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AS IGREJAS EVANGÉLICAS INCLUSIVAS

No documento hugofelipequitela (páginas 55-62)

Mapa 1 – Região Santa Cecília e Largo do Arouche

1 INTRODUÇÃO

2.4 AS IGREJAS EVANGÉLICAS INCLUSIVAS

Pierre Sanchis (1997, 2001), ao refletir sobre as especificidades do campo religioso brasileiro, considera que este é caracterizado por uma predisposição estrutural a identidades e

experiências porosas.

Nesse contexto, percebe-se que a espiritualidade passa a ser vinculada às experiências que não estão, necessariamente, ligadas às ditas religiosas e institucionais, e as experiências religiosas são compreendidas, em alguma medida, também como “assuntos particulares que dependem da consciência individual e que nenhuma instituição religiosa ou política pode impor a quem quer que seja” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 34). É necessário ressaltar que não estamos recusando a importância da dimensão coletiva da experiência religiosa, mas sim, sobretudo, assinalando para o caráter dialógico e diversificado que a adesão religiosa tem a partir das trajetórias individuais e como tal caráter tem ampliado o campo de possibilidades de ser um participante das instituições religiosas.

Vemos, então, diante desse quadro, uma busca por uma “religiosidade não convencional” (SIQUEIRA, 2008). Essa complexidade é configurada como marca da modernidade (PACE, 1997; STEIL, 2001; PIERUCCI, 2006), na qual diferentes formas de expressão religiosa, institucionais e não-institucionais, tradicionais e renovadas “convivem no contexto de um pluralismo que parece não colocar limites à diversidade” (STEIL, 2001, p. 117). Apesar de o pluralismo religioso ser uma característica fundamental no campo da fé na sociedade ocidental, principalmente a partir do século XX para o XXI, (STEIL, 2001; GEBARA, 2006), é possível notar que, majoritariamente, as novas igrejas cristãs no cenário brasileiro - em suas teologias - não produziram um rompimento com a tradição católica no que se refere à moral sexual, sendo que, algumas delas, se revelam ainda mais conservadoras e intolerantes32. Quanto à atuação desse segmento religioso na política institucional, fica nítida a permanência de uma moral conservadora. Nesse sentido, Mariano argumenta que:

Os pentecostais abandonaram sua tradicional autoexclusão da política partidária, justificando seu inusitado ativismo político – antes proibitivo, porque tido como mundano e diabólico – com a alegação de que urgia defender seus interesses institucionais e seus valores morais contra seus adversários católicos, homossexuais, “macumbeiros” e feministas na elaboração da carta magna. Para tanto, propuseram- se as tarefas de combater, no Congresso Nacional, a descriminalização do aborto e do consumo de drogas, a união civil de homossexuais e a imoralidade, de defender a moral cristã, a família, os bons costumes, a liberdade religiosa e de culto e de demandar concessões de emissoras de rádio e tevê e de recursos públicos para suas organizações religiosas e assistenciais (Pierucci, 1989; Freston, 1993). Os pentecostais, ao mesmo tempo em que faziam referência ao tradicional adversário

32 Marco Feliciano, pastor e deputado federal que quando esteve à frente da Comissão de Direitos Humanos e

Minorias gerou diversas polêmicas, afirmou: O Brasil, na sua grande maioria, é conservador. Só que é feito de conservadores silenciosos. Talvez falte a eles oportunidade de ter vez e voz porque trabalham muito, porque têm que cuidar da sua família, porque não cuidam da vida dos outros. Como eles não têm tempo, não se envolvem. Mas as urnas provaram isso. Eu, Jair Bolsonaro, Celso Russomano, somos três políticos de ala conservadora que tiveram uma votação expressiva. O que falta no país hoje, e eu acho que as pessoas buscam isso, são políticos de posicionamento. O político não pode ser maria-vai-com-as-outras, não pode ficar em cima do muro e chutar com os dois pés, não pode ser um político-prostituto, que se vende. Tem que saber o que quer ser [...] (Feliciano, 2015).

católico, aludiam a seus adversários laicos, como justificativa para 'irmão votar em irmão', seu novo lema (MARIANO, 2011, p. 250-251).

Contudo, o pluralismo religioso possibilitou o aparecimento de novas experiências de fé que tentam compatibilizar a teologia cristã com as sexualidades e experiências de gênero não cisheteronormativas. É nesse contexto que as igrejas inclusivas para as pessoas LGBT surgem e encontram no Brasil um espaço para se estabelecer, beneficiando-se, de certo modo, de movimentos de dissidência registrados entre as igrejas protestantes com viés pentecostal ou neopentecostal (ALMEIDA, 2009).

Nos Estados Unidos, as igrejas inclusivas existem desde o final da década de 1960. Seu surgimento é marcado pela criação, em 1968, na cidade Los Angeles, da Igreja Comunidade Metropolitana, considerada a primeira igreja inclusiva no mundo. Ela foi fundada pelo Reverendo Troy Perry, que foi expulso da igreja Batista, na qual era pastor, por ser homossexual. A partir de sua necessidade pessoal em ter um espaço para exercer sua fé e suas práticas religiosas, Troy Perry criou uma denominação voltada para a inclusão da comunidade gay (FERREIRA, 2016). Como pontua Feitosa (2016), inicialmente, a teologia inclusiva era direcionada principalmente a gays e lésbicas, num exercício de desconstrução das interpretações canônicas que compreendiam as experiências homossexuais como pecado; só mais recentemente que as experiências de fé de pessoas trans passaram a ser discutidas na teologia inclusiva.

O termo igreja inclusiva apresenta-se como uma categoria nativa (NATIVIDADE, 2010; WEISS DE JESUS, 2013) e está associada a experiências religiosas que tendem a harmonizar a espiritualidade cristã com as experiências de gênero e sexualidade não cisheteronormativas. Marcelo Natividade, principal referência brasileira nessa discussão e primeiro pesquisador a abordar, de maneira sistemática, o estudo sobre as igrejas inclusivas no Brasil, nos diz que tais denominações religiosas “correspondem à autoidentidade de segmento religioso que pretende romper com esse dogma (homossexualidade como pecado) e formular leituras bíblicas que compatibilizem a homossexualidade e prática de religiões cristãs” (NATIVIDADE, 2008, p. 24). Cabe aqui sublinhar que a maior parte dessas igrejas foca mais na elaboração de uma teologia inclusiva voltada para o público homossexual do que para as pessoas trans, não abarcando, quase sempre, as especificidades e embates que surgem por conta da quebra da cisnormatividade que estrutura as narrativas hegemônicas cristãs. Assim, de acordo Natividade:

Estas instituições são conhecidas pela alcunha de “igrejas gays”. Tal segmento se destaca no campo religioso mais amplo pela criação de cultos nos quais homossexuais podem tornar-se pastores, reverendos, diáconos, presbíteros, obreiros, ocupando, assim, cargos eclesiais. Esse movimento é protagonizado em sua maior parte por pessoas egressas de denominações evangélicas e/ou paróquias católicas (NATIVIDADE, 2010, p. 90).

Se entre os segmentos evangélicos convencionais, como já pontuamos, existe um discurso de acolhimento de pessoas LGBT, que tem como foco a “transformação” - submetendo essas pessoas a discursos e terapias visando a “cura” e os adequando aos padrões heteronormativos de conduta -, a noção de inclusão de pessoas LGBT no contexto das igrejas inclusivas, por outro lado, difere-se fundamentalmente dessa perspectiva. No conexto inclusivo, a participação religiosa se dá pela ideia de que Deus aceita e ama os homossexuais como eles são; ou seja, são preconizados discursos de naturalização da homossexualidade, mesmo havendo pluralidade interna entre as denominações inclusivas (NATIVIDADE, 2010). E, como expõe Feitosa (2016):

Embora as igrejas cristãs convencionais apregoem o amor aos LGBTs, sua pregação acaba mutilando a identidade daqueles que não conseguem cumprir o padrão hegemônico. A influência do pensamento cristão tradicional ultrapassa a igreja institucional, pois até mesmo pessoas leigas recorrem à autoridade bíblica para justificar sua rejeição às minorias sexuais (FEITOSA, 2016, p.5).

Já no Brasil, as igrejas inclusivas são um fenômeno recente, que surge no final da década de 1990; mas é apenas no início dos anos 2000 que no Brasil diversas denominações religiosas inclusivas vão se propagar. É possível notar que essas igrejas têm conquistado cada vez mais legitimidade no cenário religioso brasileiro, mesmo sendo uma corrente minoritária na tradição cristã. As denominações inclusivas passam por um processo de institucionalização muito importante, uma vez que elas têm ampliado o número de congregações em diversas regiões do Brasil, como também têm ganhado maior visibilidade na mídia e na sociedade (NATIVIDADE, 2008, 2017; WEIS DE JESUS, 2012).

Foi com a propagação do movimento de igrejas inclusivas no cenário religioso cristão brasileiro - sobretudo entre os evangélicos -, com uma nova percepção teológica em relação à sexualidade, que essa questão se tornou assunto de primeira ordem no contexto religioso. Isso se deve ao fato de romperem com o conservadorismo hegemônico característico do universo evangélico; essas denominações evidenciam a possibilidade de compatibilização de condutas não cisheteronormativas e cristianismo (MUSSKOPF, 2004; MARANHÃO FILHO, 2011; WEIS DE JESUS, 2012; NATIVIDADE, 2010, 2013). Contudo, para que essa nova concepção

da sexualidade fosse almejada, envolveu e “[...] envolve um trabalho de reflexão ou de reinterpretação das bases e dos pressupostos de tradições e instituições religiosas” (GIUMBELLI, 2005, p.12).

Não é possível precisar um número exato de igrejas inclusivas no país, mas Marcelo Natividade, em entrevista ao El País Brasil, em agosto de 2016, salientou o crescimento considerável dessas comunidades religiosas nos últimos dez anos. Um levantamento feito a pedido da BBC Brasil para especialistas, em 2012, apontou que, na época, havia pelo menos dez congregações de igrejas brasileiras “gay-friendly” no país, com mais de 40 missões espalhadas pelos estados brasileiros. A maior parte localizada no eixo Rio de Janeiro - São Paulo, com cerca de 10 mil fiéis, predominância masculina e composta por diferentes níveis sociais. Somando todas as vertentes evangélicas, o IBGE apontou no Censo 2010 que 23% da população brasileira é evangélica (cerca de 40 milhões). Já em pesquisa realizada por meio de referências bibliográficas diversas e em sites da internet para sua dissertação de mestrado intitulada “Teologia inclusiva, fé e militância: a igreja da comunidade metropolitana e algumas controvérsias na sociologia da religião” (2015), Raquel Moreira de Souza encontrou cerca de sessenta e duas igrejas inclusivas no Brasil, de vinte e sete denominações diferentes. A maioria dessas instituições está presente no sudeste brasileiro, principalmente nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo.

Natividade (2010, 2013) nos diz que o surgimento dessa alternativa religiosa coaduna com as mudanças sociais advindas da pressão política e visibilidade da comunidade LGBT por reconhecimento e legitimidade, além da pluralização das demandas e dos sujeitos de direitos nesse campo discursivo. Nesse sentido, Facchini (2016) nos diz que é a partir da década de 1990 que as pessoas LGBT começam a reivindicar espaços nos ambientes religiosos brasileiros. Nessa esteira, ascomunidades evangélicas inclusivas têm se destacado como um movimento plural, no qual configuram debates e discussões também relacionados à construção da cidadania e dos direitos das pessoas LGBT.

Segundo Rodrigues (2007), as igrejas inclusivas têm em comum o fato de que seus fundadores geralmente são oriundos de denominações cristãs tradicionais (protestantes, pentecostais e neopentecostais), sendo que, em muitos casos, se mantém evidente a estrutura organizacional da igreja nos moldes das denominações de origem de seus fundadores (NATIVIDADE, 2008; WEISS DE JESUS, 2010). Dessa forma, Weiss de Jesus (2013) nos diz que:

A oferta religiosa para LGBTs tem aumentado significativamente nos últimos anos e a proliferação de Igrejas Inclusivas no Brasil segue uma dinâmica semelhante ao campo religioso (neo)pentecostal brasileiro (marcado por cismas e “revelações”) tanto nas estratégias para agregar adeptos, na estrutura hierárquica e organizacional, como nas formas de ler e interpretar o texto bíblico. (WEISS DE JESUS, 2013, p. 8).

É importante salientar que, apesar de compartilharem a mesma nomenclatura e teologia – inclusiva –, essas igrejas não se configuram de maneira homogênea e também apresentam diferenças e divergências, até mesmo sobre questões envolvendo a sexualidade. Como nos apontam Weiss de Jesus (2012, 2013) e Musskopf (2012), existe uma disputa interna entre as próprias denominações religiosas inclusivas, que negociam quais são os limites e termos dessa inclusão.

Nesse sentido, Natividade e Oliveira (2013) destacam duas linhas distintas de igrejas evangélicas inclusivas: a que tem como característica uma perspectiva marcada por um discurso ativista e que propõe uma reinterpretação dos textos bíblicos para se adequar aos modos de vida LGBT; e a linha que se caracteriza por uma maior ênfase nos elementos da vida religiosa, cujo discurso é concentrado em formular modelos de uma “vida cristã” pautados na noção de santidade, que em linhas gerais são modelos que produzem uma moralidade que naturaliza a homossexualidade, mas sugerem que seus fiéis pratiquem relações sexuais somente depois do casamento. Essas duas vertentes de igreja serão evidenciadas a partir da trajetória de Alexya e Jacque. Alexya pertence à ICM-SP, cuja trajetória se enquadra na vertente ativista. Jacque pertence à CCNE, a qual se caracteriza por ser uma denominação inclusiva voltada para a formulação de uma “vida cristã”.

Contudo, ficou perceptível que, ao longo do campo e da revisão bibliográfica realizada, a maior parte das igrejas inclusivas - ao mesmo tempo em que se configuram como um espaço possível para que pessoas LGBT possam ter tanto a sua religiosidade como a sua identidade sexual e de gênero legitimadas como possíveis e reconhecidas - também contribui para a conformação de um ethos religioso que reproduz, quase sempre, um modelo de família nuclear com fortes traços do padrão cisheteronormativo.

Se as demandas da população trans se apresentaram tardiamente em relação às dos gays e às das lésbicas, no que tange às lutas identitárias, não é diferente no contexto religioso inclusivo. A presença de pessoas trans ainda acontece de maneira muito modesta nas igrejas evangélicas inclusivas. Se por um lado pode se sugerir que esse menor número está relacionado a um dado demográfico, por outro as interlocutoras dessa pesquisa evidenciam a pouca representatividade dada à identidade trans no cotidiano dessas comunidades religiosas, o que, de alguma forma, faz com que essas comunidades religiosas também sejam pouco atrativas às

pessoas trans. Por fim, segundo Weiss de Jesus (2010), a maior parte dos trabalhos sobre as igrejas inclusivas centram suas reflexões sobre as experiências de homens gays, tendo, assim, uma ausência da reflexão sobre as experiências de pessoas trans nessas igrejas.

Como já apontado por Natividade (2005), tanto a sexualidade quanto a experiência religiosa - e sugiro, também, incluir as experiências de gênero e de expressão de identidade de gênero - são domínios que tendem a modelar a subjetividade dos sujeitos e, de uma forma ou de outra, conduzem a diferentes formas de percepção e visão de mundo, assim como das experiências sociais. Desse modo, em suas interações face-a-face e em determinados contextos, os sujeitos encontram um certo tipo de campo de possibilidades para a construção de si. Como é percebido por Natividade, as experiências relativas à sexualidade [e ao gênero] - assim como as religiosas - são responsáveis por fornecer mapas culturais que vão orientar os sujeitos em diferentes momentos das trajetórias de vida.

O que veremos a seguir, a partir dos relatos biográficos evidenciados, são experiências e trajetórias evangélicas de mulheres trans que, ao se inserirem em contextos evangélicos - sejam eles convencionais ou inclusivos -, colocam em xeque a homogeneidade que o discurso cristão tenta produzir nas práticas religiosas daqueles que o adotam. São mulheres que confrontam essa cena religiosa com a diferença. Elas desestabilizam o que parece fixo e hermético e, ao fazerem isso, revelam brechas entre o dizer e o fazer institucional (ESPERANDIO, 2001) e revelam a múltiplas formas de habitar a normas e por entre elas.

São a essas fissuras e brechas que as trajetórias presentes neste trabalho darão destaque. Sendo assim, no capítulo seguinte, as experiências evangélicas de Crislaine, ocorridas em dois momentos de adesão distintos de sua vida, a denominação evangélica Assembleia de Deus nos apresentará um mapa inicial das questões que emergem a partir da adesão de mulheres trans entre os evangélicos. Desse modo, suas experiências nesse contexto religioso serão utilizadas como pano de fundo para evidenciar algumas discussões e reflexões que foram basilares ao longo de toda a pesquisa.

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