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SOBRE CONCEITOS, MÉTODOS E TEORIAS

No documento hugofelipequitela (páginas 45-50)

Mapa 1 – Região Santa Cecília e Largo do Arouche

1 INTRODUÇÃO

2.2 SOBRE CONCEITOS, MÉTODOS E TEORIAS

A opção por utilizar relatos biográficos como uma possibilidade teórico-metodológica sublinha a dimensão interacionista que sugerimos aqui como principal viés compreensivo, sobretudo por meio da perspectiva de Becker (1999), para o qual “as histórias de vida podem ser particularmente úteis para nos fornecer uma visão subjetiva de processos institucionais muito estudados” (BECKER, 1999, p. 108). Somando-se a essa perspectiva interacionista, temos a abordagem fenomenológica de Schutz (1979), quando este formula o conceito de situação biográfica focada na experiência de dureé. Schutz situa o relato biográfico ao contexto

sociocultural no qual o sujeito está inserido e, portanto, destaca a condição circunstancial da situação biográfica, emergida da relação do contexto social e a atuação individual que se dá “dentro do sistema social, mas também sua posição moral e ideológica” (SCHUTZ, 1979, p. 73). Influenciado pelas acepções fenomenológicas de Schutz, Gilberto Velho (1994) enfatiza o peso da memória na construção das biografias. Para Velho, o sujeito, ao relatar sua biografia, não o faz a partir de uma ilusão, como supõe a argumentação de Bourdieu (2006), mas a partir de um exercício no qual memória - que também é determinada socialmente - provê consistência à trajetória ao organizar os fragmentos do passado descontínuo (VELHO, 1994)

Contrapondo, também, essa ideia de ilusão biográfica, Adriana Facina (2004), ao refletir sobre trajetórias individuais nas sociedades complexas, propõe utilizar a noção de metamorfose, pois “essa noção permite romper com a experiência de coerência nos processos de formação dos indivíduos, sem necessariamente descartar a ideia de autocultivo.” (FACINA, 2004, p. 30). O conceito de metamorfose utilizado por Facina é o desenvolvido por Gilberto Velho, no qual compreende que, por mais intensas que sejam as mudanças na trajetória de vida de um indivíduo, algo de si sempre permanece. Diante disto, ao trazer a ideia de metamorfose para a cena biográfica, Facina (2004) considera que as mudanças radicais não são defeitos ou descaminhos nas trajetórias individuais, mas são partes formadoras dos indivíduos. Pelo exposto, é possível ultrapassar a ideia de biografia como sendo retratos lineares de um mundo isolado e coerente.

Facina (2004) também nos evidencia a existência de uma diferença fundamental entre memórias e autobiografias, pois enquanto a primeira teria uma relação maior com o mundo exterior, a segunda teria vínculo com o mundo interior. Contudo, não devem ser encaradas como sendo opostas ou excludentes, e sim como formas diferentes de organizar a história de vida, dando ênfase ou à vida pública ou à vida privada (FACINA, 2004). Assim, saliento que as histórias de vida presentes neste trabalho não têm por característica a busca por uma coerência ou linearidade, sendo possível em vários momentos perceber - nos termos de Pollak (1989) – uma gestão da memória por parte das interlocutoras.

Ao propor refletir a respeito das biografias de mulheres trans no contexto de igrejas evangélicas e, principalmente, ao abordar trajetórias dessas mulheres num contexto religioso em que a performatividade - tanto de gênero como de expressão da crença - é acentuada, o conceito de etnobiografia proposto por Gonçalves (2012) seria de valiosa contribuição. Gonçalves argumenta que o conceito de etnobiografia, ao abrir espaço para a individualidade ou a imaginação pessoal criativa, sugere a problematização de conceitos-chaves do pensamento sociológico clássico – individual x coletivo; sujeito x cultura; objetividade x subjetividade, uma

vez que, segundo o autor, “o indivíduo passa a ser pensado a partir de sua potência de individuação enquanto manifestação criativa, pois é justamente através dessa interpretação pessoal que as ideias culturais se precipitam e tem-se acesso à cultura” (GONÇALVES, 2012, p. 9).

Gonçalves (2012) utiliza a categoria pessoa-personagem e afirma ser justamente ela que realiza a junção entre o vivido e o pensado, entre o dado e o construído, entre o individual e o social, entre a ação e a representação. Desse modo, etnobiografia seria uma percepção situada em um intrincado complexo de “relações pessoais e públicas em que se tensionam personagens culturais ou sociais e formas criativas derivadas da pessoalização” (GONÇALVES, 2012, p. 32). Tanto a subjetivação da experiência cultural quanto a objetivação da intimidade possibilitam uma condição de conhecimento e, “portanto, etnobiografia é, antes de tudo, produto de uma relação e de suas implicações a partir da interação entre pessoas situadas em suas respectivas vidas e culturas, tendo como pano de fundo suas percepções sobre a alteridade” (GONÇALVES, 2012, p. 29).

Tomando como referência o conceito de etnobiografia juntamente com as reflexões de Alfred Schutz, Gilberto Velho e Adriana Facina, sublinho que não estamos em busca do “ponto de vista nativo” ou de qualquer outro tipo de essencialismo a respeito dos relatos biográficos presentes neste trabalho. A intenção é, antes de tudo, buscar uma compreensão que entenda a elaboração das trajetórias como um processo dialógico imbricado ao fazer etnográfico. Para tanto, destaca-se a complexidade de cada narrativa biográfica aqui posta, tendo sempre como foco as estratégias particulares de negociação e elaboração da pertença religiosa, atrelada a uma identidade de gênero, entendida como dissidente no contexto religioso em destaque, além da autopercepção num momento de vida específico; tudo isso, a fim de apreendermos, mesmo que em partes, as formas de ser e de viver uma experiência gênero-religiosa, por assim dizer.

É importante salientar que, num contexto ocidental, no qual existe certa predominância de uma ideologia individualista, a noção de biografia se torna muito relevante na significação do social, tendo em vista que a trajetória do indivíduo se torna elemento constituinte da realidade. Segundo Velho (1994), esse indivíduo-sujeito precisa traçar projetos para lidar com os sistemas de valores diferenciados e heterogêneos com os quais se depara. A ideia de projeto apresentada por Velho é inspirada nas formulações de Schutz que, em linhas gerais, significa a conduta organizada para atingir finalidades específicas, tendo como referência caminhos que são escolhidos, subjetivamente, dentro de um determinado campo de possibilidades que são informados por meio dos paradigmas culturais compartilhados. Velho entende como campo de

possibilidades a dimensão sociocultural, o espaço para formulação e implementação de projetos (VELHO, 2013)31.

De acordo com Velho (2013), a memória é fragmentada e, sendo assim - tendo em vista a descontinuidade do passado -, a construção de um projeto se dá por meio de uma memória que procura dar sentido aos acontecimentos na trajetória desse indivíduo. Buscamos, nas narrativas apresentadas, perceber as particularidades e semelhanças encontradas nos campos de possibilidades dessas mulheres. Isso porque, de acordo com Capriani et al (1995), por meio das narrativas de vida, os indivíduos preenchem a si mesmos num processo de organização e produção de coerência das lembranças desorganizadas, assim como suas percepções imediatas que, para os autores, “faz emergir em sua narração todos os microeventos que pontuam a vida cotidiana, do mesmo modo que as durações, provavelmente comuns aos grupos sociais, mas que dentro da experiência individual contribuem para a construção social da realidade” (CAPRIANI et al, 1995, p. 260-261, tradução minha).

A noção de projeto apresentada por Velho está vinculada ao intenso processo de individualização das sociedades complexas. Como aponta Dumont (1992, 2000), o individualismo se tornou a principal característica do mundo moderno ocidental; o indivíduo como valor supremo e premissa cultural. Contudo, Velho (2013) pondera o fato de que não se pode esquecer que os projetos individuais não estarão isentos ou independentes de constrangimentos sociais, tendo em vista que os processos de individualização não ocorrem fora das normas e padrões sociais existentes. Segundo ele:

Quando vai de encontro às fronteiras simbólicas de determinado universo cultural – ou as ultrapassa -, ter-se-á, então, provavelmente, uma situação de desvio com acusações e, em certos casos, estigmatização. Ou seja, há regras para a individualização, mais ou menos explícitas (VELHO, 2013, p.98-99).

Um ponto importante para se colocar em relevo é que, mesmo o individualismo sendo uma característica valorizada em nossa sociedade e mesmo que tenhamos difundido a ideia de que somos livres para escolher nosso trajeto, é importante considerar o fato de que a liberdade e as possibilidades de escolha não são as mesmas para todos. Como já apontado na introdução, o tema central deste trabalho são as trajetórias evangélicas de mulheres trans. Trajetórias essas

31 Segundo Velho: “Campo de possibilidades trata do que é dado com as alternativas construídas do processo

sócio-histórico e com o potencial interpretativo do mundo simbólico da cultura. O projeto no nível individual lida com a performance, as explorações, o desempenho e as opções, ancoradas a avaliações e definições da realidade. Estas, por sua vez, nos termos de Shutz, são resultado de complexos processos de negociação e construção que se desenvolvem com e constituem toda a vida social, inextricavelmente vinculados aos códigos culturais e aos processos históricos de longue durée “(VELHO, 2013; p. 123).

que não estão isolada das outras dimensões da vida, sendo parte importante da subjetividade das interlocutoras.

Assim, o conceito de trajetória evangélica, apresentado aqui, também é inspirado nas proposições de Birman (1996) sobre trajetórias religiosas. Entendemos por trajetórias religiosas “as passagens e trânsitos de fiéis entre diferentes correntes religiosas, articulando aspectos fenomenológicos e eventuais ressignificações de suas vivencias passadas” (NATIVIDADE; OLIVEIRA apud BIRMAN, 2013, p. 33). E de maneira mais específica, ou talvez complementar, compreendo por trajetória evangélica os percursos religiosos individuais, que são singulares, no contexto evangélico; singularidade essa que se faz por meio do manejo dos elementos de uma estrutura religiosa preexistente (tal estrutura permite entender a existência de uma macroidentidade evangélica). Diferente do conceito de trajetória, que aqui aparece como uma dimensão mais esquemática da realidade, relacionada aos projetos individuais, a noção de experiência religiosa será utilizada para identificar uma dimensão mais ampla e diversa num contexto religioso menos específico.

Isto posto, temos a noção de trajetória religiosa, para exemplificar os percursos dos indivíduos em diferentes religiões, e de trajetórias evangélicas, para identificar as biografias tecidas especificamente no contexto evangélico. Ao longo do texto, as duas opções serão utilizadas; a primeira, geralmente, para se referir a esse percurso mais amplo de experiências religiosas nas diferentes matrizes de crenças, e a segunda para identificar as experiências vivenciadas pelas interlocutoras entre os evangélicos. Essas trajetórias se articulam e se imiscuem às elaborações dos projetos individuais e das metamorfoses vivenciadas nas diferentes etapas da vida.

Pensar em trajetória, seja ela religiosa ou evangélica, é reconhecer certa autonomia das pessoas em relação às instituições nas quais estão inseridas; contudo, como salienta Machado (2006, p. 103), “a autodeterminação e a capacidade de discernimento em face das instituições religiosas depende, entre outros fatores, da autoconfiança dos indivíduos e da inclusão em diferentes redes de sociabilidade”. Nesse sentido, Duarte aponta a possibilidade da interpretação pessoal no interior das igrejas, pois “sempre há um ônus psicológico a enfrentar na contravenção dos dogmas ou preceitos (2005, p.156)”.

São trajetórias que se configuram num contexto marcado por mudanças significativas no campo da religião, denominado por Hervieu-Léger (2008) como sendo numa modernidade religiosa caracterizada por uma subjetivização e individualização da crença. A autora ainda nos fala dos regimes de validação do crer que nos ajudam a compreender as trajetórias que

colocaremos em evidência, pois elas se desenvolveram a partir de um entrelaçamento desses regimes.

Hervieu-Léger (2008) argumenta que a experiência religiosa contemporânea, em especial pela intensa mobilidade, produz quatro tipos de regime de validação do crer. A tipologia dos regimes de validação do crer proposta pela autora, resumidamente, são: 1) o regime institucional, que corresponde à instância de validação, ‘a autoridade institucional qualificada’ e tem como critério de validação ‘a conformidade’; 2) o regime comunitário, que tem como correspondente a instância de validação, ‘o grupo como tal’, e como critério tem ‘a coerência’; 3) o regime de validação mútua, no qual ‘o outro’ corresponde à instância de validação cujo critério é ‘a autenticidade’; 4) o regime de autovalidação, que tem ‘o próprio indivíduo’ como instância correspondente e tem como critério ‘a certeza subjetiva’.

Assim sendo, a noção de trajetória evangélica nos ajuda a compreender a elaboração de uma visão de mundo difundida a partir de um segmento religioso específico, tendo em vista, como aduz Natividade (2005), que “[...] a experiência religiosa é pensada como parte de um processo de construção de si, em conexão com outros domínios da vida social, como: percurso sexual amoroso, história familiar e etapa da vida” (NATIVIDADE, 2005, p. 248).

Ao focarmos em suas trajetórias, visualizamos com mais clareza o que Goffman (2012) denominou de framing analysis ou os quadros da experiência social. Segundo Goffman, a experiência de cada indivíduo é resultado de como ele irá enquadrar a realidade ao seu redor. Desta forma, a subjetividade e o conjunto de significados empregados para decifrar e compreender o mundo são os elementos construtores daquilo que é considerado real para cada pessoa. Logo, as experiências e trajetórias evangélicas presentes ao longo do texto estão diretamente relacionadas a como as interlocutoras dessa pesquisa enquadraram suas vivências religiosas entre os evangélicos.

Por fim, as experiências vividas ao longo desta pesquisa convergem para a ideia de que alguns sujeitos aderem com mais clareza ao projeto de mediação, cruzando fronteiras - ora flexibilizando padrões tradicionais de relacionamento, ora reforçando outros aspectos - por meio de um fluxo de informações que indexa o contraste e o contraditório. Quais seriam, então, os contornos e os conteúdos dessa mediação?

No documento hugofelipequitela (páginas 45-50)

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