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Capítdlo 3 – A Exibição Simbólica

3.3. O Gênio

Agora sim podemos procurar entender o que acontece na arte bela, mas que não acontece nas outras artes: a comunicação de idéias estéticas.

Segundo Kant, o fruidor de uma obra da arte bela deve possuir a consciência de que ela não é natureza, porém a conformidade a fins presente na forma da obra deve parecer de tal modo livre das coerções de regras arbitradas pelo gosto que faça com que essa obra pareça um produto da natureza. Portanto, a obra de arte bela deve ser intencional, mas não deve parecer intencional (caso pareça, ela será fruto da arte mecânica, e não se parecerá com a natureza, pois revela o conceito que a fundamenta e a natureza não se fundamenta em um conceito).

Um produto da arte, porém, aparece como natureza pelo fato de que, na verdade, foi encontrada toda a

exatidão no acordo com regras segundo as quais, unicamente, o produto pode tornar-se aquilo que ele deve ser,

mas sem esforço, sem que transpareça a forma acadêmica, isto é, sem mostrar um vestígio de que a regra tenha estado diante dos olhos do artista e tenha algemado as faculdades de seu ânimo (KU 180, 152)132.

Kant define o gênio como o talento, i.e., dom natural, que dá regras à arte. E conclui que, 129 “[D]ie Kultur der Gemütskräfte zur geselligen Mitteilung befördert” (KU 179, 151).

130 “Schöne Kunst ist Kunst des Genies” (KU 181, 153).

131 Acerca da temática do gênio, pode-se consultar (LORIES, 1998) e (DESMOND, 1998).

132 “Als Natur aber erscheint ein Produkt der Kunst dadurch, daß zwar alle Pünktlichkeit in der Übereinkunft mit

Regeln, nach denen allein das Produkt das werden kann, was es sein soll, angetroffen wird; aber ohne Peinlichkeit, ohne daß die Schulform durchblickt, d. i. ohne eine Spur zu zeigen, daß die Regel dem Künstler vor Augen geschwebt, und seinen Gemütskräften Fesseln angelegt habe” (KU 180, 152).

como esse talento do artista é inato, ele pertence à natureza; o que permite que ele diga que o gênio é a disposição inata da mente pela qual a natureza dá regras à arte (KU 181, 153). Assim, o gênio é apenas um porta-voz da natureza.

Desse modo, arte bela é a arte do gênio:

Pois cada arte pressupõe regras, através de cuja fundamentação um produto, se ele deve chamar-se artístico, é pela primeira vez representado como possível. O conceito de arte bela, porém, não permite que o juízo sobre a beleza de seu produto seja deduzido de qualquer regra que tenha um conceito como fundamento determinante, por conseguinte que ponha como fundamento um conceito da maneira como ele é possível. Portanto, a própria arte bela não pode ter idéia da regra segundo a qual ela deva realizar o seu produto. Ora, visto que, contudo, sem uma regra que o anteceda, um produto jamais pode chamar-se arte, assim, a natureza do sujeito (e pela disposição da faculdade do mesmo) tem que dar regra à arte, isto é, a arte bela é possível somente como produto do gênio (KU 181-2, 153)133.

“Gênio”134 é a originalidade exemplar da naturalidade do uso livre dos poderes cognitivos

(capacidade de imaginação e entendimento). Essa definição se esclarece se observarmos que o gênio possui quatro características distintivas (KU 182-3, 153-4):

1) originalidade; por oposição à habilidade para seguir regras – é a contribuição da capacidade de imaginação ao gênio: ele possui uma livre finalidade da exibição realizada por essa capacidade, que permite que ele crie idéias estéticas;

2) exemplaridade; i.e., seus produtos podem ser seguidos, são passíveis de ser tomados como regras, não são meros absurdos “originais” – esta é a contribuição do entendimento ao gênio: como talento artístico, é conceitualmente direcionado, não determinado;

3) naturalidade; ele não pode explicar como ele chegou a seu produto; porque possui uma livre finalidade através da livre harmonia da capacidade de imaginação com a legalidade do entendimento, assim, não pode ser explicada como regrada, tem que ser tida como natural.;

4) artisticidade; por oposição à cientificidade, é um poder fazer, não necessariamente um saber fazer; quer dizer, o dom natural ou talento para a originalidade artística que pode se tornar exemplar não está sob o poder (“Gewalt”: poder de determinação conceitual) do artista – a determinação conceitual está na ordenação teórica do múltiplo da sensibilidade pelo cientista ou na ordenação prática da vontade pelo homem moral. O gênio escapa à determinação conceitual, não se pode entender univocamente a auto-formação natural pela qual desvios e modelos coexistem em uma obra – disso surgem as várias 133 “Denn eine jede Kunst setzt Regeln voraus, durch deren Grundlegung allererst ein Produkt, wenn es künstlich

heißen soll, als möglich vorgestellt wird. Der Begriff der schönen Kunst aber verstattet nicht, daß das Urteil über die Schönheit ihres Produkts von irgendeiner Regel abgeleitet werde, die einen Begriff zum Bestimmungsgrunde habe, mithin einen Begriff von der Art, wie es möglich sei, zum Grunde lege. Also kann die schöne Kunst sich selbst nicht die Regel ausdenken, nach der sie ihr Produkt zustande bringen soll. Da nun gleichwohl ohne vorhergehende Regel ein Produkt niemals Kunst heißen kann, so muß die Natur im Subjekte (und durch die Stimmung der Vermögen desselben) der Kunst die Regel geben, d. i. die schöne Kunst ist nur als Produkt des Genies möglich” (KU 181-2, 153).

134 Kant define o gênio como uma faculdade, mas fala dele como se fosse o artista; o que não cria problemas se tivermos em mente que o artista é quem tem essa faculdade muito desenvolvida.

interpretações possíveis de uma obra.

Essas quatro características são possíveis porque o gênio é aquele que possui uma relação entre capacidade de imaginação e entendimento tal que o torna capaz de descobrir idéias estéticas e expressá-las de modo que aquela sintonia entre capacidade de imaginação e entendimento que ele possui, que é não-governada conceitualmente, e, por conseguinte, "inefável", se torna comunicável. Então, para a beleza artística, a mera conformação ao gosto não é suficiente, é preciso que o gênio esteja presente. Pois bem, o que é exatamente que o gênio contribui à obra? A resposta de Kant é: espírito (Geist). “Espírito, em sentido estético, é o princípio vivificante no ânimo” (KU 192, 159)135, e ele vivifica através de um jogo das faculdades que se mantém por si mesmo e ainda

fortalece as capacidades de imaginação e entendimento para ele (Id. ibid.). Por isso, esse espírito (o princípio vivificante) é “a faculdade da exibição de idéias estéticas” (Id. ibid.)136. O espírito

expressa a sintonia causada pelas idéias descobertas pelo gênio, através da (1) apreensão do jogo da capacidade de imaginação e da (2) unificação do jogo apreendido em um conceito comunicável apesar de não coagido por regras. Esse conceito expressa-se indeterminadamente através das idéias estéticas, e é original e exemplar (e assim o responsável pela originalidade e exemplaridade do gênio). Em resumo, a contribuição do gênio para a obra é a vivificação das faculdades, i.e., ele imprime espírito à obra para além da mera adequação a regras acadêmicas do gosto; essa vivificação é conseguida através da exibição de “idéias estéticas” que comunicam o conceito que o gênio tem em mente. No que se segue tentaremos esclarecer o que são essas idéias estéticas.

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