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5 EVANGELHOS SINÓTICOS

No documento CONHECENDO JESUS CRISTO (páginas 40-61)

Os evangelhos sinóticos, Mateus, Marcos e Lucas, são assim denominados pois nos apresentam o Senhor de um modo mais similar quanto à forma que utilizam.

Assim, syn+optico, significa que Mateus, Marcos e Lucas, se dispostos em três colunas paralelas (sinopse), podem ser compreendidos de um só relance de vista com conteúdos muito similares. João, por outro lado, possui uma maneira mais desenvolvida e espiritual, por se tratar de um escrito do final do I século, quando a comunidade já estava mais desenvolvida na compreensão de sua fé na identidade de Jesus Cristo e na sua relação com o Pai e o Espírito.

Conforme a teoria exegética das duas Fontes Sinópticas, comparando os textos dos três primeiros evangelhos entre si, Mateus e Lucas, de modos coincidentes, citam passagens de Marcos e, também, coincidem na citação de ditos (loghions) de Jesus que não estão em Marcos.

Assim, essa fonte de loghions foi denominada em

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alemão por “Quelle” (fonte), significada por Q.

Assim temos o esquema:

Nesse sentido, Q, é uma fonte hipotética, reconstituída a partir da análise dos Evangelhos Sinóticos.

*MARCOS (Roma,70 dC- III geração)

O evangelho segundo Marcos é o mais antigo. Possui linguagem mais arcaica, refletindo as crenças populares da cultura da época. Sua sonoridade se torna cacofônica pela insistente repetição dos conectivos KAY (e) para ligar as frases e orações do seu texto. No entanto, Marcos é o iniciador do evangelho como gênero literário.

Ressalta a humanidade de Jesus. As paixões humanas do Nazareno são enfatizadas na Sua apresentação. Ele geme e suspira (7,34;

8,12); indigna-se e entristece-se (3,5); parece

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estar fora de si, pela sua total entrega ao ministério (3,21); ama e acolhe as crianças (9,36;10,16); expulsa os mercadores do templo (11,15ss); sofre física e moralmente na Sua Paixão e morte (14, 32-42).

Marcos apresenta Jesus como “o Filho do Homem”. Na cultura bíblica, essa expressão tem o significado de “criatura humana” (Ez 5,1; Ez 13,2), porém, em Daniel 7, 13s é uma figura messiânica-escatológica, ao centro da história da humanidade. Em Marcos, tal expressão está associada à profecia do Servo do Senhor de Isaias 52, 13-53,12. (cf. Mc 10, 45).

Nesta preferência pelo título “Filho do homem” dado a Jesus, associada à profecia do Servo, Marcos ressalta o tema do segredo messiânico. Jesus prefere não aplicar a si o título de Messias/Cristo, recomendando silenciar quem lhe pretende divulgar como Messias, pois tem consciência de que a sua missão messiânica não se confunde com os anseios de seu povo por um messias-davídico, político e belicoso, mas como Servo do Senhor, que redime e liberta a humanidade por seus sofrimentos, em obediência a Deus.

Mesmo os discípulos de Jesus não conseguiram compreender isso no seu convívio com o Nazareno, senão após a sua morte e ressurreição com a efusão do Espírito Santo sobre a Igreja nascente. (cf: 1, 10-45; 4, 10-13; 5, 1-43;

6, 33-44. 52).

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Marcos destaca o título cristológico

“Filho de Deus” (1,1. 11; 3,11; 5,7; 9,7; 14, 61s;

15,39), tais títulos acompanham os milagres operados por Cristo. Jesus é, assim, um verdadeiro homem que age com a dynamis(poder) divina. No entanto, Jesus não é apresentado como um grande profeta como os do Antigo Testamento – Moisés e Elias – que também realizaram prodígios em nome de Deus.

Jesus é apresentado como o Filho de Deus em sentido próprio, concede o perdão divino aos seres humanos, destruindo o poder do pecado e do mal ao cumprir a Aliança no Seu sangue, por Sua Paixão, morte e ressurreição, dando a vida como Servo do Senhor, para a remissão dos pecados do mundo.

O Evangelho escrito por Marcos é um caminho de seguimento de Jesus onde, no relacionamento íntimo com o Mestre, a comunidade dos discípulos ruma ao mistério da cruz e do sepulcro vazio, com a boa nova da ressurreição; assim, os discípulos vão compreendendo a identidade de Jesus como Cristo-Servo e Filho de Deus.

*MATEUS (Síria, após 70 dC, aos judeus)

Mateus ou Levi, o cobrador de impostos que, ao chamado de Jesus, ergueu-se da sua sede na coletoria e, deixando tudo, seguiu

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o Mestre. Sendo contado entre os doze apóstolos, escreveu o evangelho para uma comunidade de hebreus convertidos a Jesus Cristo, radicados na Síria, após a Guerra Judaica que culminou no ano 70, com a tomada de Jerusalém. Os Padres da Igreja, Papias e Eusébio de Cesaréia registraram que a primeira recensão do seu evangelho, datando de próximo ao ano 50, foi escrita em hebraico; tal recensão está perdida.

Mateus, adequando-se aos seus destinatários, cita aproximadamente 43 vezes o Antigo Testamento para comprovar, com base nas Sagradas Escrituras do povo hebreu, que Jesus é o Messias prometido na Lei e nos Profetas, pois Ele cumpre em si e na sua ação as Profecias e Figuras escriturísticas, iluminando-as e levando-as ao seu termo.

Ao princípio deste evangelho, Jesus é apresentado numa genealogia como descendente de Davi e de Abraão, cumprindo as promessas messiânicas feitas por Deus a eles.

Nesse sentido, enfatiza-se a majestade de Jesus, evitando referências a paixões e sentimentos em Jesus, ou a algo que sugira limitação humana no Mestre. Dá-se muita ênfase aos milagres operados por ele sobre o ser humano, as forças naturais e sobrenaturais, realçando o tema da Sua onisciência. Utiliza-se por 13 vezes a expressão “prostrar-se” perante Jesus, indicando sua majestade divina.

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No Sermão da montanha (5-7), Jesus se mostra maior que Moisés, o legislador-libertador do povo de Israel; é Jesus mesmo que, sentado sobre o monte, emana a nova Lei que leva à perfeição a Lei mosaica.

Em 16,16 e 26, 65, Jesus é apresentado como Cristo e Filho do Deus vivo.

Na sua paixão e morte, na sua ressurreição, o véu do templo rasgado representa a Revelação de Deus em Cristo, que se faz projeto universal de salvação pelo ministério da Igreja, que anuncia o Evangelho e batiza em nome de Deus uno-trino, integrando todos os povos na Igreja de Cristo.

*LUCAS (Antioquia da Síria, entre 80-95 dC)

Situando seu ambiente teológico em torno de Jerusalém e do Templo, a obra de Lucas, em sintonia com a teologia paulina e a tarefa do anúncio do evangelho aos povos, faz tal realce na apresentação da Boa Nova de Jesus Cristo ao mundo da época, quando a cultura pagã e hebraica ansiava por salvação.

Assim, Jesus Cristo é apresentado como soterion (a Salvação) de Deus para todos os povos (2, 32). Ele traz e dispensa a salvação;

assim o faz, pois manifesta o amor salvador do Pai a toda humanidade. Neste evangelho, a

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genealogia de Jesus remonta até Adão, o primeiro homem, e deste ao próprio Criador (3, 23-38).

Ao encarnar-se, por obra do Espírito, no seio da Virgem, a cheia de graça, o Filho do Altíssimo recebe o nome de Jesus (O Senhor salva), iniciando a libertar a humanidade, que Ele mesmo assume neste mistério.

Jesus é apresentado por Lucas, com ênfase no seu perfil missionário e misericordioso, aberto aos samaritanos, detestados pelos judeus (9, 57s; 17,18; 10, 29-37) e a todos os povos (13, 29s), revelando, em sua ação, o rosto misericordioso de Deus, o Pai (7, 36-50; 15, 1-32;

19, 1-10; 23, 29-43).

A Jesus é dado o título de Kýrios (Senhor) que, na tradução grega do Antigo Testamento, a Septuaginta, substituía o Nome santo e impronunciável que Deus revelou a Moisés (Êx 3, 14) e se encontra grafado no texto hebraico, mas aí se lê “Adonai” (Senhor) quando ocorre. Tal título dado a Jesus mostra o florescer, nas comunidades paulinas e lucanas, da consciência da singularidade divina da filiação de Jesus Cristo para com Deus, o Pai.

Quando em 1,43, Maria é chamada por

“Mãe do meu Senhor (=Kýrios), já está em germe a fé da Igreja na maternidade divina de Maria, pois Jesus Cristo é O Filho de Deus, portanto compartilha a natureza divina com o Pai e o Espírito Santo.

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O Espírito Santo tem sua ação fortemente acentuada neste evangelho, desde os relatos da infância de Jesus. Também na sua exultação messiânica e ministério (10, 21s), que o Revela “Filho de Deus”, é o Espírito quem o move.

Lucas enfatiza mais o título de “Filho de Deus” que o de “Cristo”, pela acidental conotação político-belicosa que evocava, no primeiro século.

Na cruz, Jesus reintegra no Paraíso, no hoje de Deus, o pecador arrependido. O Hoje é o Kayrós, tempo da graça de Deus, para a Salvação do ser humano através de Cristo. O encontro com o Cristo Ressuscitado dos peregrinos de Emaús mostra a presença do Senhor junto à comunidade, nos discípulos, congregada em torno da Palavra ouvida na Igreja e na Fração do Pão que, em Atos, está evidenciada claramente como a Eucaristia.

O relato da ascensão em Jerusalém, além de fazer a ponte entre o final do Evangelho e o início dos Atos dos apóstolos, evoca a figura do sumo sacerdote no templo de Jerusalém que abençoa o povo, após oferecer o sacrifício. Assim, já há um início de compreensão do sacerdócio de Jesus.

6 JOÃO E APOCALIPSE

Concluído no início do segundo século, o quarto evangelho não cita entre os discípulos

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João, filho de Zebedeu, como o fazem os sinóticos, outrossim, reporta-se ao “discípulo que Jesus amava”.

No Prólogo deste evangelho, bem como na primeira carta de João, o ancião, também no Apocalipse, Jesus Cristo é apresentado com o título de Lógos (Palavra) de Deus (Jo 1, 1-14; 1Jo 1,1s; Ap 19, 13).

Essa palavra grega possui um triplo significado, evocando três realidades conexas.

Conforme Bettencourt (p.29):

1) o intelecto, 2)o conceito formulado pelo intelecto (também dito ‘ideia’,

‘noção’) e 3) a palavra oral que exprime o conceito mental. Ora, no quarto evangelho, S. João utiliza o termo grego Lógos, já em uso na Filosofia grega pré-cristã, para designar a Palavra de Deus que, feita carne, falou aos homens.

Na tradição vetero-testamentária, a Palavra de Deus é dita Dabar, é a palavra-ação;

quando Deus fala, nessa mesma enunciação, o evento enunciado é criado, acontece (cf: Gn 1; Is 55, 10s; Sb 18, 14-16). Nessa mesma cultura, Lógos também evoca a personificação da Sabedoria (Lochman) de Deus (cf: Sb 7, 25s), pré-existente ao criado.

Assim, a Cristologia descendente se apresenta nos escritos joaninos, pois o Lógos

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existente em Deus, Filho unigênito voltado para o seio do Pai, entra na história assumindo a condição de homem, para redimir todo o ser humano e todo o cosmo, revelando o plano amoroso de salvação do Pai.

Jesus Cristo é, então, o Lógos divino que se fez carne, assumindo a condição humana e, nela, o mundo, através do Amor. Ele é a Verdade que liberta e reintegra na comunhão com o Pai; eterno e uno com o Pai, revelando-Lhe e prometendo o Espírito Santo (8, 24.28.58; 10, 30.38; 14, 9s. 16; 15, 26; 16,14).

A relação de Jesus com a comunidade dos discípulos é apresentada num contato imediato, como comunhão e participação, (o bom pastor: Jo 10; a Videira verdadeira: Jo 15); no entanto, o capítulo 21 nesse Evangelho, ressalta a necessidade e a divina instituição do serviço da autoridade representado pelo ministério petrino, como cuidado aos discípulos oriundo do amor a Cristo.

Jesus se manifesta como o salvador do mundo, contra satanás, “príncipe deste mundo”, e seu séquito (cf: 8, 44; 12, 31). Jesus manifesta e opera o amor de Deus Pai para a salvação universal (cf: 3, 16; 10, 10; 11. 25s), pela fé no Seu Verbo encarnado e glorificado e, pela permanência no preceito do amor, sob a assistência do Espírito Santo, como filhos através do Filho (Jo 15, 9.15;

1Jo3, 1-3; 1Jo4, 9s).

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Na Sua Páscoa, Jesus forma a comunidade dos discípulos sob a cruz e como dom do seu mistério pascal lhes transmite o perdão e a paz, com a expiração do Espírito Santo (Jo 19-20).

Maria, a mãe de Jesus, é ressaltada nos capítulos 2 e 19 do IV evangelho, como a

“Mulher”, mãe da Nova humanidade, mãe dos discípulos amados; Em Apocalipse 12, ela é enfatizada como o protótipo da Igreja.

7 CRISTOLOGIA PAULINA (catequese de Bento XVI)

O Apóstolo Paulo (Saulo), natural de Tarso, com cidadania romana, formado na Escola rabínica de Gamaliel e membro do partido dos fariseus, perseguiu a Igreja de Deus (cf. Gl 1, 13), porém, no meio do seu caminho, o Ressuscitado mostrou-se a ele provocando-lhe a conversão.

De fato, Cristo, em seu mistério pascal, já começara a manifestar-se a ele através da paixão do proto-mártir Estevão (cf. At 7), que reproduziu a paixão do Senhor.

A partir da manifestação do ressuscitado, Saulo foi iniciado no caminho dos discípulos; batizado por Ananias (cf. At 9, 18), recebeu a tradição apostólica e a imposição das mãos (cf. Gl 2, 7-10; At 13, 2s), sendo feito apóstolo para o anúncio do Evangelho às nações.

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Paulo recebeu o martírio em Roma, por volta do ano 64, na perseguição de Nero, quando também foi martirizado o apóstolo São Pedro.

Abaixo, cito na íntegra, a IX catequese do Papa Bento XVI sobre o apóstolo São Paulo, na qual o então pontífice tratou especialmente da cristologia do apóstolo dos gentios. Esta ocorreu na Audiência Geral de 22 de outubro de 2008.

Segue, o texto:

“A importância da cristologia - Preexistência e encarnação

Prezados irmãos e irmãs

Nas catequeses das semanas passadas, meditamos sobre a "conversão" de São Paulo, fruto do encontro pessoal com Jesus crucificado e ressuscitado, e interrogamo-nos sobre qual foi o relacionamento do Apóstolo das Nações com o Jesus terreno. Hoje, gostaria de falar do ensinamento que São Paulo nos deixou acerca da centralidade de Cristo ressuscitado no mistério da salvação, sobre a sua cristologia. Na verdade, Jesus Cristo ressuscitado, "exaltado acima de todos os nomes", encontra-se no âmago de toda a sua reflexão. Para o Apóstolo, Cristo constitui o critério de avaliação dos acontecimentos e das realidades, a finalidade de todo o esforço que ele realiza para anunciar o Evangelho, a grande paixão que sustém os seus passos pelos caminhos do mundo. E trata-se de um Cristo vivo, concreto: o Cristo, diz Paulo, "que me amou e se entregou a si mesmo por mim" (Gl 2, 20).

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Esta pessoa que me ama, com a qual eu posso falar, que me ouve e me responde, ela é realmente o princípio para compreender o mundo e para encontrar o caminho na história.

Quem leu os escritos de São Paulo sabe bem que ele não se preocupou em narrar os simples acontecimentos em que se articula a vida de Jesus, embora possamos intuir que nas suas catequeses narrou muito mais sobre o Jesus pré-pascal de quanto escreveu nas suas Cartas, que constituem admoestações em situações específicas. A sua intenção pastoral e teológica estava tão orientada para as comunidades nascentes, que lhe era espontâneo concentrar todo o anúncio de Jesus Cristo como "Senhor", vivo e presente agora no meio dos seus. Daqui, a essencialidade característica da cristologia paulina, que desenvolve as profundidades do mistério com uma preocupação constante e específica: sem dúvida, anunciar Jesus vivo, o seu ensinamento, mas anunciar sobretudo a realidade central da sua morte e ressurreição, como ápice da sua existência terrena e raiz do sucessivo desenvolvimento de toda a fé cristã, de toda a realidade da Igreja. Para o Apóstolo, a ressurreição não é um acontecimento independente, desvinculado da morte: o Ressuscitado é sempre aquele que, primeiro, foi crucificado. Também como Ressuscitado tem as suas feridas: a paixão está presente nele e pode-se dizer com Pascal que Ele é sofredor até ao fim do mundo, embora seja o Ressuscitado e viva conosco e para nós. Esta identidade do Ressuscitado com Cristo crucificado, Paulo compreendeu-a no encontro no caminho de Damasco:

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naquele momento, revelou-se-lhe claramente que o Crucificado é o Ressuscitado, e o Ressuscitado é o Crucificado, que a Paulo diz: "Por que me persegues?"

(Act 9, 4). Paulo persegue Cristo na Igreja, e então compreende que a cruz não é "uma maldição de Deus"

(Dt 21, 23), mas sim um sacrifício para a nossa redenção.

O Apóstolo contempla fascinado o segredo escondido do Crucificado-Ressuscitado e, através dos sofrimentos experimentados por Cristo na sua humanidade (dimensão terrena), remonta àquela existência eterna em que Ele é um só com o Pai (dimensão pré-temporal): "Quando chegou a plenitude dos tempos, ele escreve, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à Lei, para resgatar aqueles que estavam sob o jugo da Lei e para que recebêssemos a adoção de filhos" (Gl 4, 4-5). Estas duas dimensões, a preexistência eterna no Pai e a descida do Senhor na encarnação, anunciam-se já no Antigo Testamento, na figura da Sabedoria.

Encontramos nos Livros sapienciais do Antigo Testamento alguns textos que exaltam o papel da Sabedoria preexistente à criação do mundo. É neste sentido que devem ser lidos trechos como este, do Salmo 90: "Antes que nascessem as montanhas, e se transformassem a terra e o universo, desde os séculos dos séculos Vós sois, ó Deus" (v. 2); ou trechos como aquele que fala da Sabedoria criadora: "O Senhor criou-me como primícias das suas obras, desde o princípio, antes que criasse qualquer coisa. Desde a eternidade fui constituída, desde as origens, antes dos

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primórdios da terra" (Pr 8, 22-23). É sugestivo também o elogio da Sabedoria, contido no livro homônimo: "A Sabedoria estende o seu vigor de uma extremidade à outra e governa o universo com suavidade" (Sb 8, 1).

Os próprios textos sapienciais que falam da preexistência eterna da Sabedoria, falam também da descida, da humilhação desta Sabedoria, que construiu para si uma tenda no meio dos homens. Assim, já sentimos ressoar as palavras do Evangelho de João, que fala da tenda da carne do Senhor. Construiu para si uma tenda no Antigo Testamento: aqui está indicado o templo, o culto segundo a "Torá"; mas do ponto de vista do Novo Testamento, podemos compreender que esta era uma prefiguração da tenda muito mais real e significativa: a tenda da carne de Cristo. E já vemos nos Livros do Antigo Testamento que esta humilhação da Sabedoria, a sua descida na carne, implica também a possibilidade da sua rejeição. Desenvolvendo a sua cristologia, São Paulo refere-se precisamente a esta perspectiva sapiencial: reconhece em Jesus a sabedoria eterna existente desde sempre, a sabedoria que desce e constrói para si uma tenda no meio de nós e, assim, ele pode descrever Cristo como "poder e sabedoria de Deus", pode dizer que Cristo se tornou para nós

"sabedoria por obra de Deus, justiça, santificação e redenção" (cf. 1 Cor 1, 24-30). De modo análogo, Paulo esclarece que Cristo, da mesma forma como a Sabedoria, pode ser rejeitado sobretudo pelos dominadores deste mundo (cf. 1 Cor 2, 6-9), de tal modo que se pode criar, nos desígnios de Deus, uma

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situação paradoxal, a cruz, que se transformará em caminho de salvação para todo o gênero humano.

Um ulterior desenvolvimento deste ciclo sapiencial, que vê a Sabedoria humilhar-se para depois ser exaltada, não obstante a rejeição, verifica-se no famoso hino contido na Carta aos Filipenses (cf. 2, 6-11). Trata-se de um dos textos mais excelsos de todo o Novo Testamento. Na sua esmagadora maioria, os exegetas já concordam em considerar que essa perícope apresenta uma composição precedente ao texto da Carta aos Filipenses.

Esse é um dado de grande importância, porque significa que, antes de Paulo, o judeu-cristianismo acreditava na divindade de Jesus. Em síntese, a fé na divindade de Jesus não é uma invenção helenista, surgida muitos anos depois da vida terrena de Jesus, uma invenção que, esquecendo-se da sua humanidade, Tê-lo-ia divinizado; na realidade, vemos que o primeiro judeu-cristianismo acreditava na divindade de Jesus;

aliás, podemos dizer que os próprios Apóstolos, nos principais momentos da vida do seu Mestre, compreenderam que Ele é o Filho de Deus, como São Pedro disse em Cesareia de Filipe: "Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo" (Mt 16, 16). Todavia, voltemos ao hino da Carta aos Filipenses. A estrutura desse texto pode ser articulada em três estrofes, que explicam os momentos principais do percurso realizado por Cristo.

A sua preexistência é expressa pelas palavras: "Ele, que era de condição divina, não reivindicou o direito de ser equiparado a Deus" (v. 6); segue-se, então, a humilhação voluntária do Filho, na segunda estrofe:

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"Despojou-se a si mesmo, tomando a condição de servo" (v. 7), humilhando-se a si mesmo, "fazendo-se obediente até à morte, e morte de cruz" (v. 8). A terceira estrofe do hino anuncia a resposta do Pai à humilhação do Filho: "Por isso é que Deus O exaltou e lhe deu um nome que está acima de todo o nome" (v. 9).

O que surpreende é o contraste entre a humilhação radical e a sucessiva exaltação na glória de Deus. É evidente que essa segunda estrofe está em contraste com a pretensão de Adão, que queria ser Deus; está também em contraste com o gesto dos construtores da torre de Babel que, sozinhos, desejavam edificar a ponte para o céu e fazer-se, eles mesmos, divindades.

Mas essa iniciativa da soberba terminou na autodestruição: não é assim que se chega ao céu, à verdadeira felicidade, a Deus. O gesto do Filho é exatamente o contrário: não a soberba, mas a humildade, que é realização do amor, e o amor é divino. A iniciativa de humilhação, de humildade radical de Cristo, com a qual contrasta a soberba humana, é realmente expressão do amor divino; segue-se-lhe aquela elevação ao céu, à qual Deus nos atrai mediante o seu amor.

Além da Carta aos Filipenses, existem outros lugares da literatura paulina onde os temas da

Além da Carta aos Filipenses, existem outros lugares da literatura paulina onde os temas da

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