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Arruda (1976) dá tanta importância ao tema que constrói um capítulo especial, falando especificamente sobre a origem do Homem. Inicia alertando o leitor para a precariedade dos dados em direção a um conhecimento seguro, uma vez que os estudos ainda são muito recentes. Por outro lado, registra que muitas descobertas foram ocasionais, feitas por pessoas sem habilitação para dar o devido tratamento científico ao material coletado. Por esses motivos, afirma que “[...] a cronologia sobre o aparecimento do Homem na Terra baseia-se sempre em hipóteses. Existem numerosas classificações das fases do aparecimento, as quais muitas vezes entram em contradição umas com as outras. E não há dados precisos para resolver esse problema.” (ARRUDA, 1976, p. 30).

Ao escrever seu livro didático em 1976, Arruda, no entanto, já dispunha de uma série de elementos que possibilitavam algumas sínteses acerca da origem do Homem, mas, cuidadoso e atento, não deixou de registrar a transitoriedade desses mesmos dados.

Da mesma forma Lima (1988, p. 49), defende que foi o recente desenvolvimento científico que “[...] demonstrou não existir verdades absolutas em ciência, demonstrou que todas as teorias são aproximações, descrições incompletas da realidade, que demonstrou haver limitações inerentes à mente humana.”

Lidar com essa transitoriedade é, para Borloz (1990), professor de Pré-História, trabalhar com a insegurança presente nas ‘verdades’ que o conhecimento científico apresenta. Ele sugere que “[...] ensinar Pré-História pode ser, e entendemos que deve

ser, ensinar a insegurança. Ao aluno emergente do Ensino Médio corresponde quase

sempre uma tendência a procurar, no conhecimento de nível superior, a verdade sobre seus assuntos de interesse.”35 Por isso mesmo, Borloz (1990), enfatiza a riqueza de

possibilidades,

É importante evidenciar sempre que o conhecimento sobre a Pré-História está nas fronteiras da ciência. São freqüentes as notícias de resultados de pesquisas científicas que alteram os conteúdos da disciplina. Na Pré-História, mais do que nas outras disciplinas, fica evidente o caráter não definitivo do que se supõe ser a realidade histórica. (BORLOZ, 1990, p. 85).

Esse também é o enfoque de Santomé (1998) que, ao identificar os benefícios da integração das disciplinas para a formação de um cidadão ‘polivalente’, com capacidade de iniciativa e que saiba lidar com um mundo em mudanças cada vez mais aceleradas, verifica o desserviço prestado pelos livros didáticos entre outras coisas porque demoram a incorporar os novos conhecimentos. Para ele,

[...] é muito difícil atualizar os conteúdos dos livros-texto, o que é visível se nos detivermos a analisar o grau de demora em que as novidades científicas, artísticas, literárias etc., produzidas dia-a-dia, passam a fazer parte do seu temário. Importantíssimas descobertas matemáticas, físicas, biológicas, históricas, artísticas, econômicas etc., demoram muito para ser incorporadas a estes recursos didáticos, mas inundam os meios de comunicação de massas. (SANTOMÉ, 1998, p. 178).

Esse descompasso entre a produção científica e a literatura didática, a lentidão com que se faz a transposição didática dessa produção, contribui para o distanciamento do ‘mundo real’ e o desinteresse por parte do aluno para com a dinâmica da escola e da sala de aula. Parece haver o conteúdo escolar, exigido pelos currículos e pelas avaliações e o conhecimento chamado senso comum, que norteia o cotidiano.

35 BORLOZ, Alexis Acauan. Sobre o ensino de Pré-História. In: Revista Catarinense de História.

Tendo como parâmetros as considerações de Borloz (1990) e Santomé (1998), é possível retornar ao texto didático e, com olhar cuidadoso, fixar-se sobre os dados taxonômicos de que se dispõe e perceber a existência de um tronco comum para os macacos e os humanos. Sem precisar uma datação, Arruda (1976), registra a separação entre eles, sendo que cada grupo segue um processo evolutivo próprio. No caso dos Pongidae, o estágio atual se materializa nos gorilas, chimpanzés e orangotangos e, para os homínidas, a forma é o “Homo sapiens” atual. Para essa introdução ao tema, e para cada um dos ‘estágios’ da evolução36, o autor utiliza entre quatro e cinco parágrafos com relato das características físicas marcantes de cada um. Apesar de ser bastante conciso nas informações, é bem provável que o esquema evolutivo no qual acredita, é o que Foley (1993) chama de modelo clássico, em que o Ramapithecus é o ancestral direto dos hominídeos recentes e a separação dos pongídeos se deu em torno de 15 milhões de anos atrás.

Foley (1993) apresenta uma retrospectiva da estrutura cronológica da evolução

humana, alertando que essa evolução está ligada, sofrendo influências e influenciando, a todas as espécies vivas. Partindo do sistema de classificação proposto por Lineu, no século XVIII, lembra que a abordagem tradicional, baseada na análise da morfologia fóssil associada a depósitos geológicos, propôs uma separação entre hominídeos e símios em torno de 12 milhões de anos atrás.

Os biologistas moleculares situam a divergência entre os hominídeos e outros símios africanos em cerca de 6 milhões de anos atrás, e a melhor evidência para o aparecimento mais antigo dos hominídeos no registro fóssil encontra-se por volta de 5 milhões de anos atrás [...] (FOLEY, 1993, p. 52).

Outra abordagem, a do “relógio molecular”, utilizando como dados as proteínas do soro sangüíneo, os genes virais e o mapeamento do DNA, é didaticamente

36 Arruda apresenta quatro estágios, a saber: o Australopithecus, o Pithecanthropus erectus, o Homo

apresentada por Braidwood (1988) a partir das pesquisas de Sarich, que estabeleceu um relógio evolucionário que sugere a quantidade de tempo necessária para se desenvolverem as diferenças imunoquímicas. Com base nesses estudos, sugere que a separação entre humanos e antropóides tenha ocorrido entre 6 e 12 milhões de anos atrás. A calibração dessas datas, segundo Foley, foi sendo possível,

[...] a partir das revisões das datas moleculares, de uma melhor datação do registro fóssil e, o que é mais importante, do reconhecimento por parte dos paleontologistas de que nem todos os fósseis podem ser relacionados às formas modernas, porém, em vez disso, representam padrões de diversidade do p0assado que não continuaram até os dias de hoje. (FOLEY, 1993, p. 51-2).

Arruda (1976), não se detém muito aos detalhes, mas fortalece a idéia de evolução, quando ilustra o texto com quatro perfis de crânio. Em geral, o crânio, por ter uma massa óssea mais densa é, de todo o esqueleto, a parte que mais se preserva em longas distâncias temporais. Por meio destes, os pesquisadores, especialmente os antropólogos físicos, podem obter muitas informações acerca das condições de vida: hábitos alimentares, longevidade, doenças crônicas, por exemplo. De cima para baixo da página, estão dispostos o “Sinantropo”, o “Homem de Neanderthal”, o “Homem de Cro-Magnon” e o “Homem da Palestina”.37

37 O Cro-Magnon, o Neanderthal e o Homo sapiens, assim como os Pongidae e os Homínidas têm o

privilégio de constar do glossário ao final do capítulo, que não é o caso dos Australopithecus e os Pithecantrhopus. Pode-se ler aqui, certo desleixo para com o mais primitivo?

Figura 9– Crânios dos Principais Hominídeos

Fonte: História Antiga e Medieval (ARRUDA, 1976, p.32).

A ilustração dos crânios é meramente decorativa, uma vez que não reproduz os principais hominídeos apontados no texto, o que possibilitaria perceber as diferenças morfológicas e reforçar a idéia de transformação. O texto traz informações do Australopithecus, do qual não há imagem. Já o Pithecantropus erectus, descrito como um dos estágios evolutivos, na ilustração é representado por um Sinantropo. Especialmente em relação ao “Homem da Palestina”, é preciso registrar que ele não aparece em parte alguma no texto didático. A Palestina, entretanto, é citada como um dos locais onde foram localizados restos do Homo neanderthalensis. Ao invés de contribuir com a elucidação de um tema por si só já bastante denso, confunde o leitor.

Mesmo assim, ilustrar um capítulo da Pré-História com crânios de hominídeos, fortalece o imaginário da evolução, pois eles são a prova cabal e material das transformações físicas ocorridas. A opção de apresentar os crânios de perfil acentua as diferenças, especialmente no que se diz respeito aos traços da arcada supraciliar, do maxilar e do queixo. A reprodução das imagens não obedece a uma escala única, o que dificulta a percepção das diferenças de tamanho dos crânios.

Do Australopithecus, o autor registra a semelhança com os humanos, por conta da forma dos dentes, os traços cranianos e a cintura pélvica, demonstrando o andar bípede e a postura ereta. Do Pithecanthropus, destaca os maxilares maciços e os dentes grandes, o aumento do volume do cérebro e as diferenças em relação à caixa craniana, além da melhor adaptação ao andar bípede e à postura ereta. O Javantropo, o Sinantropo e o Paleantropo são citados como os exemplares mais conhecidos, sendo que, junto ao Sinantropo, segundo o texto, há uma associação de grande quantidade de material produzido em pedra, “[...] demonstra(ndo) o seu elevado estágio de desenvolvimento.” (ARRUDA, 1976, p. 31).

Para o Homo neanderthalensis há também o registro de suas características físicas, com destaque para a capacidade craniana excepcionalmente elevada. O clima frio levou-o à busca de abrigo em cavernas, nas quais “[...] deixaram inúmeros traços de sua existência.” sem especificar de que tipo. (ARRUDA, 1976, p. 31).

Sobre o Cro-Magnon, o último estágio apresentado, Arruda (1976), registra a chegada ao “Homo sapiens”38 por volta de 40 mil anos a.C., com características muito diferentes do Homem de Neanderthal. “Sua grande capacidade craniana demonstra um elevado grau de inteligência, da qual deu provas através do aperfeiçoamento da arte, da magia e da vida social.” (ARRUDA, 1976, p. 31).

38 Ele deve querer dizer, aqui, Homo sapiens sapiens, pela datação que apresenta. O Homo sapiens

Somente a mediação do professor poderia ligar esses aspectos – arte, magia e vida social – à produção de instrumentos e à arte rupestre, apontados no capítulo “Padrões culturais da Pré-História”.

O material arqueológico disponível sobre os tipos hominóides conhecidos já era razoavelmente grande no início da segunda metade do século XX, quando Arruda (1976) escreve seu livro didático. Das sete referências bibliográficas registradas ao final do livro, para o capítulo de Pré-História, três tratam da evolução física e as outras quatro privilegiam a compreensão das características sócio-culturais. As obras são de inclinação eminentemente antropológica, o que se revela no texto didático, dando destaque à descrição do modo de vida das comunidades primitivas, especialmente a partir do Paleolítico Superior. Em relação às características físicas, elas são apontadas, especialmente a partir do estudo de restos de crânios e outros fragmentos ósseos, mas são dados acessórios.

Ao encerrar a discussão em torno da origem do Homem, Arruda (1976) destaca, mais uma vez, a importância do desenvolvimento da capacidade craniana no processo de transformação dos hominídeos. Isso porque identificar os diferentes “estágios” da evolução humana a partir da descrição dos aspectos físicos dos restos encontrados foi o método mais seguro, pelo menos até o aprofundamento dos estudos em Genética. Vários autores consultados por ele39, assim como outras obras40, contemporâneas ou

não, ocupam-se de descrição minuciosa das semelhanças e diferenças entre cada um dos estágios, nem sempre ligando as implicações morfológicas aos impactos nas características da vida social.

39 Como LEROI-GOURHAN, André e outros. La pré-histoire. Paris, 1966; LINTON, Ralph. O Homem:

uma introdução à Antropologia. São Paulo, Livraria Martins, 1971; MUSSOLINI, G. Evolução, Raça e

Cultura. São Paulo, Companhia. Editora Nacional, 1969; e TAX, S. e outros. Panorama de Antropologia. São Paulo, Fundo de Cultura, 1966.

40 Como LEAKEY, Richard. A Origem da Espécie Humana. Rio de Janeiro, Rocco, 1995;

BRAIDWOOD, Robert. Homens Pré-Históricos. 2. ed. Brasília, UnB, 1988; CHILDE, Gordon Vere. A

Nesse sentido, a obra de Braidwood (1988) é de grande auxílio. De forma bastante didática, ele discorre sobre os hominídeos, evidenciando o(s) pesquisador(es), os locais onde foram encontrados. Descreve as características físicas de cada um e acrescenta alguns dados de caráter cultural. Dos Australopithecus, apenas para exemplificar, afirma terem sido fabricantes – ou pelo menos usuários – de ferramentas, serem bípedes e terem passado por crescimento do crânio e redução dos caninos.

Arruda (1976) reforça ainda o alerta para a lacuna que existe na história da Paleontologia dos homínidas, afirmando que só a localização de mais material fóssil poderá completar o quadro dos antepassados do Homem. Vale lembrar, novamente, o ritmo com que os conhecimentos científicos são incorporados aos textos didáticos. Nesse sentido, é importante frisar que os estudos acerca das origens da humanidade, apenas recentemente deixaram de procurar o “elo perdido” no processo de hominização. E, para dar mais ênfase à necessidade de mais pesquisas na área, há um texto de leitura complementar, ao final do capítulo, extraído da obra de Linton (1968), que destaca justamente as lacunas sobre o conhecimento dessa fase da vida humana. Mesmo com uma série de outras publicações mais recentes, inclusive traduzidas para o português, o autor, identificado na página de rosto do livro didático como professor de cursos universitários, faz referência a um texto datado de 1941 que, não desmerecendo sua importância histórica e historiográfica, já estava superado em muito na atualidade das informações sobre o tema enfocado. Essa dificuldade de atualização contribui para o distanciamento do ‘mundo real’ e o desinteresse por parte do aluno para com a dinâmica da escola e da sala de aula e, por outro lado, permite a cristalização de certa verdade que o sistema educacional pretende cristalizar.

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