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B) A Capacidade de Imaginação Produtiva

1. Capítdlo 1 – Todo Jdízo é Reflexivo e a Capacidade de Imaginação como Exibição

1.8. A Exibição (Darstellung)

É sabido que, para Kant, a fonte de significação da discursividade é sua referência explícita à sensibilidade, que um pensamento só conta como experiência se há um vínculo intrínseco entre conceitos e intuições. É sabido também que, para ele, os objetos são constituídos a partir do múltiplo sensível apreendido e ordenado pelas sínteses dirigidas por conceitos.

Pois bem, a exibição (Darstellung) é a ação de estabelecer o vínculo intrínseco entre intuições e conceitos ao apresentar ou inscrever o objeto do conceito na intuição (Cf. EE 26, 56)54.

Kant pensa a exibição como um estágio necessário na preparação para a aplicação ou simples associação (como no juízo estético reflexivo) de qualquer conceito a um múltiplo da intuição, pois qualquer aplicação desse tipo requer que o conceito seja ligado a suas possíveis instanciações. Quer dizer, quando o conceito de um objeto é dado, a função do juízo no uso desse conceito para a cognição consiste na exibição, i.e., pôr ao lado do conceito uma intuição que lhe corresponda ( Cf. KrV A141/B180, 146).

A capacidade de imaginação pode realizá-la de dois modos. O primeiro é o esquematismo, 54 Kant às vezes fala da exibição de um objeto de um conceito e às vezes da exibição do próprio conceito. Penso que é mais claro falar da exibição de um objeto do conceito na intuição, pois “objeto” significa uma instância possível do conceito.

um processo “demonstrativo” e “direto” (KU 255-6, 196) exigido para a determinação do particular, para subsumi-lo sob um universal (KrV A137-8/ B176-7, 144-5). Os esquemas transcendentais são a exibição dos conceitos como determinações do tempo (KrV A138-9/ B177-8, 145) (p.ex., substância: permanência do real no tempo; causalidade: seqüência necessária de eventos etc); com isso, eles implicam que as sínteses da capacidade de imaginação sejam realizadas segundo tais conceitos, na medida em que eles são as regras da síntese do múltiplo em relação à unidade originária da apercepção (KrV A142/ B181, 146) para que as sensações sejam inteligíveis. É essa exibição realizada pela capacidade de imaginação que promove a aplicação ordinária de conceitos, e é por ela ser uma condição transcendental que se dá a necessidade e universalidade do conhecimento científico.

O segundo modo em que a faculdade de imaginação realiza a exibição é o simbólico, o modo “analógico” e “indireto” (KU 256, 196). Esse processo se dá no âmbito do juízo reflexivo, quando a predicação não é sobre o objeto, mas sobre as faculdades do sujeito – e com isso, não se dá a subsunção de um particular a um universal, mas sim a procura de um universal para um particular. O simbolismo é a construção de representações da capacidade de imaginação, as idéias estéticas do gênio (Cf. KU 256-9, 196-8). Essas se dão quando há um excesso de material intuitivo apreendido pela capacidade de imaginação, de modo que não existem conceitos capazes de subsumi-lo (KU 193, 159), sendo assim impossível sintetizar. Então, a capacidade de imaginação procede por analogias (símbolos) para exibir (KU 256, 196-7), utilizando conceitos que só indiretamente se relacionam àquela sensação, fornecendo não um só conceito, mas toda uma família de conceitos na tentativa de abarcar o que é intuído e que parece inefável (KU 195, 160) (p.ex., a luta contra os moinhos vistos como gigantes por Dom Quixote para conceitualizar as dificuldades que os homens criam para si ou as figuras do demônio para conceitualizar o mal). Esse processo de exibição permite a criação de obras de arte (KU 192, 158-9), a linguagem metafórica (KU 256-7, 196-7) e ajuda a tornar sensíveis idéias suprasensíveis (KU 257-8, 197-8).

No esquematismo (no juízo determinante), a capacidade de imaginação produtiva é submissa ao entendimento (KrV B152, 131), regulada por ele; no simbolismo (no juízo de gosto) o entendimento está “a serviço” da capacidade de imaginação (KU 71, 88), logo, essa é selbsttätig (auto-ativa, espontânea) (KU 69, 86), capaz de “entreter um livre jogo” (KU 28, 61-2) com aquele, um esquematismo sem conceitos (KU 146, 133).

Há ainda o problema de que Kant trata a exibição como função do entendimento (EE 30, 60) e da capacidade de julgar (EE 25-6, 56), além da capacidade de imaginação (AP 167). Mas uma vez que entendimento é a síntese da capacidade de imaginação ligada à apercepção (KrV A119, 150), e por isso, os conceitos puros do entendimento são regras da síntese do múltiplo à unidade

originária da apercepção realizada pela capacidade de imaginação produtiva (KrV A127, 159), a exibição é um processo do entendimento apenas na medida em que ela segue as regras desse. Por outro lado, se a faculdade de julgar é a capacidade de subsumir sensações sob conceitos (KrV A132 B171, 142), é razoável supor que a exibição é função dessa faculdade somente na medida em que a subsunção implica a exibição do objeto do conceito na intuição (KU 25-6, 56; KrV A140-1 B179- 80, 145-6). E a exibição é uma atividade da capacidade de imaginação na medida em que é essa faculdade que realiza a síntese pura (KrV B151, 130) e que produz esquemas (KrV A140 B179, 145) e símbolos (KU 255-6, 196) – elementos sem os quais a exibição não se realizaria.

Mas vejamos com mais calma essa confluência de três faculdades para a consecução da exibição. Primeiramente, pensemos sobre ela ser atribuída à capacidade de imaginação e à capacidade de julgar. É preciso lembrar que ainda que o processo de reflexão seja a partir de baixo, a capacidade de imaginação precisa já estar operativa no nível perceptivo na apreensão do múltiplo. E se essa apreensão deve fornecer a base para a reflexão lógica que gera um conceito empírico, ela precisa apresentar algo “universal em si” ou, o que é o mesmo, a exibição de “um conceito ainda não determinado”. Pois a menos que a capacidade de imaginação possa desempenhar essa função, não haverá conceitos empíricos e assim não haverá função determinante do juízo. Mas, enquanto é a capacidade de imaginação que produz esquemas que são reconhecidos como exibições do que é pensado em um conceito refletido, fica ao juízo reconhecer o acordo real entre o particular apreendido e o conceito. Quer dizer, o juízo é requerido para se tomar o que é exibido pela capacidade de imaginação como instanciando o que é pensado no conceito. Nesse sentido, o juízo é profundamente envolvido na exibição.

Porém, devemos nos aproximar da questão sobre qual papel a exibição deve desempenhar na harmonia perguntando como essa atividade pode ser entendida nos termos mais gerais possíveis, abstraindo de seu papel obtuso na concepção efetiva. Na secção 35 da Crítica da Faculdade do

Juízo, Kant diz: “a liberdade da capacidade de imaginação consiste precisamente no fato de que ela

esquematiza sem conceitos”55 (KU 146, 133). Como a capacidade de imaginação apreensiva produz

substitutos reflexivos de intuições unificadas (as "formas de intuições possíveis”), a capacidade de imaginação pode produzir esquemas refletidos, “regras” para a unificação temporária de intuições que guiam a supervisão apreensiva não-conceitual do múltiplo. Isso talvez explique porque Kant primeiro fala da exibição como uma atividade da capacidade de imaginação, quando o ponto em questão é a efetiva aplicação conceitual, e então muda a ênfase em sua discussão da reflexão tratando a exibição como expressando o papel do entendimento na harmonia.

Embora à primeira vista confusa, essa dupla identificação da exibição como um poder da 55 “[D]aß die Einbildungskraft ohne Begriff schematisiert, die Freiheit derselben besteht” (KU 146, 133).

capacidade de imaginação ou do entendimento, mantém o duplo caráter que Kant confere ao esquematismo e à capacidade de imaginação em geral. A capacidade de imaginação opera a serviço do entendimento e da sensibilidade e inclui em suas habilidades elementos que podem ser vistos como nativos das duas faculdades. E, como vimos, o esquematismo é a atividade da capacidade de imaginação especialmente em sintonia com os requerimentos do entendimento de que conceitos sejam aplicáveis ao múltiplo da intuição. Precisamente por causa disso, é através da exibição que o entendimento entra na harmonia. A harmonia das faculdades relevante à experiência estética só é presente quando a capacidade de imaginação tem livre reino e Kant freqüentemente fala da harmonia apenas em termos da liberdade da capacidade de imaginação. Mas é importante notar que a harmonia é uma relação recíproca. O entendimento também tem uma capacidade geral que deve se sobressair na reflexão estética, embora de uma maneira que não impeça a liberdade da capacidade de imaginação. Assim Kant afirma que a atividade imaginativa de fornecer construções possíveis do múltiplo da intuição preenche o requisito bastante geral do entendimento durante a reflexão que unifica o múltiplo da intuição é, transientemente, apresentado a ela. A liberdade da capacidade de imaginação não é “completa”; se o que é significado por liberdade é liberdade da satisfação de qualquer interesse do entendimento. Mas isso não é o que Kant entende por “livre jogo” da capacidade de imaginação.

As expressões “conformidadade a leis (Gesetzmässigkeit) sem lei” (KU 68-9, 86) e “conformidade a fins (Zweckmässigkeit) sem fim” (KU 44, 72) servem para assinalar que, não obstante a liberdade da capacidade de imaginação, a legalidade do entendimento precisa também participar da livre harmonia. Quer dizer, a liberdade da capacidade de imaginação demanda ainda uma referência às regras, embora não uma sujeição a elas. A capacidade de imaginação em sua liberdade pode se conformar a esse requerimento porque

se pode compreender bem que precisamente o objeto pode fornecer-lhe uma tal forma, que contém uma composição do múltiplo, como a capacidade de imaginação – se fosse entregue livremente a si própria – projetá-la-ia em concordância com a legalidade do entendimento em geral (KU 69, 86)56

.

Tudo isso nos permite concluir que a diferença entre o juízo determinante e o reflexivo consiste no modo em que se dá a exibição: se ela é ou não regrada (conceitual ou aconceitual), respectivamente. O que faz com que a exibição seja um ponto fundamental para entender o processo de aplicação de conceitos (o juízo determinante), a especificidade da experiência estética (o juízo de gosto) e as relações entre a capacidade de imaginação e o entendimento.

56 “[L]äßt sich doch noch wohl begreifen: daß der Gegenstand ihr gerade eine solche Form an die Hand geben könne,

die eine Zusammensetzung des Mannigfaltigen enthält, wie sie die Einbildungskraft, wenn sie sich selbst frei überlassen wäre, in Einstimmung mit der Verstandesgesetzmäßigkeit überhaupt entwerfen würde” (KU 69, 86).

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