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O JOGO PARAFRÁSTICO NOS TELEJORNAIS

Nosso percurso se faz “nos limites moventes e tensos entre paráfrase e polissemia, os dois eixos que sustentam o funcionamento da linguagem e que constituem o

movimento contínuo da significação entre a repetição e a diferença”, tal como entende Orlandi (2001, p. 20). O necessário encontro entre esses eixos é a possibilidade do deslocamento. Formula-se diferentemente o mesmo, possibilitando sentidos outros. Postos em jogo processos parafrástico e polissêmico, segundo Orlandi (2000), entre o mesmo e o

diferente, o já-dito e o a se dizer, sujeitos e sentidos se movem e significam.

Por mais que se fale sobre o mesmo assunto em telejornais distintos, o sentido

se faz a cada gesto de interpretação do sujeito, por sua inscrição no simbólico. E é

justamente porque a língua é incompleta, não fechando os sentidos e não se fechando aos sentidos, que o processo de significação se faz regido, administrado. Há uma injunção à interpretação. Orlandi (2001, p. 22) explica que “é pela interpretação que o sujeito se submete à ideologia, ao efeito da literalidade, à ilusão do conteúdo, à construção da evidência dos sentidos, à impressão do sentido já-lá”.

Aproximando a noção de interpretação da noção de gesto – este concebido por Pêcheux (1997a, p. 78) como “atos no nível do simbólico” –, Orlandi (2001, p. 25) compreende gestos de interpretação como “prática simbólica”, ou seja, prática discursiva, intervindo no mundo, real do sentido. Com base em outra referência de Orlandi (2004, p. 27), gestos de interpretação significam, na compreensão discursiva da autora, “prática significante que traz em si tanto a corporalidade dos sentidos quanto a dos sujeitos, enquanto posições simbólicas historicamente constituídas, ou seja, posições discursivas (lingüístico-históricas)”.

Em nota explicativa, Orlandi (2004) afirma que demarca sua posição da de Pêcheux. Diz que ele fala em “gestos de leitura”, remetendo a arquivo como discurso documental. Para ela, gesto de interpretação é constitutivo do dizer, “coextensivo ao funcionamento da língua”, ligando-se ao interdiscurso, aos efeitos da ideologia. Desta forma, não restrito à leitura de arquivo.

Em estudo anterior, no qual tematiza sobre a interpretação83, Orlandi (1998b) explica que gesto, na perspectiva do discurso, é empregado para desprender a noção de “ato” da perspectiva pragmática, embora ela não seja desconsiderada. Além disso, a autora também diferencia o gesto do analista do gesto do sujeito comum. Enquanto o primeiro “é

determinado pelo dispositivo teórico”, o segundo “é determinado pelo dispositivo ideológico” (p. 84).

Não obstante sustentarem-se nos mesmos conteúdos, as matérias telejornalísticas, resultantes de gestos de interpretação, não produzem necessariamente os mesmos dizeres, os mesmos sentidos, ainda que estes se mantenham do lado da estabilização. “Dizer de diferentes maneiras produz diferentes sentidos, estabelece diferentes referências imaginárias”, explica Lagazzi-Rodrigues (2006, p. 88). Da perspectiva da Análise de Discurso, portanto, “o mesmo já é produção da historicidade, já é parte do efeito metafórico”, segundo Orlandi (2004, p. 22). Logo, conforme esclarece ainda em outra obra (1996, p. 119), “a mera repetição já significa diferentemente, pois introduz uma modificação no processo discursivo”, constituindo-se em “acontecimentos diferentes”. Essas diferentes construções, abordadas por Orlandi (1996, p. 119), não se reduzem a diferenças de informações, mas resultam de “efeitos de sentido”, já que estamos tratando de discurso e essa é a definição de Pêcheux (1997a, p. 82) para discurso. Desta forma, não reduzir o discurso a informação evita, segundo Orlandi (1996, p. 120), “certa simplificação que é reducionista frente a natureza e ao funcionamento da linguagem”.

Todo dizer é uma versão entre outras possíveis, pois os sentidos e os sujeitos se constituem ao mesmo tempo. Esse é o trabalho da variança, tal como entende Orlandi (2001). Retomando de forma parafraseada uma explicação da autora, por mais que o sujeito repita o mesmo dizer e mantenha a sua posição ideológica, o texto/a formulação já serão outros. Como o dizer é sempre uma versão, não há fatos significando existência autônoma de sentidos, fora das relações de linguagem. Tal compreensão levou-nos a um primeiro deslocamento quanto a um dos pré-construídos do telejornalismo. O que há são versões – dizeres que podem ser esses e outros, dessas e de outras formas, apesar do efeito de evidência factual. O plural, portanto, não é repetição do mesmo multiplicado, mas “a distância constitutiva de toda formulação, deslocamento que impede a repetição estrita, exata”, esclarece Orlandi (2001, p. 95).

Buscamos construir um dispositivo de interpretação, quer seja, a “escuta discursiva”, a qual se refere Orlandi (2000a, p. 60), como o mecanismo capaz de “explicitar os gestos de interpretação que se ligam aos processos de identificação dos sujeitos, suas

filiações de sentidos”. A importância do dispositivo está em considerar a opacidade da língua, já que trabalhar a sua materialidade, isto é, não separar estrutura do acontecimento, implica compreender sua forma material como “forma encarnada no mundo para significar” – palavras de Orlandi (2004, p. 25). Daí a necessidade de se trabalhar o dispositivo analítico na relação com o dispositivo teórico, orientando e reorientando o percurso num ir e vir à teoria.

A passagem da superfície lingüística, ou seja, do corpus bruto, para o objeto discursivo (objeto teórico, de-superficializado), permite, segundo Orlandi (2000a), que se desfaçam os efeitos da ilusão referencial, da ordem da enunciação, resultantes do esquecimento número dois enunciado por Pêcheux (1997c). Pelo objeto discursivo, analisamos as relações entre os dizeres de um e de outro discurso, afetados pela ação da memória, quer seja, diferentes memórias discursivas em funcionamento. É por esse movimento que se observam quais formações discursivas estão funcionando no discurso de modo que os sentidos signifiquem de uma forma e não de outra, uma coisa e não outra. A passagem do objeto discursivo para o processo discursivo resulta da relação estabelecida entre as formações discursivas e as formações ideológicas, que leva a compreender como um objeto simbólico produz sentidos. Inclui-se, nesse processo de construção do dispositivo, a pergunta discursiva formulada pelo analista, que vai nortear a sua análise. No processo de produção de sentidos o mesmo e o diferente são produzidos pela história, tomados pelo deslizamento, tornando possíveis sentidos outros.

O retorno aos mesmos espaços do dizer foi, assim, apontando para uma marca de entrada no material de análise e, concomitantemente, estabelecendo um primeiro recorte no corpus. As matérias, dos quatro telejornais, que expunham acontecimentos cujos conteúdos noticiados se aproximavam, foram colocadas em relações parafrásticas.

Tendo como referência a variança, o corpus específico de análise foi sendo configurado mediante a condição de que o conjunto de notícias, veiculadas pelos quatro telejornais selecionados (Jornal Nacional, SBT Brasil, Jornal da Band e Jornal da Record), focalizasse os mesmos assuntos. Buscamos, com isso, facilitar o estabelecimento de relações parafrásticas, partindo da escalada.

A composição do recorte inicial pela escalada busca observar a primeira formulação do efeito notícia em cada telejornal, em relações materiais do verbal com a imagem, de modo a confrontá-lo com a configuração da notícia no corpo dos telejornais e os efeitos daí advindos. Ou seja, se o momento inicial de apresentação da novidade, tecnicamente funcionando como um chamativo para a notícia configurada no corpo do telejornal, sustenta ou não o mesmo efeito de sentido produzido nas notas, no audioteipe, no comentário, e, por último, na reportagem, etc, considerando que, em geral, é em virtude da existência desses formatos que se formulam os textos da escalada, da passagem de

bloco e da cabeça84 da matéria.

Explicando, ainda, de outra forma, ao explicitar como as versões funcionam nesse conjunto telejornalístico pelo des-encontro das materialidades verbal e visual, interessa saber se o efeito notícia primeiro, gerado na escalada, do lugar enunciativo de

apresentador ou de apresentador-âncora, se sustenta ou se desfaz, se evidencia ou se apaga no conjunto de um mesmo telejornal e no conjunto dos telejornais desses lugares e dos lugares enunciativos de repórter e de comentarista, em uma mesma posição-sujeito ou entre diferentes posições.

Tomando o conceito de relações de força, apresentado por Orlandi (2000a), consideramos o lugar a partir do qual fala o sujeito constitutivo do seu dizer. Nos lugares sociais, hierarquicamente constituídos, se inscreve o que pode ou não ser dito. Explicando, o poder dizer é regulado pelo lugar social do qual se diz. O lugar de autoridade do qual fala o apresentador, em nome da instituição, produz uma dupla validação. Ao mesmo tempo, esse institucional se mostra e se apaga. Assim também acontece com o repórter e o comentarista. Identificados, se apagam no processo. Daí que, no discurso, conforme esclarece a autora, funcionam imagens resultantes de projeções (passagem de situações empíricas para posições-sujeito). Em outros termos, os mecanismos de funcionamento do

discurso repousam nas formações imaginárias.

O recorte do ritual de linguagem telejornalístico, do qual partimos, marcando-se

na e pela responsabilização e desresponsabilização, visa levar a compreender o

84 “Texto lido pelo apresentador para chamar a matéria. Geralmente, contém as informações mais relevantes da reportagem que será mostrada a seguir”. (BISTANE; BACELLAR, 2005, p. 132).

funcionamento das versões, no imbricamento material, (se)marcando ou não (nas) diferenças na construção das mesmas ou de outras imagens do governo Lula, de modo a responder ao incômodo central desta pesquisa, explicitado na Introdução: como o ritual

telejornalístico, que é falho, se estrutura na conjunção verbal-visual, pelo funcionamento e apagamento da autoria, e de que modo apagamentos, silenciamentos ou a exposição à visibilidade interditam sentidos nesse e a partir desse imbricamento.

No conjunto dos telejornais, do total de notícias que focalizam o governo Lula, quatro se repetem, sob o mesmo ou outros enfoques, no Jornal Nacional, no Jornal da Record e no SBT Brasil, sendo três no Jornal da Band. Neste, a notícia sobre “um comunista da presidência da República”, que tem a ver com a assunção de Aldo Rebelo, dá lugar à notícia sobre o cancelamento da compra de pastas de luxo para novos deputados, marcando uma ação de Rebelo como Presidente da Câmara.

Desse compêndio de notícias que compõem nosso corpus de análise, as quais dizem respeito ao governo Lula, partimos daquelas exibidas na escalada dos telejornais, buscando observar a configuração, no des-encontro do verbal com a imagem, desse primeiro efeito notícia. Sendo a escalada o lugar onde se expõe à visibilidade a construção noticiosa a que, telejornalisticamente, se dá mais relevância, pressupondo ou incitando um maior impacto na relação com o público, observamos, em cada telejornal, como são postos à visibilidade esses acontecimentos, quanto ao governo Lula, e quais conjuntos de informações organizam a notícia, em seus efeitos.

Num primeiro momento, apresentamos os recortes das escaladas dos quatro telejornais, definidos pela e a partir da temática do corpus. Em seguida, situamos esse conjunto de noticias, nos respectivos telejornais. Trabalhamos, então, de forma mais específica, estrutura e acontecimento. Observamos a autoria funcionando pela interdição e apagamento nas funções institucionais de apresentador, apresentador-âncora, repórter e comentarista, e como ela participa da composição do efeito notícia no imbricamento verbal- visual.