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O termo apócrifo é usado para definir todos os textos ligados a ensinamentos religiosos que não fazem parte oficialmente da Bíblia. Assim, detalhes essenciais como a vida de Jesus durante sua infância, até o começo de suas pregações, que não são encontrados em nenhum dos quatro evangelhos "oficiais", podem ser apreciados em vários textos apócrifos.

Do grego Apokruphoi, que significa secreto, suas cópias ou, em alguns casos, versões desconhecidas do público, poderiam estar guardadas pelos bibliotecários dos Arquivos Secretos a sete chaves.

Por sua ligação com o gnosticismo, os apócrifos foram considerados heréticos. No começo do cristianismo, quando este ainda não havia atingido o status que possui hoje, vários textos eram consultados pelos fiéis e traziam, em si, muitas idéias que batiam de frente com o que a Igreja considerava de acordo com o cânon, o chamado cânon eclesiástico ou cânon da Igreja.

Nos últimos anos, personagens bíblicos como Judas e Madalena foram apenas dois exemplos que, de uma forma ou de outra, se tornaram mais interessantes e ganharam destaque graças ao conhecimento extraído dos chamados evangelhos apócrifos.

Canônicos X Apócrifos

A palavra cânon, no hebraico qâneh, significava vara ou régua para manter algo em linha reta, algo como a linha ou régua dos pedreiros e carpinteiros. A Igreja produziu, em um processo longo e lento que tomou anos, uma lista de livros que eram aceitos como inspirados, os mesmos que dariam à palavra "cânon" o significado de "conteúdo das escrituras como se encontra nesses livros". Assim, o cânon passou a designar todos os textos considerados de inspiração divina, possuídos de autoridade normativa para a fé cristã. Os demais textos eram considerados "apócrifos".

Há, até hoje, certo receio por parte dos cristãos mais fervorosos, principalmente entre os católicos, em considerar os apócrifos como fonte de informação sobre os personagens bíblicos. E muitos chegam a se manifestar, em diversas páginas na internet, dizendo que tais textos deveriam ser queimados, esquecidos ou simplesmente destruídos.

Tomemos, como exemplo, uma página de um trabalho acadêmico (Bart D. Ehrman. Lost Christianities (em inglês). [S.1.]: Oxford University Press, 2003) que fala sobre o então recém-descoberto Evangelho de Judas. Vejam, só este trecho:

Esse novo-velho "evangelho" reabilita Judas Iscariotes, positivando-o como aquele por quem Cristo pôde ser crucificado. Trata-se de uma antiga idéia gnóstica, raciocínio circular segundo o qual "o mal é útil e necessário para que haja o bem". Na década de 1980 saiu o romance Eu, Judas, de Taylor Caldwell, onde essa versão revisada de Judas foi difundida. Aceitar tal hipótese seria contrariar toda história que sempre descreveu Judas como traidor. Um documento antigo deve ser analisado de vários prismas: deve-se observar a sua

origem, autor e data; depois analisar seu conteúdo, separando o fictício do factual — aqui reside o trabalho mais sério, onde os estudiosos deverão conflitar as informações históricas. Afinal de contas, não é porque esse manuscrito arvora ser Judas um herói que toda a sua biografia será mudada.

O pensamento retrógrado do autor do texto acima é um exemplo clássico da falta de visão que as pessoas têm do valor que esses documentos podem apresentar hoje em dia.

É de estranhar que Madalena e Judas estejam tão em evidência hoje em dia? Ninguém sabe nada sobre eles, e o pouco que se descobre é duramente rechaçado por fanáticos católicos como delírio, heresia e outros adjetivos.

Não se pode deixar de entender que os textos apócrifos são versões que podem ajudar a compreender melhor as atitudes dos personagens bíblicos. Então, por que não levá-las em consideração? Ninguém disse que, pela publicação do Evangelho, Judas Iscariotes deveria levar uma medalha de honra ao mérito ou algo assim, mas que se deveria entender mais as causas que levaram aos atos descritos na Bíblia.

A briga entre canônicos e apócrifos é muito antiga. Quando falamos de Pedro, alguns dos textos apócrifos, que supostamente foram de sua autoria, chegaram a ser admitidos pelos padres da época. Seria mesmo o caso de manter sua proibição e conseqüente destruição? Todos os apócrifos exprimem mesmo heresias? Para que o leitor possa entender melhor essas idéias, vamos analisar um pouco as condições históricas que levaram à escolha dos evangelhos canônicos ou oficiais.

O Concílio de Niceia

Voltemos ao ano de 325 de nossa era. Naquele tempo, foi realizado o Concílio de Niceia, na atual cidade de Iznik, província de Anatólia, na parte asiática da Turquia chamada de Ásia Menor em tempos antigos. Esse foi o primeiro de dois concílios realizados na cidade; o segundo ocorreu em 787.

O primeiro Concílio foi convocado pelo Imperador Flavius Valerius Constantinus (285-337), ou Constantino, filho de Constâncio I. Constantino, chamado de primeiro imperador cristão, assumiu o poder quando da morte de seu pai, em 306, e logo passou a ser a autoridade máxima inicialmente na Bretanha, na Gália, atual França, e na Hispânia, atual Espanha.

Aos poucos, assumiu o controle completo do império romano. Alguns anos antes, no reinado de Domício Aureliano (270-275), os regentes romanos abandonaram a unidade religiosa desde que esse imperador renunciou, em 274, aos seus direitos divinos, próprios desse governo. Constantino, porém, sempre almejou relançar essa unidade religiosa e viu no cristianismo, que então estava em ascensão, uma oportunidade para alcançar esse objetivo.

Hoje muitos historiadores que analisaram seu governo são unânimes em dizer que sua conversão não foi tão completa assim, pois ele não abria mão de sua posição como sumo sacerdote do culto ao "Sol Invictus", representação do deus persa Mitra, e só foi batizado em seu leito de morte. De fato, alguns elementos desse culto seriam depois absorvidos pelo cristianismo, como a comemoração do Natal em 25 de dezembro.

Assim, o interesse principal de Constantino no cristianismo seria mesmo usá-lo para fortalecer sua monarquia. Tinha certo conhecimento da doutrina cristã e observou, durante o ano de 303, as perseguições impostas pelo imperador Diocleciano. Tinha noção de que os cristãos, embora fossem minoria, chegavam a no máximo 10% da população do império e estavam concentrados em grandes centros urbanos, principalmente em territórios inimigos.

Então, em 325 convocou mais de 300 bispos para o Concílio de Niceia. O imperador, sempre de olho na unidade religiosa como um fator que o ajudaria a manter o poder, tinha noção da existência de divisões dentro da nova religião. Esse concilio deveria, assim, estruturar de uma vez por todas seus poderes. Entre os participantes estavam bispos orientais que, como era costume, estavam em maioria, entre eles pelos menos três arcebispos, Alexandre de Alexandria, Eustáquio de Antióquia e Macário de Jerusalém, além das presenças de Eusébio de Nicomédia e Eusébio de Cesareia. Representando o Ocidente estavam Marcus

de Calábria (Itália), Cecilian de Cartago (África), Hosius de Córdova (Espanha), Nicasius de Dijon (França) e Domnus de Stridon (no Danúbio).

Os debates começaram. Entre os vários pontos discutidos na ocasião, estava a questão ariana, que negava a equivalência de Jesus e Deus, colocando Cristo como um homem, e não uma divindade; a celebração da Páscoa; o cisma de Milécio, fundador da Igreja dos Mártires; o batismo de heréticos e o estatuto dos prisioneiros na perseguição realizada sob o comando de Licínio, imperador romano destronado e condenado à morte pelo próprio Constantino.

A escolha dos evangelhos canônicos

Foi nesse mesmo concílio que aparecem as versões da escolha dos evangelhos canônicos. No início do cristianismo, havia o absurdo número de 315 textos. A versão oficial de como foi feita essa escolha é registrada em alguns documentos. Porém, mesmo que se trate de versões históricas, quando alguém as lê sente como era difícil ser prático e direto naqueles dias e não deixar o fanatismo tomar conta das decisões a serem tomadas.

Vejamos como isso teria acontecido. Na difícil missão de escolher quais seriam os textos "inspirados por Deus", os bispos teriam espalhado os diversos textos no chão e se reunido para rezar. Então, durante o ato, os quatro evangelhos que conhecemos hoje (Mateus, Marcos, Lucas e João) levantaram-se por si mesmos e foram se depositar no altar.

Outra versão é que todos os textos foram colocados no altar e somente os não inspirados, os apócrifos, caíram por si mesmos no chão. Uma terceira versão fala sobre a mesma passagem de oração, o momento quando o Espírito Santo adentrou no recinto em forma de pomba, passando por uma vidraça sem quebrá- la. Em seguida, pousou no ombro direito de cada um dos bispos presentes e cochichou em seus ouvidos quais eram os evangelhos canônicos.

Misteriosamente, a Igreja escolheu quatro textos que, fechados em si mesmos, trazem contradições. Mas parece simplesmente desconsiderar esse detalhe e insiste em manter seu cânon baseado neles. A julgar pela explicação dos religiosos da época, acredita-se que nem mesmo eles saberiam se explicar de

maneira convincente. Veja-se a declaração que Irineu, bispo de Lyon, deu para explicar a seleção:

O evangelho é a coluna da Igreja, a Igreja está espalhada por todo o mundo, o mundo tem quatro regiões, e convém, portanto, que haja também quatro evangelhos. O evangelho é o sopro do vento divino da vida para os homens, e pois, como há quatro ventos cardeais, daí a necessidade de quatro evangelhos. [...] O Verbo criador do Universo reina e brilha sobre os querubins, os querubins têm quatro formas, eis porque o Verbo nos obsequiou com quatro evangelhos. Mas há registros históricos que mostram que nem tudo foi inspirado por Deus nessa escolha. Há, por exemplo, um texto que fala sobre um tal bispo Flávio, que durante os debates morreu vítima de ferimentos causados pelos pontapés desferidos por um bispo Diodoro, ocorrido no Concílio de Trento, considerado o mais longo da história da Igreja. Isso entre outros incidentes registrados. A autora Lorraine Boetner cita, em sua obra Catolicismo Romano:

O papa Gregório, o grande, declarou que primeiro Macabeus, um livro apócrifo, não é canônico. O cardeal Ximenes, em sua Bíblia poliglota, exatamente antes do Concílio de Trento, exclui os apócrifos e sua obra foi aprovada pelo papa Leão X. Será que estes papas se enganaram? Se eles estavam certos, a decisão do Concílio de Trento estava errada. Se eles estavam errados, onde fica a infalibilidade do papa como mestre da doutrina?

Claro que os concílios, longe de ser uma unidade de opiniões, eram um campo de batalha de idéias e, por vezes, de socos e pontapés, semelhante aos debates vistos no livro e no filme O nome da rosa, de Umberto Eco. Porém, ao contrário do que se lê em O código da Vinci, de Dan Brown, não houve nenhum tipo de concurso para escolha dos evangelhos, mas sim debates acalorados e por vezes confusos, cujo objetivo era mesmo diferenciar os textos entre inúmeros oriundos de escolas gnósticas.

Lembre-se que estamos falando de uma época em que havia interesses de ambos dos lados, tanto do imperador, que queria essa unidade religiosa, quanto dos próprios cristãos, que estavam cansados de perseguições e queriam tornar sua religião bem-estruturada.

Os critérios de escolha

Havia vários critérios aprovados pelos bispos de então. Claro que muitos são difíceis de compreender, mas alguns falam por si mesmos. Vejamos estes:

1) Apostolicidade — A obra deveria ter sido escrita por um apóstolo ou alguém de contato próximo que o tenha escrito a pedido do apóstolo.

2) Circulação — Como era muito difícil provar o primeiro ponto, partiam então para a análise da circulação e do uso do texto pela comunidade.

3) Caráter concreto — O conteúdo não pode contrariar os padrões da ortodoxia, e seu caráter ficcional pode torná-lo ser inaceitável.

4) Ortodoxia — Aceitação pela liderança da Igreja, mais especificamente pelo bispo encarregado de determinada cidade ou região.

5) Autoridade diferenciada - Textos que eram reconhecidos pela comunidade que os usava como de inspiração divina.

6) Leitura em público - Deveriam ser lidos para o maior número de pessoas e não ser mantidos em segredo.

Versões diferentes

Para quem tiver um tempo e curiosidade, uma maneira de conhecer as diferenças entre apócrifos e canônicos é analisar as várias versões da Bíblia existentes entre edições católicas e protestantes. Mesmo quando a Reforma Protestante eclodiu na Europa, a questão de como manter o livro sagrado cristão não teve descanso. Vejamos apenas uma passagem. Os protestantes combatiam violentamente alguns conceitos muito divulgados pelos católicos, como a existência do

purgatório, o uso de orações pelos mortos e salvação por meio de obras materiais.

Desesperados para poder combater a crescente adesão dos fiéis ao movimento protestante, os católicos aprovaram alguns livros que eram considerados apócrifos, como Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruque, I e II de Macabeus. A maioria, como se pode reparar, apócrifos do Velho Testamento. Vejamos o seguinte quadro de comparação:

Diferenças entre as bíblias hebraica, protestante e católica