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EVIDÊNCIA E EQUÍVOCO NA CONJUNÇÃO MATERIAL

Que imagens são postas em funcionamento no telejornal? A que sujeitos se dá visibilidade e quem são apagados ou censurados nesse processo? Que sentidos são autorizados e quais são interditados? O discurso telejornalístico tem uma ordem constitutiva, e a linguagem aparece organizada de determinada maneira. Em torno do que ou de que forma essa linguagem se organiza? Sobre o que fala o telejornalismo?

Esses e outros questionamentos levaram a observar o conjunto das materialidades, no telejornal, como elemento organizador do efeito notícia. A alteridade de imagens (imagem- sujeitos apresentador, repórter, entrevistado; imagem-cenário; imagem-

emissora; imagem-veiculação; imagem-lugares sociais ou posição no discurso) passou a ser compreendida pelo que nomeamos jogos de imagens em funcionamento ritual.

Para que o sujeito tenha autoridade a dizer e seja autorizado a dizer, de modo que o seu dizer ganhe autoridade, mesmo que, dizendo, possa vir a ser desautorizado, é preciso ser identificado e localizado num lugar social. A começar pelos sujeitos midiáticos, estes precisam ser re-conhecidos como tais, e, por isso mesmo, aparecem institucionalmente ligados a uma emissora de televisão (imagem institucional), lugar que autoriza o funcionamento de um telejornal.

Os sujeitos falam a partir de um lugar que ocupam na sociedade. É na “legitimidade” do discurso telejornalístico que se dá o seu re-conhecimento (com o) público. Os lugares sociais se dão à visibilidade no telejornal, materializados em cenários que buscam representá-los no ambiente de trabalho, de atuação e de designação: apresentador no estúdio; repórter nos diferentes espaços sociais internos ou externos; entrevistados em salas de aula de escolas e universidades (professores), quadras de ginásios (jogadores), etc. Tais cenários aparecem institucionalmente marcados pelo símbolo da emissora, exibido constantemente no canto da tela, e os sujeitos que o compõem são “legendados”, ou seja, ao lado da identificação de nomes e cargos aparecem as iniciais do telejornal.

Lugares de inscrição no social, ou de exclusão desse social, só funcionam pela organização da urbanidade, que remete à idéia de um “mundo semanticamente normal”, do sujeito pragmático. Tal organização é regida por um conjunto de diferentes instituições (públicas e privadas) que regulam a vida em sociedade. Na condição institucional, a incumbência do telejornalístico está em informar sobre o andamento ou a interrupção desse sistema organizador, de modo a manter ou re-estabelecer a organização, ou mesmo denunciar a desorganização. É, portanto, pela ordem do discurso urbano que o telejornalismo se pauta.

Nessa confluência de lugares e sujeitos, funcionam também as imagens desses lugares e dos sujeitos neles, que compõem o imaginário. Os cenários, ao seu tempo, colocam em funcionamento essas imagens, suscitando o re-conhecimento ou re-afirmação da organização da urbanidade. Para Pêcheux (1997a) está em jogo a forma como cada

sujeito representa a si e ao outro, bem como o lugar que cada qual ocupa é significado. Tais imagens, resultantes de projeções, apontam para posições no discurso que não correspondem, necessariamente, aos lugares sociais. “Na relação discursiva, são as imagens que constituem as diferentes posições”, explicita Orlandi (2000a, p. 40).

Ao falarmos de jogos de imagens em funcionamento ritual, portanto, não nos referimos simplesmente às imagens dadas à visibilidade, na veiculação telejornalística, mas também ao funcionamento imaginário dessas imagens na associação ao repertório de imagens lembradas. Trata-se de considerar, com base em Pêcheux (1997a, 1997b, 1997c) e Orlandi (2000a), a inscrição, nas imagens, do funcionamento da memória discursiva, estruturada pelo esquecimento, assim, inacessível, e da memória de arquivo, tomada pela lembrança, possível de ser recuperada a qualquer momento.

Nesse jogo envolvendo memória discursiva e atualização, inscrever um dizer

legítimo, ou tornado legítimo no funcionamento telejornalístico, significa legitimar o próprio dizer do telejornal como instituição. A conjunção entre as materialidades verbal e visual reforça esse lugar de evidência. São a imagem, a voz e o nome do sujeito- apresentador que participam da configuração e sustentação da notícia na cabeça da

matéria15, inserido num cenário institucional (estúdio da emissora, do telejornal). Na medida em que aparece como apresentador, autorizado a dizer por se inscrever (ser inscrito) institucionalmente, faz advir um dizer institucional que se quer autônomo.

Quando uma imagem falta, não para se ter uma matéria, mas como parte dessa

matéria, procura-se preencher esse vazio tanto com a imagem (corporal) do repórter, aparecendo no vídeo (passagem do repórter16), quanto com a produção de uma imagem em computador. Esta pode ser uma representação gráfica ou geográfica (mapa, trajeto), ou mesmo uma simulação e reconstituição de uma dada realidade. Ao mesmo tempo em que a inscrição revela a ausência de imagem de uma realidade, ela se valida pela revelação do que

15 Tecnicamente definido como o lead da matéria, conforme observado em Paternostro (1999, p. 138). Texto lido pelo apresentador, dando gancho à matéria.

16 Segundo Bistane e Bacellar (2005), entre as funções cumpridas pela passagem está a de suprir a falta de imagens.

Substituir por: Embora não exista um modus operandis, conforme afirmam Bistane e Bacellar (2005), se aceita tomar para a passagem o cumprimento de algumas funções como, por exemplo, a de suprir a falta de imagens.

não pode mais ser registrado imageticamente. E isso dá ao cenário produzido “ares de realidade”. A imbricação da imagem-apresentador à sua narrativa oral no lugar de imagens de um evento, inscreve no dizer o “verdadeiro do jornalismo”17, ou seja, o gesto de interpretação jornalístico se apresenta como a própria realidade posta a ver.

A falta do verbal pode se dar por ausência de informação, incompreensões,

supressão de áudio ambiente em processos de edição ou outras formas de interdição, apagamento e silenciamento de sentidos. Mas é inclusive nessa falta que a imagem, considerada em sua materialidade, se faz discurso. Em meio a brechas na textualização verbal, também a textualização da imagem expõe a sua discursividade, deixando advir o discurso da imagem.

Ao se interromper, na análise, o ciclo de evidência conduzido por um narrador- apresentador ou um narrador-jornalista, tomados pelos efeitos normatizadores da textualização calcada na coesão e na coerência, pelo estranhamento do ritual, pretendemos fazer com que o efeito notícia se desestabilize no encontro com a falha, constitutiva desse ritual de linguagem.

2.3 (NÃO HÁ) FATOS, (E SIM) VERSÕES

As recentes investigações teórico-metodológicas em Análise de Discurso quanto a procedimentos de análise de imagens e de objetos que se configuram na conjunção de diversidades materiais envolvendo a imagem, como é o caso dos telejornais, instigou-nos a explorar e configurar um percurso capaz de indicar formas de acesso à especificidade material telejornalística.

A opção por analisar telejornais de comunicação de massa como ritual de linguagem fundamenta-se, justamente, na compreensão teórica, explicitada nesta tese, de que todo ritual é constituído pela falha. Como o telejornalismo se sustenta em pré-

construídos que apagam e silenciam a incompletude constitutiva da língua, pela objetivação

informacional, interessa observar a falha na conjunção das materialidades possibilitadoras da notícia.

O texto noticioso, resultante da aplicabilidade de técnicas informacionais e de critérios classificatórios naturalizados em meio a uma divisão estanque entre informação, interpretação e opinião, três grandes categorias jornalísticas, produz o efeito de unidade e coerência, objetividade e informação, no silenciamento da dispersão, constitutiva de todo objeto simbólico.

Sendo a falha inerente ao ritual, a noção de variança, re-significada por Orlandi

(2001), ocupa um lugar central em nossa investigação. Ao mesmo tempo em que possibilita a configuração da notícia, no sentido da re-atualização do acontecimento, estando na “base da textualização”, a variança aponta para a impossibilidade de fechamento do texto, fazendo advir outras versões e remetendo à dispersão dos sentidos. É, portanto, a (im)possibilidade da eficácia da notícia.

Formulando de outra maneira, a noção de variança, apresentada por Orlandi, interessa-nos porque inscreve as versões como foco de interesse deste estudo, no sentido de que o seu funcionamento no telejornal faz olhar para o efeito de fechamento dos sentidos, mas também para a sua abertura. Tratada na relação com outra noção, a de notícia, em telejornalismo, a variança aponta para a repetição e o novo, o mesmo e o diferente, instaurando a evidência ou abrindo para o questionamento. Serve para sustentar, entre outros, o pré-construído notícia informacional, e para explicitá-la como um efeito do uso da técnica e da inscrição ideológica institucional.

Por não considerar a falha um erro ou degradação de uma língua, Orlandi

(2001, p. 65) toma a variança como um “princípio segundo o qual todo texto tem pontos de deriva possíveis, deslizamentos que indicam diferentes possibilidades de formulação”, ou seja, “textos possíveis na margem do texto”. Como “a textualização do discurso se faz com falhas”, o que significa haver a possibilidade de que ele se represente em diversas versões, isto é, “distintas formulações que se textualizam”, conforme explica a autora (2001, p. 94), as versões não são defeitos, mas “o impossível da unidade”.

O deslocamento realizado por Orlandi (2001) quanto às noções de autoria e de comentário, em Foucault, re-significa a variança. Em Foucault (2000a), a variança fica

condicionada à existência de um “texto primeiro”, original, a partir do qual é possível dizer outras coisas, mas sempre dependentes desse texto anterior, nas suas re-tomadas. De certa forma, tal noção de comentário coloca em cena outras questões como as de autenticidade da autoria e da obra.

Posicionando-se por um outro olhar teórico quanto à variança, Orlandi (2001) entende que mesmo havendo repetição, pelo sujeito, e por mais que se mantenha a posição no discurso, o resultado já será outro texto, uma outra formulação. Considerada pela autora (2001, p. 83) como “jogo da paráfrase e da polissemia”, a noção de variante assume, em Análise de Discurso, “outro estatuto heurístico”. Enquanto em Foucault a variança é pensada na relação com o comentário, é re-significada, por Orlandi, como versões.

Na compreensão desta lingüista, a função-autor tem uma dimensão discursivo- enunciativa, enquanto Foucault considera em tal função apenas a dimensão discursiva. Orlandi estende a função-autor para todo sujeito, deslocando, desse modo, da dimensão de “origem de um paradigma”, que é a dimensão foucaultiana de autoria. Para ele, há macrotextos, ou seja, paradigmas a partir dos quais os demais textos se alinham, como ocorre com o comentário.

Inscrevendo a variança na discussão do telejornal, observamos que o “princípio do comentário”, tal como apresentado por Foucault, não dá conta de responder às diferentes

formulações do “mesmo” no funcionamento telejornalístico. As matérias sobre temáticas

idênticas ou aproximativas não retomam necessariamente um “texto primeiro”, porque este não existe como texto origem, tampouco como certificação de originários. Antes mesmo da pauta jornalística, tantos outros textos, no sentido de versões, de abertura ao simbólico, estão em funcionamento. Circulam em documentos, pelas fontes de informação oficiais e oficiosas, por tantos outros sujeitos e meios, materializando-se de diferentes e diversas formas em diferentes e diversos lugares. E assim continuamente, filiando-se a regiões do interdiscurso. Um telejornal que explora uma notícia já divulgada por outro veículo de comunicação não certifica essa matéria como “texto primeiro”.

Assim como o “princípio de autoria” foucaultiano não é aplicável, em nossa perspectiva discursiva, ao funcionamento telejornalístico, sem que seja submetido a re- significações – como Orlandi faz num primeiro momento –, o “princípio do comentário”

também não possibilita trabalhar a variança no telejornal, desvinculado de um deslocamento teórico.

O comentário, em Foucault está atrelado à existência de um autor e obra tidos como “originais”. A condição institucional do telejornalismo não abre espaço, em sua constituição, para a função-autor foucaultiana. Tal função, re-significada nos estudos de Orlandi, é que pode ser observada nessa materialidade18. Novamente, como no caso da variança, é o deslocamento produzido por Orlandi que vai oferecer condições teórico- metodológicas de se observar o funcionamento telejornalístico em sua especificidade.

18 Conferir discussão sobre autoria no telejornalismo na seção seguinte, intitulada “Lugar, função e posição-

3 LUGAR, FUNÇÃO E POSIÇÃO-SUJEITO NO RITUAL

19

Para compreender o discurso telejornalístico como um ritual de linguagem, consideramos o lugar social e a posição-sujeito na constituição dos sentidos noticiados, resguardando-lhes as distinções nas reflexões de Orlandi (2000a). Enquanto o lugar social se refere à forma de inscrição do sujeito na sociedade, que pode se dar de diferentes formas em seus diferentes espaços, normalmente marcado numa relação institucional estabilizada, a posição-sujeito corresponde à posição no discurso, resultante de projeções.

No telejornalismo, do lugar social de jornalista, diferentes lugares de

enunciação se põem em funcionamento na prática constitutiva da produção do efeito

notícia. Centralmente, voltamo-nos para o sujeito-jornalista que enuncia como

apresentador ou apresentador-âncora, repórter e comentarista. Buscamos observar se,

desses diferentes lugares enunciativos, posições ou uma mesma posição-sujeito, quanto à autoria, sustenta diferentes ou os mesmos funcionamentos discursivos na construção da noticiabilidade.

No que diz respeito ao apresentador, a tomada desse lugar enunciativo se deve ao entendimento de ser pela apresentação que se dá a circulação pública do acontecimento ritual. Por mais que este só aconteça numa prática conjunta de sujeitos, seja antes ou durante o “ir ao ar”, o movimento de ritualização do lugar de apresentador produz, na relação com o telespectador, o impacto do “aqui agora” da notícia. Enquanto, do lugar de enunciador, o apresentador está na relação de apresentação da notícia, do lugar enunciativo de repórter, este se coloca como construtor de noticiabilidade. Por fim, o comentarista que, desse lugar de enunciação, interpreta uma realidade noticiada.

Buscamos saber se há espaços para a autoria desses lugares, considerando a(s) posição(ões) discursiva(s) em funcionamento, e de que forma são possíveis ou se encontram interditados e apagados na configuração e circulação da notícia, tendo em

vista a relação com o público.

19 Esta seção também retoma, em parte, discussões reconfiguradas do artigo “ ‘Autoria’ no Ritual

Re-conduzimo-nos, antes, à indagação de Foucault sobre “o que é um autor?”20, buscando entender que relações poderiam ser estabelecidas entre função-autor e posição no discurso, nesse ritual. Distinguimos, conceitualmente, função-autor do que chamamos de

funções institucionais telejornalísticas. Dos lugares enunciativos de apresentador,

apresentador-âncora, repórter e comentarista, os sujeitos enunciam tomados por normatizações do telejornalismo, no cumprimento de tarefas requeridas nesse ritual de linguagem. Por ser legitimado, o lugar no qual o dizer se formula, e a partir do qual se põem em circulação, reveste-se de autoridade, sendo o sujeito, então, autorizado a(o) dizer no acontecimento ritual.

O “princípio do autor”, tido por Foucault como um dos procedimentos internos de delimitação dos discursos, é tomado para pensarmos a(s) posição(ões)-sujeito na produção do efeito notícia no telejornalismo. A autoria (função-autor), como “princípio de agrupamento do discurso”, assim formulado por Foucault (2000a, p. 26), leva a pensar a constituição da especificidade material do telejornalismo e a institucionalização do sujeito dos lugares de apresentador, apresentador-âncora, repórter e comentarista. Considera-se ainda o deslocamento da noção de função-autor em Foucault, produzido por Orlandi (2000b, 2000a), para o “princípio geral” de que a um texto sempre se imputa uma autoria, mesmo este não tendo um autor específico – o que exploraremos ao longo da discussão sobre a autoria. O contraponto estabelecido é entre as posições-sujeito no telejornal e a

função-autor, estando o sujeito institucionalizado na produção do efeito notícia em

funcionamento no telejornal.

Sem querer recair numa problematização sobre autoria, função-autor ou efeito-

autor, já esboçada nos entremeios da análise de discurso, entendemos que investigar as

posições-sujeito no funcionamento ritual, implica re-pensar a relação autoral nesse espaço institucionalizado no qual ao mesmo tempo se requer um dizer autônomo e um sujeito responsável pelo que (se) diz.

O ritual, tomado como acontecimento, acumula a dimensão de ruptura e repetição discursiva. Por essa razão, mobiliza, de um modo específico, as noções de

20 Tomamos como referência a 4. edição do livro O que é um autor?, datada de 2000. O texto Qu’est-ce qu’un

auter, inserido nessa obra, em português, foi publicado pela primeira vez em 1969 no Bulletin de la Societé Française de Philosophie, tendo sido traduzido pela Editora Vega, em 1992.

função-autor e efeito-autor, considerando que estão aí contidas as dimensões enunciativo-

discursiva por um lado, relacionada, neste caso, à notícia, e a dimensão mais discursiva, por outro, ligada à legitimidade. Estamos, aqui, em um lugar limítrofe entre a função e o efeito de autoria. Para Gallo (2007), estes são dois níveis nos quais a autoria pode ser observada pela Análise de Discurso. A função-autor diz respeito ao nível enunciativo-discursivo, e está relacionada com a posição-sujeito. Diz respeito ao “modo de individuação sócio- historicamente determinada”. Num nível discursivo por excelência encontra-se o efeito- autor, definido pela pesquisadora, em trabalho anterior, como “o efeito do confronto de formações discursivas, cuja resultante é uma nova formação dominante” (GALLO, 2001, p. 2).

Antes, contudo, de explorarmos a autoria no telejornal, fazemos uma re- inserção no pensamento foucaultiano, para que a noção de função-autor possa ser primeiramente compreendida nos territórios de quem a formula.

Na comunicação “O que é um autor?”, publicada como um capítulo do livro que recebeu o mesmo nome, Foucault explica que a noção de autor tem a ver com a individualização do sujeito na literatura, na história da filosofia, na história das idéias e dos conhecimentos. Autor e obra passam a ser associados a uma “unidade primeira, sólida e fundamental”.

Nesse mesmo texto, relata que, em outros tempos, os textos que hoje seriam chamados de literários não requeriam uma autoria. O anonimato não era uma dificuldade. A antiguidade (verdadeira ou suposta) era a garantia do autêntico. Diferentemente, os textos que hoje seriam chamados de científicos necessitavam, na Idade Média, da assinatura de um nome de autor para ser aceitos como “portadores do valor de verdade”. Na Escolástica, a legitimidade acadêmica estava relacionada a quem diz. Entre o século XVII e XVIII esse cenário se modifica. Os textos literários começam a requerer um autor. Não se aceita mais o anonimato. No caso dos textos científicos, a verdade passa a ser inscrita no próprio discurso. É por pertencer a um “conjunto sistemático” que ele é aceito como verídico e não pela referência a um autor, apagando-se tal função.

Pelo fato de o autor se tornar passível de punição, ou seja, porque os discursos se tornaram “transgressores”, que os textos, os livros e os discursos começaram a ter

efetivamente autores, conforme Foucault. No final do século XVIII e no início do século XIX se instaurou um “regime de propriedade”: regras sobre direitos de autor, relações entre autores-editores, direitos de reprodução, entre outros21. Inicialmente, o discurso era, em sua essência, um ato colocado entre o sagrado e o profano, o lícito e o ilícito, o religioso e o blasfemo. Com a instauração do regime de propriedade, ele se torna um produto. Re- instaura-se o risco da escrita.

Para esse filósofo, a morte do autor, discutida pela crítica, não teria sido devidamente explorada de modo a explicitar o que isso significava. “A obra que tinha o dever de conferir a imortalidade passou a ter o direito de matar, de ser a assassina do seu autor”. Mas é preciso considerar que “esta relação da escrita com a morte manifesta-se também no apagamento dos caracteres individuais do sujeito que escreve”. Diz que “por intermédio de todo o emaranhado que estabelece entre ele próprio e o que escreve, ele retira a todos os signos a sua individualidade particular”. Assim, “a marca do escritor não é mais do que a singularidade da sua ausência”, sendo necessário “representar o papel do morto no jogo da escrita” (FOUCAULT, 2000b, p. 36-37).

Duas noções são exploradas para explicar essa “morte” anunciada: obra e escrita. As primeiras interrogações focalizam: o que é uma obra? Em que consiste sua

unidade? Que elementos a compõem? Tais perguntas levam-no a outro questionamento: Se o indivíduo não fosse um autor, o que ele escreveu ou disse poderia ser uma obra? Para

esse filósofo, não procede falar em teoria da obra, pois não é possível estudá-la como algo isolado, esquecendo-se do escritor e do autor.