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A EVANGELIZAÇÃO DE UMA REGIÃO MORAL

No documento hugofelipequitela (páginas 41-45)

Mapa 1 – Região Santa Cecília e Largo do Arouche

1 INTRODUÇÃO

2.1 A EVANGELIZAÇÃO DE UMA REGIÃO MORAL

Ao ampliar meu campo de pesquisa para São Paulo, transitei por mapas culturais muitos distintos e estranhos a mim; no início, a cidade era apenas um somatório de pontos turísticos e points noturnos pouco familiar e, consequentemente, muito impessoal. Diferente de Vitória, que é um domínio sociocultural bem compreendido e reconhecido por mim, precisei me familiarizar e reconhecer as paisagens urbanas de São Paulo aos poucos. Foi a partir desse momento de maior familiaridade com a paisagem sociocultural de São Paulo que consegui mapear a presença de três igrejas inclusivas localizadas numa região moral da área central da cidade. Região moral essa já identificada na destacada etnografia realizada por Nestor Perlongher com michês paulistanos, ainda na primeira metade da década de 1980.

Perlongher (1987) faz referência a Robert Park, proeminente sociólogo da Escola de Chicago, quando este propõe a noção de região moral para designar como nas cidades, especialmente em grandes centros, o isolamento entre as populações urbanas não se dá apenas por atributos profissionais ou econômicos, mas também por gostos ou temperamentos. Para Park (1973), dentro da dinâmica e organização da vida na cidade, a região moral é aquela em que as pessoas se encontram para a diversão por compartilharem as mesmas paixões e por serem movidos pelos impulsos latentes e, às vezes, incontroláveis. Essas regiões surgem pela própria heterogeneidade e característica ambivalente que os grandes centros apresentam, pois ora são restritivos, ora são permissivos. De modo geral, uma região moral é assinalada pela presença de identidades excêntricas, pois se caracteriza por um código moral divergente.

Perlongher (1987) faz uma particular apropriação do conceito de região moral proposto por Park para identificar áreas do centro de São Paulo que, já no início dos anos de 1980, caracterizavam-se por serem espaços de grande circulação e habitados por pessoas com identidades sexuais e de gênero dissidentes, como o Largo do Arouche. Perlongher apontou para o fato, na época, de o Largo do Arouche ser um ponto particularmente sensível do centro da capital paulista, pois era uma área residencial de classe média; vizinhança que apoiou, em boa medida, a operação policial de “limpeza” da área, que ficou conhecida como “Operação Richetti” (PERLONGHER, 1987, p. 91). O autor traz relatos e reportagens da época e mostra como essa operação foi violenta por parte da polícia e com grande apoio de comerciantes e moradores locais. Perlongher diz que o resultado desse trabalho de “limpeza” “foi a supressão do Largo do Arouche como ponto de concentração das populações homossexuais” (1987, p. 99). Houve um deslocamento da população LGBT, que nessa região habitava e circulava, para outras áreas adjacentes ao Arouche.

Passadas quase quatro décadas da etnografia realizada por Perlongher, é possível afirmar que a higienização desejada da região do Arouche em relação à população LGBT não se efetivou, pois ela ainda é reconhecida como um espaço de sociabilidade dessa população e de uma certa cena underground de São Paulo. Contrastando com essa geografia do pecado (OLIVEIRA, 2017), há inúmeros templos de igrejas evangélicas convencionais (Assembleia de Deus, Adventista, Internacional da Graça, Batista etc). Todavia, nos últimos anos, é possível perceber outro movimento nessa área da cidade - ainda que aparentemente discreto, mas não imperceptível - de igrejas evangélicas inclusivas. Foi nesse mesmo local que, em minha incursão, notei certa concentração de igrejas evangélicas inclusivas. São elas: a CCNE, a ICM e a Cidade de Refúgio, que se localizavam no bairro de Santa Cecília, no centro de São Paulo, próximas à praça da República, lugar conhecido pela prostituição masculina, e do Largo do Arouche, lugar, como já dito, de intensa sociabilidade LGBT. No mapa a seguir, podemos visualizar com clareza a localização das igrejas inclusivas:

Mapa 1 – Santa Cecília e Largo do Arouche

Fonte: - Imagem extraída do Google Maps

Tanto a CCNE quanto a ICM já foram referidas no início deste capítulo e, posteriormente, serão melhores apresentadas, quando abordarmos a emergência do movimento evangélico inclusivo no Brasil. Ambas são denominações inclusivas, surgidas no país durante a primeira metade dos anos 2000. Enquanto a primeira se caracterizaria por uma teologia voltada para a propagação de uma vida cristã para gays e lésbicas, com ênfase na teologia pentecostal da batalha espiritual, a segunda se destacaria por ter um apelo mais ativista, um discurso pautado na reinterpretação dos textos bíblicos, numa cosmologia religiosa que se funde com a pauta da construção da cidadania LGBT.

Já a igreja Cidade de Refúgio é uma denominação inclusiva mais recente, fundada em 2011 pela pastora Lanna Holder, ex-missionária evangélica do segmento convencional. É uma

comunidade religiosa que se assemelha, teologicamente, à CCNE. Na época em que estava no contexto convencional, Lanna pregava a favor da “cura gay”; isso porque ela, supostamente por intervenção divina, havia deixado de ter “sentimentos lésbicos” e, assim, percorria o Brasil e o mundo com o seu testemunho de “ex-lésbica”. Lanna Holder fundou a Cidade de Refúgio com sua esposa Rosania Rocha, quando as duas foram expulsas de sua denominação de origem, a Assembleia de Deus, por assumirem seu relacionamento lésbico. No site da igreja, diz que: “Como resposta de Deus à nossa geração, a Cidade de Refúgio sempre desejou alcançar aqueles que se sentiam excluídos, rejeitados em suas igrejas de origem em razão de sua orientação sexual ou por qualquer outro motivo que fosse28”.

A Cidade de Refúgio é uma denominação que carrega o ethos pentecostal das suas fundadoras, o que pode ser percebido na característica dos cultos, sobretudo nas pregações e louvores. Nos cultos, há muita comoção, choro, exultos de alegria, performances extáticas de quem está na plateia e no púlpito. Assim como na CCNE, há ênfase na teologia da batalha espiritual. Há um esforço para que a igreja não seja percebida apenas como uma “igreja de gays”, mas uma igreja que aceita a todos, independentemente da identidade sexual e de gênero, e isso inclui as pessoas heterossexuais.

Apesar de inclusiva, há uma forte defesa de condutas sexuais entendidas como santificadas e imprescindíveis para uma vida cristã satisfatória, entre elas, relações sexuais somente depois do casamento. Essa crítica à “promiscuidade” realizada por algumas lideranças inclusivas foi evidenciada por Natividade (2008) como sendo similar àquelas sustentadas por evangélicos convencionais. Uma característica peculiar da Cidade de Refúgio é o fato de ela ser liderada por duas mulheres lésbicas - ao contrário da maior parte das igrejas inclusivas, que tem como suas lideranças homens gays.

Da Cidade de Refúgio, conheci Penélope, mulher trans de 41 anos que fazia cover de Clara Nunes29 em boates e casas de show em São Paulo. Ela também atuava como maquiadora; mas ao ser expulsa de casa, aos 14 anos, sobreviveu durante muito tempo por meio da prostituição. Por influência de sua família, Penélope foi adepta do Candomblé desde a infância. A inserção na igreja evangélica só veio a acontecer em sua vida adulta recente e está diretamente ligada ao que sugiro chamar de “evangelização da região moral” do Largo do Arouche. Até o momento de sua conversão, Penélope não havia tido nenhuma proximidade com o contexto evangélico.

28 Disponível em: http://cidadederefugio.com.br/sobre-a-igreja/

Em 2014, num momento de muita dificuldade financeira, ocasionada por uma forte depressão - o que a impossibilitou de realizar seus shows -, Penélope passou a morar dentro do seu carro em uma praça do Arouche. Numa tarde de domingo, ela recebeu um panfleto de divulgação da Cidade de Refúgio entregue por um rapaz que, segundo ela, era bem afeminado. Antes de ver sobre o que se tratava, Penélope pensou que o material se referia à divulgação de uma boate nova.

O rapaz, então, explicou a perspectiva da igreja e fez o convite para que ela fosse ao culto naquela noite. Penélope chegou a indagar ao rapaz se ela não correria o risco de quererem expulsar a pombagira dela, pois sabia que essas situações eram comuns de serem vividas por pessoas trans em igrejas evangélicas. Penélope recorda que foi ao culto na noite daquele domingo e diz ter “recebido uma palavra30” que a impactou muito; assim, iniciou seu processo de adesão ao evangelho.

Seu ingresso e completa adesão à igreja, bastante tempo depois de sua primeira visita à Cidade de Refúgio, são percebidos como uma das principais causas de melhorias em sua vida. Penélope havia sido batizada na igreja; para ela, esse evento foi narrado como um dos mais importantes da sua vida, no qual ela sentira intensamente a “presença de Deus”. Segundo Penélope: “Se é de coração, você entrega a sua vida para Deus. Aquela pessoa que você era no passado - se você era uma prostituta, um marginal -, aquela pessoa ali, no momento do batismo, deixa de existir”.

Penélope, a partir da sua adesão à igreja Cidade de Refúgio, passou a buscar mudanças em sua vida para que assim pudesse ter uma vida religiosa satisfatória. A partir do apoio espiritual que recebeu, ela disse ter conseguido superar seu estado depressivo e voltar a exercer suas atividades profissionais. Uma dessas mudanças incentivadas pela igreja é uma conduta sexual que seja compatível com o que hegemonicamente se pensa de uma vida cristã. Penépole disse que há um esforço por parte dela, no intuito de se adequar às expectativas da referida denominação, no que diz respeito aos relacionamentos amorosos e sexuais, para que seja superado o que é denominado de “os vícios da carne”. Penélope disse que a Cidade de Refúgio também incentiva relacionamentos amorosos com pessoas da própria denominação, isto é, “conhecer uma pessoa em Deus” e, só depois do casamento, o relacionamento sexual seria desejável.

Narro um pouco da trajetória de Penélope para evidenciar o fenômeno de evangelização dessa região moral do centro da cidade de São Paulo, pois, foi a partir desse fenômeno que

minha interlocutora veio a conhecer o evangelho inclusivo. Sugiro pensar que essa emergência de igrejas evangélicas inclusivas em áreas como as do Largo do Arouche pode ser entendida como uma estratégia de expansão da teologia evangélica em busca de áreas da cidade que apresentam uma cena LGBT. Essas denominações religiosas, com seus discursos inclusivos sobre o cristianismo, dialogam diretamente com numerosas histórias de vida de pessoas LGBT que circulam nessa região moral e que precisaram abrir mão de suas identidades religiosas em suas comunidades de origem por estarem em discordância com o discurso hegemônico sobre as experiências de gênero e sexuais.

A ICM e a Cidade de Refúgio, como veremos posteriormente, possuem diferenças teológicas, com destaque para a ICM; todavia, ao fixarem seus templos e produzirem ações de evangelismo nessa região de São Paulo, apontam para um fenômeno interessante de evangelização da região moral, o que dialoga diretamente com o momento religioso vivenciado no Brasil, de forte, expansiva e diversificada presença da atuação evangélica.

Não tenho a pretensão nem a possibilidade de sugerir as consequências ou o nível de influência dessas igrejas, contudo, elas indicam uma mudança na paisagem moral. Ao ocuparem essa região, podemos sugerir várias hipóteses: uma busca pela moralização das experiências LGBT; a expansão do direito do exercício da fé cristã às identidades sexuais e de gênero dissidentes; e a ampliação do mercado religioso ao público LGBT. Todas essas hipóteses podem ser usadas como pistas analíticas para futuros trabalhos que visem perceber se, em outras regiões morais marcadas pela presença de LGBT, também tem havido o surgimento de igrejas evangélicas inclusivas e como a comunidade local tem percebido a presença dessas igrejas.

No documento hugofelipequitela (páginas 41-45)

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