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3 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

3.1 EVOLUÇÃO LEGAL NO BRASIL

Como já vimos, a propriedade está sempre vinculada ao momento histórico pelo qual está ligada e com isso teve várias facetas ao longo dos anos, recebendo influência do Poder Estatal e político, bem como do interesse econômico predominante a cada época.

No Brasil não foi diferente. Desde o período colonial, a propriedade e sua função no contexto da sociedade vêm sofrendo alterações dependendo do grupo dominante ou sistema político.

Na colônia tupiniquim a sistemática era a da transferência de prerrogativas de proprietário pelo soberano aos donatários. Neste período, não havia patrimônio privado. O soberano outorgava permissões aos particulares colonizadores responsáveis pela ocupação de nosso país recém-descoberto.

Veio, posteriormente, o regime das sesmarias que consistia em uma primeira preocupação com o bem comum, já que trazia em seu bojo o desenvolvimento do cultivo da terra. Aquele que não tornasse a terra produtiva a perderia para outro que a fizesse. Óbvio que por traz dessa sistemática, estava o interesse da coroa de maior lucratividade, já que servia o Brasil para abastecer a pompa e ócio da coroa portuguesa, contudo pelo menos o interesse de produzir estava latente. Esse regime não foi acolhido pelos colonizadores, que arrebanhavam para si um número cada vez maior de terras, criando verdadeiros latifúndios nas mãos de poucos proprietários. Aliada à monocultura, extração de minerais e utilização de mão-de- obra escrava, esse período foi próspero, possibilitando à coroa portuguesa uma acomodação do ponto de vista do controle de apropriação de terras. Ao final do século XVII, Portugal já tinha perdido controle sobre as terras. Tentou editar medidas legislativas para manter a propriedade das áreas, que foram inócuas, gerando desordem e insatisfações. Diante das pressões e ausência da coroa portuguesa, a

partir daí, a aquisição dos territórios começou a se dar de forma espontânea, legitimando os grandes latifúndios existentes.

Vale salientar que o interesse da coroa portuguesa não era coibir os gigantescos latifúndios geradores de divisas para a Europa, na verdade, não queria perder a propriedade dessas áreas.

A primeira Constituição brasileira, de 1824, ainda no Brasil Império, remetia aos ideais liberais da época. Refletindo uma forma nem um pouco social da visão da propriedade, prevendo como única intervenção a desapropriação, em seu artigo 179.

É nesse clima que o Brasil Colônia tem sua independência decretada, onde uma das primeiras medidas foi a suspensão das sesmarias até a realização de uma Assembléia Geral Legislativa. Vale lembrar que um protagonista da época, José Bonifácio, pregou o fim das grandes propriedades e o confisco das terras não produtivas com a conseqüente reforma agrária, proporcionando o povoamento do recém Brasil independente. Contudo, suas propostas não lograram êxito.

Em 1850 surge a Lei de Terras, opondo-se a sesmarias, dificultando a aquisição de terras que, a partir de então, poderia se dar apenas pela compra.

A Constituição de 1891 nada trouxe de alteração no tema propriedade, mantendo a característica liberalista e de uso quase que ilimitado do direito de propriedade, a não ser pela desapropriação.

O Código Civil de 1916, influenciado pelo Código Napoleônico, além de ideais liberais da classe dominante, não contemplou qualquer manifestação sobre a função social da propriedade, mantendo a filosofia do uso ilimitado, como bem jurídico intangível.

Em meados de 1918, surge no direito um movimento mundial objetivando a relativização dos direitos privados pela sua função social. O bem estar da coletividade passa a ser obrigação do particular e não mais somente da sociedade ou do Estado. A propriedade como ponto forte de afirmação econômica e de classe, submete-se também a esta reflexão.

A Revolução Constitucionalista de 32 foi um levante frente a uma economia concentrada nas mãos da classe dominante e um Poder Estatal cada vez mais opressor, não oferecendo espaço para o benefício de outras frentes que se tornavam latentes no Brasil. Do movimento, resultou a convocação de uma Assembléia Constituinte que foi responsável pela elaboração da Constituição de 1934.

O primeiro registro legal da idéia de função social da propriedade foi sacramentado com a Constituição de 1934, totalmente influenciada pela Constituição Mexicana de 1917 e a de Weimar de 1919. Na Constituição de 1934, vários foram os avanços na esfera social, envolvendo propriedade, trabalho e eleição. Em seus artigos 113, n. 17 e 118, passou a considerar as minas e demais riquezas do solo, como propriedade distinta da do solo para efeito de exploração ou aproveitamento industrial, e que o direito à propriedade não poderia ser exercido contra o interesse social ou coletivo.

Surgiu a Constituição de 1937, na era Getulio Vargas, recebendo forte influência Polonesa. Aqui temos a manutenção da função social da propriedade, porém, com uma diferença, a Constituição de 37 remetia à legislação regulamentar o ordenamento do exercício da propriedade, culminando assim na edição dos Decretos Lei n. 25/1937 (Proteção do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e o n. 58/1937 (Regras de Loteamentos Urbanos e Venda de Lotes). 108

A desapropriação em razão de utilidade pública veio com o Decreto Lei n. 3.665/1941. Este dispositivo está em vigor até os dias atuais.

Na Constituição de 1946, outro grande avanço no que se refere à propriedade, já que o texto da Carta Magna de 46 trazia o vínculo que a propriedade privada deveria ter com o “bem estar social, possibilitando a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos”. Em 1962, a Lei 4.132 definiu os casos de desapropriação por interesse público. Tal procedimento teve origem no conceito positivado na Constituição de 1946.109

Surge em 1964 a Lei 4.504, chamada de Lei Agrária Brasileira ou Estatuto da Terra, dentro do regime militar, onde a concentração do poder na União enfraqueceu Estados e Municípios em competências, além do arrocho econômico. Porém, por incrível que possa parecer, alguns avanços no direito de propriedade foram orquestrados nesta época, como a desapropriação de terras para fins de reforma agrária mediante indenização por títulos da dívida pública.

Foram promulgadas as constituições de 1967 e de 1969, emenda constitucional, onde o artigo 160 trazia em sua redação o preceito de que a ordem socioeconômica deveria promover o desenvolvimento e a justiça social, baseando-

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MATTOS, Liana Portilho. A efetividade da função social da propriedade urbana à luz do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Temas & Idéias Editora. 2003. p. 55.

se na função social da propriedade. “A menção expressa à função social da propriedade como princípio constitucional deu-se naquele momento.” 110

Com o crescimento dos conglomerados urbanos veio, em 1979, a Lei 6.766, dispondo sobre o parcelamento do solo urbano, ordenamento responsável pela reforma do ainda vigente Decreto Lei 58/1937.

Foi na Constituição Federal de 1988 que o povo brasileiro teve o conceito da função social da propriedade expresso de forma mais ampla e passível de aplicação prática, inclusive com sanções ao seu descumprimento. Por mais que seu efetivo emprego esteja ainda distante, várias são as experiências positivas e esperançosas do ponto de vista da consciência coletiva, em vários artigos como o 5°, incisos XII e XIII, 170, 182 e 183 da CF.

De lá para cá, o Estatuto da Cidade, a Lei 10.257/2001 (dispondo sobre diretrizes gerais da política urbana), a MP 2220/2001 (regularização fundiária de áreas invadidas), o Novo Código Civil de 2002, além de outras iniciativas referentes à propriedade e sua função social, bem como os projetos de lei em andamento no Congresso Nacional e Assembléia Legislativa, dão conta da positivação do instituto que, apesar de sedimentado, ainda está sendo aprimorado.

3.2 O ESTADO, A PROPRIEDADE PRIVADA, A FUNÇÃO SOCIAL E SUA