crítica especializada foi o desprezo. A historiadora Maria Eugenia Boaventura (2000) chama atenção para o fato de os jornais, sobretudo fora de São Paulo, praticamente não terem publicado notícias sobre a Semana, ao passo que os periódicos das colônias estrangeiras (italiana, alemã e francesa) deram uma boa acolhida ao evento. De qualquer forma, a controvérsia gerada pela Semana de 22 conquistou um lugar na história nacional, menos pelas conquistas que seus participantes tenham alcançado no decorrer de suas carreiras, em especial no campo das artes plásticas, e mais pelo pioneirismo na maneira como a crítica à arte acadêmica foi feita.

Os modernistas acusavam a academia brasileira, em especial, de copiar a França e apontavam para as vanguardas: o Futurismo italiano de Marinette, o Expressionismo alemão e mais tarde o Cubismo. Era preciso tirar o pó das artes nacionais e atualizar as linguagens visuais. Apesar de também terem sido formados por esta tradição, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, enfim, os artistas envolvidos na Semana de 22 pareciam estar dispostos a dialogar com a realidade tecnológica exportada pelos Estados Unidos e, a partir desse diálogo, enveredarem por novos caminhos, entre eles o de pensar uma nova identidade nacional. Para tanto foi necessário o resgate de tradições e costumes populares até então renegados a uma espécie de segundo escalão. Havia que se resgatar algo de “nosso” que pudesse se contrapor ao que vinha “de fora” para, a partir deste embate realizar a síntese que traria o novo. Para que a famosa antropofagia apregoada pelos modernistas pudesse acontecer, era

46 apud CASTANHO, Lourenço. Artigo disponível no sítio eletrônico: http://www.lourencocastanho.com.br/biblioteca_boletim.htm

necessário criar este antropófago. A proposta de uma arte posta a serviço da produção de uma brasilidade é vista pelos críticos como o efeito colateral do movimento. Paradoxalmente, enquanto a Semana de 22 cresceu em importância com o passar dos anos, a produção artística de grande parte de seus participantes perdeu a força inovadora ao longo do tempo, presa à missão da busca da identidade nacional, sobretudo se pensarmos nos rumos da obra de alguns autores participantes, como Mario de Andrade.

Não era a primeira vez que as artes se preocupavam com o tema, basta pensarmos nos romances de Alencar e de Aluísio de Azevedo para citarmos dois exemplos da segunda metade do século XIX. Mas era, decerto, a primeira tentativa de se teorizar sobre o assunto. Esse debruçar-se sobre si, essa busca por uma reavaliação do passado, não mais pela via da literatura, esse ensaio de uma normatização da autocrítica era a grande novidade trazida pelos modernistas. A geração de 1930 não deixa de beber na fonte deste projeto, recuperando-o, porém, em termos estritamente acadêmicos.