• Nenhum resultado encontrado

2 1 Homem e terra

3. EXISTÊNCIA E ESPAÇO

É importante esclarecer o perfil do "homem" que comparece nas páginas de Ópera

dos mortos e Pedro Páramo. Não se pode entender completamente a universalização das

obras dos escritores sem compreender a natureza do ser que é construído pela gênese criadora dos romancistas. Trata-se do homem em busca de uma verdade que não sabe exatamente onde está e que se encontra desorientado diante da falta de logicidade para os fatos da vida. A partir do cenário regional o texto levanta implicações que se referem ao sentido da existência, ou seja, a uma concepção ideológica mais ampla que se relaciona com o destino do homem e sua razão de ser na terra. A tendência para o monólogo interior, a análise introspectiva de fundo existencialista e o sentimento de amargura como resultados de uma culpa ancestral que se explica tão-somente pela presença do eu no mundo caracterizam as personagens principais de

Ópera dos mortos e todas as personagens de Pedro Páramo.

O perfil do "homem", objeto de investigação ontológica, só é materializável à medida que está em constante relação com o mundo das coisas. Embora em Ser e tempo (2001-2), poucas vezes Heidegger use o sintagma "homem", este pode ser entendido pela estrutura do Dasein, traduzido na versão que se utilizou neste trabalho por "pre-sença"43

. É o

43

É necessário esclarecer os motivos pelos quais em Ser e Tempo preferiu-se utilizar a expressão pre-sença para traduzir Dasein: A tradutora assim se explica: "Pre-sença não é sinônimo de existência e nem de homem. A palavra Dasein é comumente traduzida por existência. Em Ser e tempo, traduz-se, em geral, para as línguas neolatinas pela expressão 'ser-aí', être-là, esser-ci etc. Optamos pela tradução de pre-sença pelos seguintes motivos: 1) para que não se fique aprisionado às implicações do binômio metafísico essência-existência; 2) para superar o imobilismo de uma localização estática que o 'ser-aí' poderia sugerir. O 'pre' remete ao movimento de aproximação, constitutivo da dinâmica do ser, através das localizações; 3) para evitar um desvio de interpretação que o 'ex' de "existência" suscitaria caso permaneça no sentido metafísico de exteriorização, atualização, realização, objetivação e operacionalização de uma essência. O 'ex' firma uma exterioridade, mas interior e exterior fundam-se na estruturação da pre-sença e não o contrário; 4) pre-sença não é sinônimo nem de homem, nem de ser humano, embora conserve uma relação estrutural. Evoca o processo de constituição ontológica de homem, ser humano e humanidade. É na pre-sença que o homem constrói o seu modo de ser, a sua existência, a sua história etc". (SCHUBACK, Márcia Sá Cavalcante apud HEIDEGGER, 2001, p. 309)

ser da pre-sença que determina o ente que o homem é. O ente pertence ao nível ôntico,

enquanto o ser pertence ao nível ontológico. O ser está em toda parte, manifesta-se em todas as ações humanas. No entanto, não podemos considerá-lo de um ponto de vista externo, pois ele não se esgota na sua exteriorização. A formulação do sentido do ser é um indício de que possuímos uma vaga idéia do ser por uma apreensão espontânea e imediata do ente. Não se sabe, de fato, o que é o ser. Mas já quando se pergunta o que é ser, mantém-se numa compreensão do é, sem que se possa fixar conceitualmente o que significa esse é. Heidegger chama esta compreensão de concepção pré-ontológica. É necessário partir das coisas como se apresentam para encontrar o ser. Na verdade, o ser não é passível de definição e também não se deixa determinar em seu sentido por outra coisa, nem como outra coisa. A sucessão temporal significa o incessante devenir em que o ser se encontra e, por isso, não se deixa apanhar em um estado definitivo. A definição do ser revela-se fugidia também porque o ser dos entes não pode constituir-se por outro ente. No entanto, Heidegger esclarece que "a impossibilidade de se definir o ser não dispensa a questão de seu sentido, ao contrário, justamente por isso a exige" (2001, p. 29). Assim sendo, o movimento contínuo de dar forma e sentido às coisas impõe a necessidade de flagrar o ser como um "ato" e não como coisa formada.

A essência da pre-sença reside na sua existência. A existência deve ser entendida como a possibilidade de o ser comportar-se desta ou daquela maneira. Através dos atos de existir, o homem atualiza o seu ser, define-se, modifica-se. No vocabulário existencialista,

existir não constitui sinônimo de ser. As pedras são, mas não existem, uma vez que não

podem alterar nada em sua essência predefinida. Com efeito, a existência não é um estado, mas um ato, a própria passagem da possibilidade à realidade, como indica a terminologia do termo: existir significa partir daquilo que se é (ex) para se estabelecer (sistire) no nível do que antes era apenas possível.

A pre-sença sempre compreende a si mesma a partir de sua existência em contato com o mundo, com as coisas, com o outro. Uma vez que a essência da pre-sença consiste em suas relações originárias com o mundo, a compreensão do ser, própria da pre-sença, inclui, de maneira igualmente originária, a compreensão de mundo e a compreensão dos elementos que se tornam acessíveis dentro do mundo. Heidegger chama o questionamento sobre a estrutura da pre-sença de existencialidade. A necessidade de uma análise existencial da pre-sença já se encontra delineada na sua própria constituição ôntica, segundo o autor. O alvo de Heidegger é construir uma ontologia do ser. O problema central do pensamento heideggeriano é a busca do sentido do ser. Nesse sentido Paul Folquié anota: "A filosofia de Heidegger é aparentemente uma filosofia da Existência. Porém, a interpretação da Existência não é mais do que uma preparação para a resposta à pergunta mais ampla, acerca do Ser" (1961, p. 69). De fato, o ser é a base da conexão ontológica do homem com o mundo e a existência pressupõe a constante atualização do perfil que o homem impõe a si e ao outro. O estudo sobre o ser corresponde à investigação do homem em suas possibilidades existenciais que só cessam com a morte.

A materialidade da ciência cartesiana imergiu o homem no contexto da vida telúrica, cercando-o de uma proximidade de coisas e não de atos. A realidade histórica do homem, esse conjunto de ações e reações em curso, inserir-se-ia, segundo essa perspectiva, num conjunto maior, numa presença absorvente, em que a dimensão natural ultrapassaria a dimensão propriamente humana. A experiência exterior, conferindo ao homem informações acerca da realidade ao redor, daria consciência das coisas naturais e das coisas humanas, indiferentemente. O universo do conhecimento seria advindo do conjunto de entidades objetivas. Parece ser uma inclinação ingênita ou natural da mente humana decifrar a realidade como coisa conhecida ou percebida. É nesse mesmo espetáculo objetivo que se expõe à vista humana, em variadas formas ou figuras, que a ânsia de saber sempre foi buscar os esquemas e categorias para a interpretação da realidade total.

Em Heidegger, o homem não é a criatura passiva, "criado" por alguma entidade ou dela proveniente. Ele é o "criador" do mundo existente. Neste caso, pode-se afirmar que a existência humana não consiste em sua pura realidade empírica ou perceptiva em seu estar-aí como determinação espácio-temporal; a verdadeira existência do homem consiste em instituir o seu próprio destino no modo como se relaciona com os seres ao seu redor. O interesse que as filosofias do ser exterior demonstraram na compreensão da relação "homem-coisa" deslocou-se para a esfera da interioridade e da subjetividade humanas. O tratado filosófico Ser

e tempo coloca o ser à base de um fazer originário, um viver criador, anterior a toda essência,

toda matéria. A realidade, antes vista como a adequação do ser a um modelo predeterminado, mistura-se com a sua pura execução. O mundo não é concebido como estático, material e acabado, porque se revela ao homem para ser utilizado e, portanto, só se manifesta em seu relevo próprio a quem vai a ele numa atitude prática. Nada há que venha de fora ou de dentro que o homem deva seguir ou obedecer senão por volição pessoal. O homem não é um ser feito, mas um ser que se faz e a sua única predeterminação é a de ter de se fazer até seus últimos detalhes.

A estrutura do comportamento humano tornou-se o tema preferencial da meditação filosófica como questão referente ao desempenho metafísico do homem. No ato de existir, as "ações" humanas são anteriores às determinações do ser. O ser mantém-se, desta forma, como contínua conservação e reiteração de um mesmo ato. A coisa produzida continua perpetuamente ligada ao produzir-se fundador e o sentido da relação "ser-mundo" está em seu próprio fazer-se. A "forma" nada mais é do que um "formar-se". Tal impulso de dar forma para instituir um cenário de vida substituiu a pura contemplação do já formado. Da díade pessoa-coisa, a ênfase passou do segundo para o primeiro termo. Portanto, em vez de o homem encontrar-se inserido num mundo que independe do ser, ele é o próprio instaurador do sentido do mundo. Na possibilidade de transcender o meramente dado, descobre-se a

realidade substancial do homem. A evolução interna do homem não é um sistema fechado; sua essência reside no livre defrontar-se com o horizonte aberto da transcendência. Não somos humanos, pois, como se é pedra, céu ou árvore, mas somos convocados à humanidade, isto é, tornamo-nos humanos.

Uma vez que o ser está em constante transformação, não há identificação com nenhuma forma fixa. O homem, como ser-no-espaço, é uma proposição de um projeto de vida, um ser que supera o mundo em sua objetividade. Seu poder criador é uma vitória sobre a vida concreta. O sujeito humano, não contando com um modelo prévio de existência não tem outro recurso senão transcender para o poder-ser. É justamente mediante suas próprias ações, através de suas obras, que o homem vem a ser o que é. Suas ações e gestos lhe conferem determinada consistência ontológica. Cada um de nós possui seu mundo particular, habitual, ou seja, o mundo de nossos interesses e preocupações particulares. Através deste mundo particular, penetramos no mundo comum a todos ― o mundo, pura e simplesmente. A pre-

sença é responsável pela seleção de objetos e valores para constituição de seu mundo. É, pois,

a pre-sença que faz com que esses objetos "sejam". Conexo com o conceito do mundo está o problema do espaço. A pre-sença desempenha uma função espacializante, o que significa dizer que a pre-sença confere sentidos e valores aos lugares e, à medida que espacializa o mundo, define a si mesma.

Em Heidegger, o espaço é pensado a partir da própria condição humana de aproximar e distanciar aquilo de que o homem precisa para os atos de existir. Privilegia-se o pólo humano porque se "a pre-sença é nesse sentido espacial, o espaço se apresenta como 'a

priori'" (HEIDEGGER, 2001, p. 161). Embora Heidegger afirme que, nas relações com o mundo, o espaço se apresenta a priori, deve-se destacar que este só se apresenta a priori porque a função espacial é humana. Visto sob esta perspectiva, o homem na sua forma de se

relacionar com os objetos constitui uma das etapas da filosofia heideggeriana em busca do sentido do ser.

A primeira relação com o que cerca o homem não é de conhecimento cognitivo, mas de lida, de trato, de manipulação, ou seja, uma relação instrumental de acesso aos objetos que servem para isso ou aquilo. Um objeto liga-se a outro objeto e a pre-sença compreende esses nexos referenciais. Trata-se de um entrelaçamento de significações no mundo circundante cujo âmbito é espacial, mas não num sentido métrico, como o aposento em que um corpo se movimenta livremente. Ao mesmo tempo em que a pre-sença habita o espaço, ela

espacializa, ou seja, "abre" o espaço que habita como ser-no-mundo, confome esclarece

Heidegger:

Ao atribuirmos espacialidade à pre-sença, temos evidentemente de conceber este "ser-no-espaço" a partir de seu modo de ser. Em sua essência, a espacialidade da pre-sença não é um ser simplesmente dado e por isso não pode significar ocorrer em alguma posição do "espaço cósmico" e nem estar à mão em um lugar. Ambos são modos de ser de entes que vêm ao encontro dentro do mundo. A pre-sença, no entanto, está e é "no" mundo, no sentido de lidar familiarmente na ocupação com os entes que vêm ao encontro dentro do mundo. Por isso, se, de algum modo, a espacialidade lhe convém, isso só é possível com base nesse ser-em. (HEIDEGGER, 2001, p. 152).

Quando argumenta que o caráter espacial da pre-sença não se refere a uma situação dada, o filósofo reporta-se ao caráter inaugural da pre-sença em suas relações com aquilo que lhe cerca. A espacialidade, uma vez que consiste em estar "no" mundo é a condição que aproxima "ser" e "entes", por isso é que os objetos e pessoas que não se relacionam com o homem pertencem à esfera dos não-existentes. À medida que a pre-sença se ocupa dos entes que constituem o cenário, instaura-se o mundo espacializado. A expressão ser-no-mundo não exprime um nexo de coexistência entre o homem e os outros seres, como era visto por Leibniz, nem designa uma relação de encaixe no mundo natural, idéia defendida por Clarke e Newton. Significa que o homem é familiar a alguma coisa e que se faz à medida que se relaciona com o que lhe é conveniente. Heidegger chama os entes que fazem parte do mundo

circundante de entes intramundanos. O ato de deixar os entes intramundanos vir ao encontro da pre-sença é, apropriadamente, chamado por Heidegger de dar-espaço, como se depreende do excerto seguinte:

Esse dar-espaço que também denominamos de arrumar consiste na liberação do que está à mão para a sua espacialidade. [...] Enquanto ocupação com o mundo numa circunvisão, a pre-sença pode tanto "arrumar" como desarrumar e mudar a arrumação, e isso porque o arrumar e mudar a arrumação, entendido como existencial, pertence a seu ser-no-mundo. (2001, p. 160).

Como vimos, a pre-sença é espacial, por isso, o universo em si, independentemente da necessidade humana de aproximação e distanciamento com os entes intramundanos não é o ponto de interesse. Se a pre-sença é espacial, interessa aquilo que se relaciona com o homem. Embora exista um mundo físico anterior ao surgimento do homem, este não tem nenhum sentido quando se trata de buscar a ontologia do ser.

O espaço concebido como a esfera de relação com os entes intramundanos não tem relação com o puro conjunto das três dimensões que caracteriza o espaço de Leibniz, Clarke e Newton. O espaço, enquanto ordem de coexistências e enquanto determinação métrica, pressupõe sempre a matéria de que é composto. Na concepção materialista de Descartes, Leibniz, Clarke e Newton, o homem é uma entidade plenamente definida, individualizada e circunscrita em seus limites espaciais, dotado de um núcleo que precede e determina suas manifestações e comportamentos. Segundo essa visão, o homem não é uma criação de si mesmo, não se constitui em seu agir, não se dota de forma, mas sua forma e seu ser são a base de seus comportamentos posteriores. Para o modo de ver científico-cartesiano, que tudo fixa e corporaliza, o homem tem uma essência dada que pode se manifestar ou não, mas que, em todo caso, independe dessas próprias manifestações. Nesta ordem de idéias, as ações do homem são uma decorrência de possibilidades inscritas em sua natureza e não livremente traçadas pelo ser. Somente quando o homem abandona a convivência com o mundo estratificado, com o que a esfera social e a consciência comum revestem as coisas é que certos

aspectos incalculáveis e tremendos da realidade se revelam, transfigurando o habitat inócuo da cotidianidade. Surge, então, o homem essencial para quem duas vezes dois pode ser cinco. Na filosofia de Heidegger, o inédito e o possível nas relações do homem com o

espaço são o ponto de interesse. Caso o homem fosse "posterior" à instauração do espaço,

seria um ser fixo e estável, a realidade humana confundir-se-ia com a realidade ôntica. A liberdade humana em poder "fazer-se" é a ratificação do homem para além do mundo dos objetos. O mundo de ocupações e solicitudes, no qual o homem surge na primitiva ligação com as outras existências, determina as interpretações que o homem atribui ao mundo e a si.

O homem como ser responsável pela criação do espaço é também o ponto fulcral de Mircea Eliade na obra O sagrado e o profano (2001), em que o autor desenvolve um estudo fenomenológico e histórico dos fatos religiosos. Eliade estuda a situação do homem em um mundo repleto de valores religiosos. O sagrado manifesta-se sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades naturais. O homem toma conhecimento do sagrado porque este se apresenta como algo absolutamente diferente do profano. A cultura ocidental moderna impõe a dificuldade para se compreender as inúmeras formas de manifestação do

sagrado. Para o homem moderno, é difícil aceitar que uma pedra, uma casa, um animal

possam ser objeto de adoração e culto. A pedra sagrada, a casa, o animal não são, no entanto, adorados como pedra, casa, animal, mas como "revelação" de um sentido que transcende a sua aparição fenomenológica. Isto equivale a dizer que, para manifestar o sagrado, um objeto qualquer se torna outra coisa e, no entanto, não deixa de ser ele mesmo, pois continua a participar do meio cósmico que o envolve. Eliade declara, logo no primeiro capítulo de sua obra, não pretender buscar as definições e conceitos de espaço, mas sim as implicações advindas do mais primitivo ato humano desde que a espécie deixa de ser nômade para se tornar sedentária e construir um ponto fixo de morada:

O conceito de espaço homogêneo e a história desse conceito (pois foi adotado pelo pensamento filosófico e científico desde a Antiguidade)

constituem um problema completamente diferente que não abordaremos aqui. O que interessa é a experiência do espaço tal como é vivida pelo homem. (ELIADE, 2001, p. 27 – destaque do autor).

Instalar-se em um ponto fixo faz com que este ponto se diferencie da homogeneidade de tudo que não é ele. O espaço sagrado é o "centro" em relação ao caos, ao espaço indiferenciado. O homem das sociedades primitivas tem a tendência para viver o mais possível no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Essa tendência é compreensível, pois, para os primitivos, o sagrado equivale à verdade, à plenitude. O sagrado está pleno de ser porque "para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras, há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras" (ELIADE, 2001, p. 26). A irrupção do sagrado transforma uma região num pedaço distinto do mundo em redor e este deixa de pertencer ao domínio do profano. Dito de outra forma, "a manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo" (ELIADE, 2001, p. 26). A revelação de um lugar sagrado tem, pois, um valor existencial para o homem religioso, porque nada pode começar, nada pode se fazer sem uma orientação prévia ― e toda orientação implica a aquisição de um ponto fixo. É por isso que o homem religioso se esforça para conseguir um estado definitivo, absoluto. Assim, o homem religioso só pode viver num mundo sagrado porque somente tal mundo participa do ser, existe realmente. Essa necessidade religiosa exprime um impulso de fixação ontológica, pois, ao consagrar um determinado referente do mundo cósmico, o homem deseja viver nele a totalidade de seu ser.

O pensamento de Eliade coincide, em muitos pontos, com o de Heidegger no que diz respeito à responsabilidade humana em fundar e diferenciar seu espaço. Na relação do homem com os outros, o eu está sob a constante tutela de olhares alheios. Os outros são aqueles que são co-pre-sentes na vida cotidiana. Isto não impede que o homem, por um gesto livre, aparte- se dos co-pre-sentes e dos espaços públicos para fundar a si mesmo num território diferente, destacando-se em relação aos demais.

Para Eliade, enquanto o mundo exterior é plasmado pelo impacto das circunstâncias, numa total correspondência entre aquilo que parece ser e aquilo que é, o homem religioso opera uma cisão neste mundo, de forma a transcendê-lo. No excerto seguinte, o filósofo explica a maneira pela qual o domínio da materialidade adquire um sentido metafísico que ultrapassa o imediatismo do espaço sólido:

A fim de pôr em evidência a não-homogeneidade do espaço, tal qual ela é vivida pelo homem religioso, pode-se fazer apelo a qualquer religião. Escolhamos um exemplo ao alcance de todos: uma igreja, numa cidade moderna. Para um crente, essa igreja faz parte de um espaço diferente da rua

Documentos relacionados