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É corrente e comezinho rememorar que as alterações históricas (evolução) do papel do Estado quanto à definição, reconhecimento, conteúdo e concretização dos direitos dos cidadãos têm implicações recíprocas: na medida em que um se altera, altera-se o outro. Assim, após a Revolução Francesa de 1789, se tornou cada vez mais difundido e aceito que Estado seria o Estado de Direito de cunho liberal (econômico e político), cujo ápice se deu no século XIX, e que foi gradativamente assumindo outros e novos papéis e obrigações (deveres) e, nessa toada, passou a ser chamado, já no século XX conforme o grau de resposta aos cidadãos, de Estado Social38, Estado de Bem-Estar Social, Estado Providência39 etc. até o (atual) Estado

Regulador40 , quiçá, Pós-Providência41 . Nessa caminhada histórica, foram surgindo diversos

“direitos”, que forçaram um alargamento dos papéis (funções) do Estado, precipuamente a partir do Direito Constitucional e do Direito Civil42 . Essa gama de direitos “novos”, quase

sempre se referiram ao que atualmente se convencionou chamar de direitos sociais, em contraposição semântica aos chamados direitos individuais. Para usar o slogan da Revolução

37 Segundo Paulo Bonavides “Como formas de Estado, temos a unidade ou pluralidade dos ordenamentos estatais,

a saber, a forma plural e a forma singular; a sociedade de Estados (o Estado Federal, a Confederação, etc.) e o Estado simples ou Estado unitário”. (Ciência Política. 10ª ed. 9ª tir. Malheiros: São Paulo, 2000).

38 BONAVIDES. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8 ed. Malheiros: São Paulo, 2007.

39 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 28 ed. Atlas: São Paulo, 2015, pág. 53. 40 SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos. Malheiros: São Paulo, 2014.

41 BATISTA JUNIOR, Onofre Alves. O Estado Democrático de Direito Pós-Providência Brasileiro em busca da

eficiência pública e de uma administração pública mais democrática. Revista Brasileira de Estudos Políticos. n. 98, jul-dez/1998, pág. 119-158.

42 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Os conceitos fundamentais e a

Francesa, no plano histórico o alargamento do campo dos direitos passou dos direitos de “liberdade” para os de “igualdade” e, depois, para os de “fraternidade”. Daí ter-se difundido, não sem crítica, a tese das “gerações” de direitos, correspectivos às palavras do slogan revolucionário francês. “Aerações” que a Doutrina peleja atualmente substituir por “dimensões” - embora permaneça, em certo sentido, fútil essa discussão terminológica para afirmar, de todo modo, que os direitos foram ampliando seu alcance semântico e material, conforme mais resposta tenha, se exija do e possa dar o Estado – tanto de conteúdo quanto de forma. Também se projeta apontar a plurifuncionalidade dos direitos, como tentativa teorética de superação não somente das terminologias, mas para focalizar no papel do Estado43 sob o ponto de vista da

resposta.

Essa discussão, porém, tem o mérito dogmático de separar os chamados direitos individuais dos sociais – ainda que exista outras classes, tais como os coletivos, os difusos, os transindividuais etc. Não olvidando dessas classificações, para os fins deste trabalho interessa apenas a questão da concretização dos direitos pelo Estado, embora se dedique algumas considerações conceituais sobre os direitos sociais fundamentais.

Direitos individuais seriam os que têm por titular o indivíduo, o cidadão considerado per si, como titular de direito material e de correspondente direito de ação para demandar sua efetivação perante o Estado, seja contra outro cidadão seja contra o próprio Estado. São, para utilizar a terminologia ainda em voga, os direitos de “primeira geração”, os “direitos de liberdade”. De outro ângulo, os direitos sociais têm sede na “segunda geração”, isto é, são os “direitos de igualdade”44 . Insista-se que a expressão “gerações” não implica em

superação – eis um dos elementos de rejeição da expressão – dos direitos “pré-existentes”, isto é, daqueles que já eram reconhecidos positivamente pelo Estado e exercidos pelos cidadãos.

43 Vide MENDONÇA, Fabiano André de Souza. Introdução aos Direitos Plurifuncionais. Os direitos, suas

funções, o desenvolvimento, a eficiência e as políticas públicas. Lisboa, 2015 (mimeo).

O Brasil não se mostrou alheio a essa evolução dos direitos no Ocidente, integrando-se a essa ordem de ideias, seja pela influência francesa na Corte durante o Segundo Império seja pela adesão da República ao modelo americano, embora fortemente influenciado pelos Direitos Francês, Alemão e Italiano45, que informaram as bases do Direito Constitucional

e Administrativo brasileiro.

Nessa toada, conforme essas ideias se foram sedimentando no país, foi-se alargando o papel do Estado no tratamento dos chamados “direitos sociais”. Talvez uma primeira demonstração positiva e material na área da saúde tenha sido representada pela Lei Federal n. 1.261, de 31 de outubro de 190446, apesar de ter concorrido para a chamada “Revolta

da Vacina”47 , embora desde 1846 tenha se instituído a vacinação contra bexiga (varíola)48 .

Também a subscrição do Brasil ao Código Pan-Americano de Saúde, em 1924, que marcou sua entrada na posterior Organização Pan-Americana de Saúde – OPAS49, a primeira organização

internacional sobre o tema, é significativa.

O que fica evidente, de todo modo, é que a expansão do papel do Estado não se deu abruptamente ou por revoluções, mas foi um processo paulatino, embora marcos históricos sejam sempre lembrados, como as Constituições do México (1917) e da Alemanha (1919). De igual modo, a evolução da ciência do Direito, as técnicas e métodos de interpretação e a

45 Vide DI PIETRO, Maria Sylvia Aanella. Direito Administrativo. 28 ed. Atlas: São Paulo, 2015, pág. 29. 46 “Torna obrigatorias, em toda a Republica, a vaccinação e a revaccinação contra a variola.” Disponível em

http://legis.senado.leg.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=61058&tipoDocumento=LEI &tipoTexto=PUB

47 RIO DE JANEIRO (CIDADE). Secretaria Especial de Comunicação Social. 1904 - Revolta da Vacina. A maior

batalha do Rio. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro – A Secretaria, 2006. 120 p.: il.– (Cadernos da Comunicação. Série Memória) ISSN 1676-5508

48 Decreto nº 464, de 17 de agosto de 1846, que “manda executar o regulamento do instituto vaccinico do Império”,

que estabelecera: “Art. 29. Todas as pessoas residentes no Império serão obrigadas a vaccinar-se, qualquer que seja a sua idade, sexo, estado, e condição. Exceptuão-se somente os que mostrarem ter tido Vaccina regular, ou bexigas verdadeiras”. Porém, em 4 de abril de 1811, o Príncipe Regente baixara um Decreto (n. 28) com a seguinte ementa: “marca a gratificação das pessoas empregadas na propagação de vaccina nesta corte”. Esse Decreto invocou por fundamento que houvera o Príncipe “mandado organisar nesta Corte, debaixo das vistas do Intendente Aeral da Polícia da Côrte e Estado do Brazil e do Physico-Mór do Reino, um estabelecimento permanente, para que com mais extensão e regularidade se propague e se conserve, em beneficio dos povos, o reconhecido preservativo da vaccina”. Insta destacar que a vacina contra a varíola fora descoberta por Jenner em 1796, quinze anos antes, portanto, de já no Brasil se objetivar vacinar a população. Aliás, o nome vacina decorre do método de imunização contra a varíola, que utilizava o vírus Vaccinia, que infectava vacas (vacca, em latim).

49 PAN AMERICAN HEALTH ORAANIAATION. Basic Documents of the Pan American Health Organization

primazia do Direito Constitucional, certamente, foram decisivos para que se formasse um novo

mainstream nesse campo, com repercussões filosóficas, políticas e sociais.

No campo do Direito Constitucional Brasileiro, a “Constituição Política do Império do Brazil”, de 25 de março de 1824, trouxe uma única referência à saúde, dispondo:

“Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos

Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.

XXIV. Nenhum genero de trabalho, de cultura, industria, ou commercio póde ser prohibido, uma vez que não se opponha aos costumes publicos, á segurança, e saude dos Cidadãos.

Como se vê, a referência foi lacônica e tímida, no bojo de uma vedação genérica às atividades econômicas. Era um momento do ápice das ideias liberais, então o Estado não deveria intervir nas liberdades individuais, senão excepcionalmente – como demonstra o caso; o uso da expressão “inviolabilidade dos direitos civis” que tem por base “a liberdade, a segurança individual, e a propriedade”, além de que nenhuma atividade econômica pudesse ser proibida, corroboram com o pensamento político e econômico da época.

Por sua vez, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891, não empregou nenhuma vez a palavra “saúde”, que somente voltaria a ser citada 43 anos depois, com a promulgação da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934, dispondo (art. 19) competir concorrentemente à União e aos Estados (II) cuidar da saúde e assistência públicas.

Convém destacar que pretendeu a Carta de 1934, segundo seu preâmbulo, “organizar um regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o

bem-estar social e econômico”. No plano histórico, entre essas duas Constituições, podemos destacar os seguintes marcos e fatos: Encíclica Rerum Novarum, do papa Leão XIII (1891); a Primeira Auerra Mundial (1914-1918), a Revolução Soviética (1917), as Constituições do México (1917) e da Alemanha (1919), a adesão do Brasil ao Código Sanitário Pan-Americano (1924), o crash da Bolsa de New York (1929) e início do New Deal, do presidente americano Franklin Roosevelt (1933-1937). Esses eventos foram expressões da superação das ideias liberais clássicas, que impuseram ao Estado e ao Direito uma repaginação, a fim de promover intervenção nas searas econômicas e sociais; também representaram, por outro lado, uma adaptação do capitalismo a esses eventos, que não se mostrou de todo fechado para ideias “socialistas”, mesmo que fabianas50, dando azo ao surgimento da “terceira via” 51 anos depois,

como Novo Trabalhismo inglês, marcado pela ascensão de Tony Blair ao Aabinete Britânico (1997). De fato, a “terceira via” visa a superação da dicotomia “esquerda/direita” ou melhor “socialismo” e “liberalismo”, tendo em vista pretender a “ajudar os cidadãos a abrir seu próprio caminho através das mais importantes revoluções de nosso tempo: globalização,

transformações na vida pessoal e nosso relacionamento com a natureza”, porém adotando por

“moto primordial para a nova política, não há direito sem responsabilidades”52. Os valore da

“terceira via” são: igualdade, proteção aos vulneráveis, liberdade como autonomia, não há direitos sem responsabilidades, não há autoridade sem democracia, pluralismo cosmopolita e conservadorismo filosófico.53

50 A expressão vem de homenagem a “Quintus Fabius Maximus, político, ditador e general da República Romana

(275-203 a.C.) que conseguiu derrotar Aníbal na Segunda Guerra Púnica adotando a estratégia de não fazer confrontos diretos e em larga escala (nos quais os romanos haviam sido derrotados contra Aníbal), mas sim de incorrer apenas em pequenas e graduais ações, as quais ele sabia que podia vencer, não importa o tanto que ele tivesse de esperar”. As ideias fabianas consistiam em chegar ao socialismo de modo gradual, segundo o programa da Sociedade Fabiana, criada em 1895, em Londres; esse programa teve o epíteto de “social-democracia”, embora, atualmente, esse termo não signifique, necessariamente, adoção de teses socialisas. Vide “O que é o socialismo fabiano - e por que ele importa”, disponível em http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2331, acesso em 07/08/2016.

51 Vide GIDDENS, Anthony. A Terceira Via. Col. Pensamento Social-Democrata. Instituto Teotônio Vilela:

Brasília, 1999. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges.

52 GIDDENS, Anthony. op. cit., pág. 74 e 75. 53 GIDDENS, Anthony. op. cit., pág. 76.

A Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, outorgada (decretada) pelo ditador Aetúlio Vargas, sob inspiração fascista, veio a tratar da saúde apontando para uma dupla finalidade: normatização e prestação de serviços, nos seguintes termos:

Art. 16 - Compete privativamente à União o poder de legislar sobre as seguintes matérias:

XXVII - normas fundamentais da defesa e proteção da saúde, especialmente da saúde da criança.

Art. 18 - Independentemente de autorização, os Estados podem legislar, no caso de haver Lei Federal sobre a matéria, para suprir- lhes as deficiências ou atender às peculiaridades locais, desde que não dispensem ou diminuam es exigências da Lei Federal, ou, em não havendo Lei Federal e até que esta regule, sobre os seguintes assuntos:

c) assistência pública, obras de higiene popular, casas de saúde, clínicas, estações de clima e fontes medicinais;

Promulgada em 18 de setembro de 1946, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil também foi lacônica ao dispor sobre a saúde, conferindo competência à União para “organizar defesa permanente contra os efeitos (...) das endemias rurais” (art. 5º, XIII) e legislar dispondo sobre “normas gerais (…) de defesa e proteção da saúde” (art. 5º, XV, b), redação mantida na Constituição da República Federativa do Brasil (art. 8º, XVII, c), promulgada a 24 de fevereiro de 1967, acrescentando, apenas, a competência da União de “estabelecer planos nacionais de educação e de saúde” (art. 8º, XIV).

A Emenda Constitucional n. 1, “promulgada” em 17 de outubro de 1969, reescreveu a Constituição de 1967, mas manteve o mesmo tratamento dado pela Carta original. Porém, com a Emenda Constitucional n. 27, promulgada em 28 de novembro de 1985, logo

após o fim formal da “Revolução de 1964”, acrescentou outros dispositivos à Carta, promovendo uma reforma tributária e determinando que os Municípios deveriam aplicar, em programas de saúde, 6,0% (seis por cento) do valor que recebessem do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) (art. 25, §4º).

No nível constitucional, as Cartas brasileiras foram tímidas ao tratar do tema saúde, como de resto dos demais direitos sociais, ou seja, não foi dado status a esse tema, ainda que houvesse, no plano infraconstitucional, um conjunto de disposições normativas que lograsse apontar para o cuidado com a saúde pública, embora o nível de assistência não fosse universalizado. Realidade que seria radicalmente alterada com a Constituição de 1988.

Então, no nível da legislação infraconstitucional, pode-se destacar a existência, no exercício da competência da União, da Lei Federal n. 2.312, de 3 de setembro de 1954, com “normas Aerais sôbre Defesa e Proteção da Saúde”, e da Lei Federal n. 6.229, de 17 de julho de 1975, que dispunha “sobre a organização do Sistema Nacional de Saúde” - ambas revogadas pela Lei Federal n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, que, na forma da Constituição de 1988, dispôs sobre o Sistema Único de Saúde.

2.3. DIREITOS FUNDAMENTAIS. PRINCÍPIOS E REGRAS CONSTITUCIONAIS DO