• Nenhum resultado encontrado

A construção do espaço em Ópera dos Mortos, de Autran Dourado, e Pedro Páramo, de Juan Rulfo

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2017

Share "A construção do espaço em Ópera dos Mortos, de Autran Dourado, e Pedro Páramo, de Juan Rulfo"

Copied!
196
0
0

Texto

(1)

A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO EM ÓPERA DOS MORTOS, DE

AUTRAN DOURADO, E PEDRO PÁRAMO, DE JUAN RULFO

(2)

EVELY VÂNIA LIBANORI

A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO EM ÓPERA DOS MORTOS, DE

AUTRAN DOURADO, E PEDRO PÁRAMO, DE JUAN RULFO

Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutora em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social)

Orientadora: Dra. Heloisa Costa Milton.

(3)

EVELY VÂNIA LIBANORI

A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO EM ÓPERA DOS MORTOS, DE

AUTRAN DOURADO, E PEDRO PÁRAMO, DE JUAN RULFO

Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutora em Letras (Área: Literatura e Vida Social)

Data da Aprovação: 24/08/2006

BANCA EXAMINADORA

Presidente: DRA. HELOISA COSTA MILTON – UNESP / Assis

Membros: DR. ANTONIO ROBERTO ESTEVES – UNESP / Assis

DRA. ANA MARIA CARLOS – UNESP / Assis

DRA. CLARICE ZAMONARO CORTEZ – UEM / Maringá

(4)

Para

Leo

porque, diante das falas da temeridade, da insegurança, da imaturidade teimosa, manteve com todas um diálogo de carinho.

Horeide

meu mais seguro abrigo.

Biba

(5)

AGRADECIMENTOS

À Professora Doutora Heloisa Costa Milton, pela orientação segura e meticulosa.

Aos Professores Doutores Ana Maria Carlos e Antonio Roberto Esteves, pelas valiosas colaborações, sugestões e discussões no Exame Geral de Qualificação.

À Professora Cleiry de Oliveira Carvalho, por tantas leituras e livros.

À Professora Doutora Maria Regina Pante, pelo apoio providencial.

Aos Professores Doutores da Área de Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Estadual de Maringá: Alice Áurea Penteado Martha, Clarice Zamonaro Cortez, Lúcia Osana Zolin, Luzia Aparecida Berloffa Tofalini, Marciano Lopes e Silva, Marisa Correa Silva, May Holmes Zanardi, Milton Hermes Rodrigues, Mirian Hisae Yaegashi Zappone, Rosa Maria Graciotto Silva, porque trabalharam muito enquanto eu estudava.

Ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho", Câmpus de Assis.

(6)

LIBANORI, Evely Vânia. A construção do espaço em Ópera dos mortos, de Autran Dourado, e Pedro Páramo, de Juan Rulfo. Tese de Doutorado em Letras – Universidade Estadual Paulista – UNESP, Assis, 2006.

RESUMO

Esta tese discute a construção do espaço nos romances Ópera dos mortos (1967), de Autran Dourado, e Pedro Páramo (1955), de Juan Rulfo. Nestes romances, o espaço como cenário estático e objetivo é ultrapassado para dar vez à representação da problemática existencial do homem e, por isso, necessita ser entendido ontologicamente em sua relação com o ser. Neste caso, só ganham relevância os seres e os objetos que se aproximam ou se distanciam do homem com vistas a participar de seu projeto existencial. Cada indivíduo revela o sentido e a inteligibilidade dos objetos materiais no momento em que estes objetos se integram aos seus propósitos e intenções. Nas obras de Dourado e Rulfo, as personagens constroem diversos e diferentes espaços, muitos deles contraditórios e excludentes entre si. Tais espaços equivalem a formas do desvelamento das zonas sombrias da alma humana, o que faz com que os ambientes regionais se convertam em centros onde a solidão, a incomunicabilidade e a morte sejam as únicas presenças constantes. Trata-se, portanto, de demonstrar, nos romances, a maneira pela qual o espaço deixa de ser o elemento sólido e estático para se revelar um componente expressivo de concepção filosófico-existencial, que implica não apenas diferentes formas de percepção da realidade externa como também o desdobramento imprevisível das possibilidades de instauração de uma realidade não-subordinada à lógica do mundo causal.

(7)

LIBANORI, Evely Vânia. The construction of space in Ópera dos Mortos by Autran Dourado and Pedro Páramo by Juan Rulfo. Doctorate Thesis in Languages –

Universidade Estadual Paulista – UNESP, Assis, 2006.

ABSTRACT

The present study argues on the construction of space in the novels Ópera dos

Mortos by Autran Dourado (1967) and Pedro Páramo by Juan Rulfo (1955) as well. In both novels the space, as an objective and static scenery, is transposed in order to give place to the representation of the existential problematic of mankind, thus, it should be understood ontologically in its relation to the human being existence. In such a case, the relevance is played only on beings and objects that either come close or go far from mankind, always with the purpose of participating in their existential project. Each individual reveals the meaning and the intelligibility of the material objects, in the right moment such objects integrate themselves to their own purposes and intentions. The characters of Dourado and Rulfo’s novels build up several and different spaces, many of them considered contradictory and one excluding the other. Such spaces aim at uncovering the obscure parts of the human soul, what makes the regional environments turn into centers in which loneliness; incommunicability and death are the only constant presences. Therefore, based on the plot of the novels, the aim of this study is to show that the space is not a solid element anymore, but, in fact, it reveals itself as an expressive component, part of an existential philosophic conception that embraces not only different forms of perception of external reality, but also, the unpredictable development of the possibilities of establishing a reality not subordinated to the logic of the casual world.

(8)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... p. 9

1. AUTRAN DOURADO E JUAN RULFO: ITINERÁRIOS SEMELHANTES... p. 20 1.1. A recepção crítica de Autran Dourado... p. 21 1.2. A recepção crítica de Juan Rulfo ... p. 37

2. CONCEPÇÕES DE ESPAÇO... p. 58 2.1. Homem e terra... p. 59 2.2. A natureza romântica: o espaço como ordem de coexistências... p. 66 2.3. O conflito entre homem e natureza: o espaço absoluto... p. 80

3. EXISTÊNCIA E ESPAÇO... p. 94

4. ESPAÇO DE INCOMUNICABILIDADE... p.127

5. ESPAÇO DE MORTE... p.159

CONCLUSÃO... p.186

(9)
(10)

O objetivo deste trabalho é mostrar a instauração de uma concepção ontológica de espaço promovida pelos romances Ópera dos mortos (1967), do escritor mineiro Autran Dourado, e Pedro Páramo (1955), do mexicano Juan Rulfo. Tanto Autran Dourado como Juan Rulfo utilizam a matéria regional para recriar um mundo que, embora apoiado na realidade de determinada região, não se prende à organização lógica dos referentes externos. As situações propostas por ambos não se limitam à localização do modelo regional, pois o que está em evidência é a visão de mundo transfigurada e remodelada pelos romancistas, capaz de dotar a realidade geográfico-social de atributos outros que não os simplesmente exteriores.

O espaço regional, que na estética romântica e realista servira à formação da identidade do homem latino-americano, em Ópera dos mortos e Pedro Páramo, representa a possibilidade para engendrar uma visão nova e insólita do mundo externo. Nestas obras, os elementos contextuais, retirados de uma pequena vila mineira, em Ópera dos mortos, e do interior do estado mexicano de Jalisco, em Pedro Páramo, perdem sua função de apenas situar geográfica e socialmente a narrativa. No cenário discursivo, prevalecem a fragmentariedade narrativa, a diluição do tempo mensurável, a imprecisão do espaço físico.

(11)

ontológico, o que pressupõe a importância do cenário à medida que ele se relaciona com o destino do homem.

Ainda que o referente externo esteja em evidência, o propósito criador dos autores não se preocupa com a concepção mimética da paisagem regional. Não há intenção de promover uma correspondência direta entre as situações desenvolvidas na trama narrativa e os acontecimentos geograficamente localizados. Embora as ações se passem em ambiente que pode ser demarcado em seus limites físicos, tais limites não são importantes "em si", bem como não são determinantes para o conflito das personagens. Pode-se, pois, afirmar que o lastro regional não minimiza o propósito inventivo dos escritores nem reduz o campo das ações das personagens à fidelidade do meio localizado. Com tal afirmação não se pretende apenas enfatizar a liberdade criadora dos autores, uma vez que toda literatura nasce do trabalho inventivo do escritor, mas sim destacar que os romances de Dourado e Rulfo refletem a unidade e a ordem perdidas, caracterizando-se pela transgressão às leis do mundo externo, principalmente Pedro Páramo. O princípio constitutivo das obras nasce, portanto, do rompimento com a logicidade, a causalidade, a unidade de espaço, a mensurabilidade do tempo.

(12)

De acordo com a perspectiva relacionista, o espaço é um fenômeno que pressupõe a movimentação dos elementos e não pode ser pensado sem a matéria. Segundo a visão substantivista, o próprio espaço é material, um campo objetivo que engloba os pontos ou lugares em que os seres e as coisas se localizam. Ambas as correntes filosóficas acentuam a prioridade da matéria para a constituição do espaço. Estas idéias, no entanto, chocam-se com a concepção ontológica que não vê o espaço como um fenômeno material em primeiro lugar, mas como o campo de proposição das possíveis ações humanas, sendo compreendido em função das possibilidades de atuação do homem sobre os elementos exteriores.

Em ambos os escritores, a recusa à organização lógica do mundo externo para a construção de um novo cenário dificultaria, sobremaneira, a concepção desta nova realidade como um espaço material, substantivo. Neste sentido, a introdução de um espaço não-subordinado aos aspectos reconhecíveis do mundo externo associa-se à necessidade de uma representação anticonvencional do fluxo da vida e dos dramas que ele impõe. A realidade complexa que os romances apresentam já não pode ser organizada dentro de um espaço imutável e perene. Assim como a própria verdade humana mostra-se mutável e incompleta, os espaços da obra refletem tal mutabilidade e incompletude. Desta forma, por força das suas dimensões e configuração estrutural, deve-se verificar a funcionalidade destes espaços e a este fim se propõe o presente trabalho.

(13)

estrangeiro" (1994, p. 15). As observações de Dimas fazem eco à anterior reivindicação de Osman Lins em Lima Barreto e o espaço romanesco. Para o escritor, o espaço é o "amplo aspecto da arte romanesca que, variamente visto, inventado e tratado pelos criadores, permanece, ainda ― ao contrário do que se observa em relação ao tempo ―, insuficientemente iluminado por um esforço analítico" (1976, p.68). A constatação da escassez de trabalhos literários sobre a função do espaço apresentou-se como mais uma motivação para o desenvolvimento desta pesquisa. A forte adesão do romance latino-americano à poetização do espaço, seja urbano, seja regional, mereceria maior atenção por parte de críticos e estudiosos da literatura.

Com o objetivo de entender a proposta estética de Autran Dourado e Juan Rulfo, no primeiro capítulo, será enfocada a recepção crítica da obra dos autores de modo a revelar

(14)

Discorrer sobre a apreciação crítica da obra de Autran Dourado e de Juan Rulfo significa selecionar os textos que mais interessam ao nosso propósito. A seleção, por sua vez, implica sempre a adoção de certos critérios que norteiam o processo de escolha e estes podem excluir materiais que, analisados sob outros critérios, mostrar-se-iam instrumentos valiosos. A adoção de determinados parâmetros de seleção do material para comentar a recepção crítica dos autores levou em conta a situação desigual com que se apresenta o material analítico da obra desses escritores no Brasil. No que se refere a Autran Dourado, há uma abundância de trabalhos acadêmicos sobre o autor1, mas não se pode dizer o mesmo de obras críticas publicadas. Das apreciações críticas mais representativas, uma das quais é do próprio autor, o grande estudo iluminador do processo de construção da narrativa, assim como dos elementos e situações míticas presentes em sua obra, é Autran Dourado: uma leitura mítica (1976), de Maria Lúcia Lepecki. A ele voltar-se-á oportunamente. Em relação a Rulfo a situação é inversa: há pouco material acadêmico e farto material impresso2. No que se refere a estudos e referências on-line em todas as línguas, o site de pesquisas Google scholar3

registra 1.260

ocorrências para Juan Rulfo e 91 para Autran Dourado. Em relação a estudos on-line disponíveis em língua portuguesa há 31 ocorrências para Juan Rulfo e 64 para Autran Dourado. Estes dados nos permitem afirmar que a obra de Rulfo ainda não está satisfatoriamente difundida no Brasil. Em contrapartida, Dourado está muito longe de ter o mesmo reconhecimento que Rulfo no âmbito internacional.

E como não se pode e não se quer dar tratamento diferenciado aos autores privilegiamos os textos críticos que têm como principal objetivo estudar o processo de composição das obras dos romancistas. Tendo em vista a desigualdade do reconhecimento dos escritores, não se poderia restringir a seleção ao âmbito da crítica nacional, no caso de Rulfo,

1

Há vinte e duas dissertações e sete teses disponíveis no Banco de teses da Capes. 2

Há oito dissertações e duas teses disponíveis no Banco de teses da Capes. Destes dez trabalhos, cinco foram defendidos nos últimos cinco anos, o que indica o crescimento de interesse pela obra do escritor.

3

(15)

bem como não se encontraria materiais analíticos sobre a obra de Dourado em outros países. Neste sentido, a busca de um critério eqüitativo norteou-se por priorizar as apreciações que tiveram por propósito primeiro contextualizar e explicar o tratamento concedido ao espaço, ao tempo, ao perfil do homem que consta na obra dos autores e ao olhar que este homem tem sobre si e sobre o mundo.

O segundo capítulo propõe-se a rastrear aquilo que se pode entender por "espaço" na mitologia e filosofia clássicas e em romances considerados regionais. Na mitologia e filosofia clássicas encontram-se exemplos em que o conceito de espaço supõe uma estreita ligação entre o elemento "terra" e o homem. O homem e sua vinculação com a terra foi também o principal enfoque do romance romântico no sentido de se proceder à busca da expressão da identidade local e da alteridade humana. Dessa forma, houve uma ampla e estrondosa valorização dos cenários naturais durante o século XIX. O tom grandiloqüente, combinado à exaltação das paisagens naturais, passou a ser o tema comum à literatura que relacionou a natureza à identidade da pátria. A necessidade de valorização dos cenários naturais, aliada à busca por pontos de contato para a livre expressão de estados emotivos do "eu", deu lugar a uma concepção de espaço em que eram priorizados, ao mesmo tempo, os estados subjetivos e a realidade empírica. Neste caso, pretende-se mostrar no romance María, do colombiano Jorge Isaacs, publicado em 1867, a vigência da concepção de Gottfried Wilhelm Leibniz, segundo a qual não pode haver um espaço absoluto que não tenha relação com outro ser. Em

Newton & Leibniz (1983), coletânea da intensa correspondência entre Leibniz e os seguidores de Issac Newton, Leibniz defende a idéia de que o espaço é a interação entre os objetos componentes de um cenário e, portanto, é sempre finito e mensurável. A escolha pelo romance María deveu-se ao fato de que a obra surgiu numa época em que predominavam os

(16)

O mundo exterior e os arrebatamentos da alma se confundem. Os estados internos das personagens e as realidades externas não são apreciados separadamente; ao contrário, em

María os elementos do cenário são apreendidos por meio das camadas sentimentais do

narrador que atribui determinado valor a tais elementos. O romance corresponde ao pensamento filosófico de que todo espaço deveria manter ligação com algum objeto, razão pela qual Leibniz não admite a idéia newtoniana de espaço vazio ou absoluto. O espaço constrói-se, neste caso, segundo uma relação dinâmica entre os seres.

(17)

imaginativo do homem e que prescinde da necessidade de interação recíproca entre os seres. Na América Latina, esta concepção predominou nas obras de fundo regional até a criação do chamado "romance de trinta". O propósito é mostrar que Mariano Azuela, em Los de abajo, lançado em 1916, é representante de uma literatura em que o espaço é o continente em que os homens vivem e morrem e que, independentemente das relações humanas, permanece como um cosmo inalterado, que não se modela e nem se modifica com a trajetória das personagens.

No terceiro capítulo será estudada a importância dada por Dourado e Rulfo ao homem em sua trajetória existencial rumo ao nada. Em Ópera dos mortos, os cenários físicos só adquirem importância quando se relacionam com a existência das personagens. Em Pedro

Páramo, o narrador não se detém na descrição minuciosa da paisagem, o que não significa

dizer que prescinda dela, uma vez que cada personagem se move num cenário desértico, expondo, a partir dele, seus tormentos. Em Dourado e Rulfo, as paisagens físicas abertas e fechadas contêm em si a virtualidade de mais de um sentido e há muitas ocasiões em que, com relação a um mesmo agente, em dado momento, signifiquem vivências contraditórias. Este capítulo expõe a constituição ontológica do homem segundo a visão filosófica de Martin Heidegger no tratado filosófico Ser e tempo (2001-2), e aborda a maneira pela qual o homem atribui valor sagrado ao mundo de acordo com o pensamento de Mircea Eliade em O sagrado

e o profano (2001). Segundo Heidegger, o ser revela a espacialidade do mundo circundante à medida que se relaciona com os seres e objetos à sua volta. Aquilo que não entra no domínio da existência do homem permanece na instância do não-ser. É o homem que atribui

espacialidade ao mundo, uma vez que pode escolher, dentre os cenários físicos, aqueles com

(18)

nesta ordem de idéias, revela-se como a organização proposta pelo homem. O próprio ser é um ser-no-espaço, ou seja, lida com os entes que vêm ao seu encontro de modo a utilizá-los para suas finalidades. No cotidiano do existir, o homem opera uma relação com os elementos circundantes e, assim, espacializa a si próprio e aos objetos. De acordo com Eliade, o homem das civilizações primitivas não considerava o mundo como uma massa natural e neutra absolutamente indiferente ao destino humano. Para tal homem, o mundo dividia-se em regiões sagradas e profanas. As regiões sagradas são aquelas que o homem elege como território de comunicação com o transcendente, com os deuses que devem ser cultuados. As regiões profanas são aquelas habitadas por seres com os quais o homem se relaciona apenas nas atividades cotidianas. Os espaços sagrados, conquanto estejam instaurados na extensão neutra de um mundo profano, marcam a oposição entre dois universos e possibilitam ao homem a comunicação com um poder absoluto. Ambos os filósofos mostram-se complementares para entendimento da relação entre o homem e seu cenário.

(19)

a lei dominante. O ser está separado do outro e há esforços por parte das personagens em manter a incomunicabilidade e a ausência de contato com o outro a fim de conservar a sacralidade do espaço. Em Pedro Páramo, o desenvolvimento da narrativa nunca é linear, mas enovelado, circular. A obra é dividida em sessenta e três micronarrações e os eventos se passam em diferentes espaços e tempos, havendo, por isso, diversos enfoques narrativos. As próprias personagens contam sua história e, em vários momentos, não se pode discernir qual ação teria vindo antes, qual teria vindo depois. O espaço e o tempo se alteram de acordo com o enfoque narrativo. O ser encontra-se em um espaço próprio e, embora não fuja do contato com o outro, não consegue partilhar o medo e a solidão que experimenta. Vez por outra, os mundos se aproximam, mas não adquirem unidade. Cada mundo é um mundo próprio, incomunicável ao outro.

(20)
(21)

1.1. A recepção crítica de Autran Dourado

O escritor mineiro Valdomiro Autran Dourado (1926 ― ) estreou no universo literário em 1947, com o romance Teia. Em 1950 publicou Sombra e exílio. A postura crítica em relação aos dois primeiros romances foi bastante elogiosa. Associou-se a trajetória das personagens de suas obras à temática existencialista, ao trágico sentimento de solidão do pós-guerra, à constatação do abandono do homem ao absurdo do mundo. Em 1959, nos Cadernos

de crítica, Antonio Olinto fez uma apreciação do processo de composição da obra Nove

histórias em grupos de três (1957). Olinto viu nos contos de Dourado uma "verdade poética, uma suavidade de obra de câmara" (1959, p. 73). Aludiu à aproximação do discurso narrativo dos contos à linguagem da poesia, uma vez que Dourado prescinde de "truques de técnica", o que dá a seus contos uma fluência não-observável facilmente em autores contemporâneos. O ensaísta advertiu, no entanto, que a fluência não significa simplificação dos efeitos estéticos. Olinto enfatizou a capacidade do autor para criar situações simbólicas no conjunto de textos autônomos. Para ele, em Nove histórias em grupos de três, o "mar" e a "morte" são símbolos do movimento incessante e fugaz da vida. Tal recurso tem como finalidade demonstrar que, por mais diferentes que sejam as pessoas, suas vidas são sempre uma série de situações incertas e duvidosas que podem se concluir bem ou mal. Nem sempre o homem pode conduzir seus atos; muitas vezes a vida humana não é senão um desenrolar de fatos controlados pelo Destino.

As críticas mais importantes surgiram nos jornais mineiros após a publicação de A

(22)

mais expressivos da literatura nacional. O romancista foi saudado como exemplo de escritor que rompe com o processo de construção da narrativa tradicional, uma vez que problematiza o próprio instrumento de que se serve para construir seus romances. Além disso, a exposição da densidade emocional das personagens valeu-lhe sempre estudos comparativos com autores já consagrados na literatura nacional e estrangeira.

Em 1970, no artigo intitulado "O romancista Autran Dourado", Assis Brasil discorreu sobre o estilo de composição do autor mineiro nos romances A barca dos homens (1961), Uma

vida em segredo (1964) e Ópera dos mortos (1967). Neste artigo, Autran Dourado foi comparado a Dalton Trevisan na intenção de criar uma obra em que a simplicidade é a constante de uma arte sem "artificialismos cerebrais". Assis Brasil fez uma concisa avaliação da técnica empregada pelo autor na composição de cada obra e resumiu o processo criador do romancista como o de um escritor que optou

entre outros recursos já considerados "clássicos" no romance moderno, pela narrativa que desse maior autonomia criadora ao personagem – e a saída que encontrou, dentro da aparente limitação do processo, foi a de isolar, individualmente, os personagens para arrancar-lhes os pensamentos e criar uma ação interior que iria justificar a ação exterior e o episódico da movimentação convencional. Todos os personagens, assim, passam por uma espécie de "corrente de pensamentos", que nasceu com a narrativa automática dos surrealistas e se corporificou, em dimensão novelesca, em Joyce. (1970, p. 3).

(23)

autônomos, dotados de capacidade comunicativa mesmo se apreendidos isoladamente. Os "capítulos" seriam as reminiscências não-concatenadas de João, o protagonista da obra que participa de todos os eventos acumulados em cenários não-uniformes. Segundo Assis Brasil,

O risco do bordado apresenta aquilo que já se pôde observar em outros romances de autor.

Um destes traços é a presença do narrador seguro que conduz a narração e, ao mesmo tempo, promove um diálogo com o narratário, expõe os dramas existenciais de personagens pobres e destaca a camada subjetiva das personagens como força propulsora da criação do texto.

Em "Meu amigo Autran Dourado" (1985), Francisco Iglesias relembrou o ambiente intelectual de Minas Gerais no início do século XX, que atraía escritores iniciantes, consagrados mais tarde. Avaliou Autran Dourado como escritor de vastíssima cultura, iniciado em literatura clássica e um dos primeiros a perceber que a sintaxe ao estilo de Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano, Machado de Assis não serviria para criar o ambiente ficcional de uma literatura cuja ação se desenvolve em terra mineira, mas revela a capacidade de construir extraordinários tipos humanos que refletem temas universais. De acordo com Iglesias

há uma linha de criação, vigor inventivo, sólida estrutura literária, linguagem sempre própria, pessoal e livre, coerência e justeza nesses contos, novelas, romances. Com eles, Autran Dourado afirma-se como uma das figuras proeminentes da literatura de nosso tempo, tendo já o seu espaço conquistado e bem marcado. (1985, p. 4).

E, de fato, na década de oitenta, Autran Dourado era já um escritor consagrado; o "espaço conquistado" por ele compreendia a publicação de dezenove obras e a obtenção de vários prêmios, dentre eles, o "Prêmio Artur Azevedo do Instituto Universal do Livro", o "Prêmio Paula Brito, do Conselho Estadual de Cultura do Rio de Janeiro", o "Prêmio Goethe de Literatura", o "Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro". Ademais, o romance Ópera

dos mortos já integrava o elenco de obras mais representativas da literatura mundial segundo

(24)

Na opinião de Iglesias, Autran Dourado é um dos autores mais conscientes da sua função de prosador. De acordo com o crítico, o texto de Dourado nada tem de improvisação ou de armação de efeitos; ao contrário, é a prosa de quem trabalha com precisão e rigor. A linguagem do romancista resulta da leitura dos clássicos portugueses e brasileiros e a estrutura fabular "bem armada", é conseqüência do longo e paciente exercício de escritura. Iglesias ressaltou que o trabalho artístico de Dourado é permanentemente aprimorado pelo escritor por meio do contínuo contato com a literatura de autores ingleses, franceses e norte-americanos. Distingue-o nestes termos: "é escritor culto, coisa pouco comum no Brasil. Uma consciência artística superior e firme é coisa rara no País. Autran Dourado é um dos poucos que se situam nesse plano nobre de tão poucos nomes" (1985, p. 4). Seja ou não um comentário justo em relação aos demais escritores, o que sobressai da avaliação crítica de Iglesias é o fascínio pela maneira como o escritor mineiro prepara as etapas da escritura, o que faz do texto um produto do trabalho consciente e árduo com os elementos de composição da narrativa. Este labor com o material artístico foi confirmado pelo próprio Autran Dourado em um comentário sobre o processo de criação literária:

Não gosto da palavra inspiração, embora eu gostasse de ter o que chama de inspiração. Quando me aparece uma idéia súbita, que é como gosto de chamar o ato inicial criador, minha tendência é imediatamente ir escrever, como qualquer pessoa. Mas eu me refreio e vou deixando aquilo germinar dentro de mim por uns seis meses. Vejo palavras, nomes simbólicos de personagens e lugares, isso, aquilo. Leio muito, faço pesquisa, estudo bastante. (apud SENRA, 1994, p. 60).

(25)

O crítico literário Sábato Magaldi em "Desencontros e encontros com Autran Dourado" (1985) norteou a apreciação do conjunto de obras do escritor mineiro pela mesma base de Iglesias, ou seja, também se refere a Dourado como escritor com vastíssimo conhecimento literário e com a percepção da literatura como ofício a ser aprendido e aprimorado. Magaldi manifesta a mesma deferência presente em Iglesias quando se refere ao repertório intelectual do romancista:

Quem ler Uma poética de romance: matéria de carpintaria, e depois Meu

mestre imaginário, tomará conhecimento da sólida cultura acumulada por

Autran no correr dos anos. Não erudição solta, conseguida para não parecer fora de moda. Cultura de verdade, assimilada na medida da preparação dos romances, alimento para a melhor estrutura de seu universo. (1985, p. 6).

É certo que nenhum texto literário poderia desvincular-se do grande discurso da Cultura, do qual será sempre um elemento. O que chamou a atenção de Magaldi foi o reaproveitamento que Dourado fez das próprias leituras, inserindo-as nos romances de modo que apenas o leitor sintonizado com os códigos intertextuais do autor poderá avaliar a riqueza estética dos seus textos. Magaldi reportou-se ao fato de Dourado se movimentar com familiaridade por temas abordados na tragédia grega, mas ressaltou que o autor evita "abrir portas já escancaradas" e adapta os temas universais ao cotidiano do homem contemporâneo. Para o crítico, a ficção de Dourado revela o repertório de métodos modernos de composição, como a expressão do fluxo da consciência, a construção de blocos narrativos autônomos, o abandono do desenvolvimento linear do tempo, a concepção de espaço regional em uma perspectiva universal.

(26)

que as indagações existenciais ganhem preponderância em relação ao conjunto de ações. Romance ambientado em Vila Rica do século XVIII, os eventos organizados de modo seqüencial registram a decadência da sociedade do ouro. No entanto, o crítico ressaltou que o autor concentra o foco da narrativa na vida interior de poucas personagens para perscrutar os motivos de suas ações. Na investigação desses motivos, a precisão geográfica e a conspiração política das personagens passariam a funcionar como o suporte para a inserção de elementos simbólicos de uma realidade mais abrangente. As personagens, pondera Chaves, conquanto possuam a sua autonomia psicológica, assumem uma qualidade de "arquétipos", o que assegura a universalidade da narrativa e seu desprendimento da intriga para revelação da complexidade da existência humana. Porque expõe a densidade emocional das personagens, ao mesmo tempo em que situa a ação num quadro histórico bem definido, o romance Os sinos

da agonia, tal como os outros romances de Dourado, pertence à "linhagem dos narradores que

se voltam sobre o paradoxo da História na qual o homem procura saber o seu próprio destino sem poder jamais tornar-se sujeito da ação e executor da vontade" (CHAVES, 1978, p. 116). Chaves salientou que, em Autran Dourado, a intuição da existência se orienta por um fatalismo intransponível, uma vez que as personagens estão subjugadas por uma engrenagem superior e autônoma que segue girando indefinidamente sem lograr ser compreendida.

(27)

sobre o fazer literário, como esclarece Affonso Romano de Sant´Anna: "livro incompreendido por uma minoria retrógrada, foi, no entanto, bem aceito pela parcela mais saudável de nossos escritores, professores e alunos, que nele souberam ver o seu caráter provocativo, estimulante e criador" (1976, p. 95).

Em 1975, Dourado publicou Matéria de carpintaria, material resultante de um curso ministrado como "professor visitante" na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Neste material, o autor discute o processo de composição de suas próprias obras. A partir de

1976, tanto Uma poética do romance como Matéria de carpintaria passaram a ser publicados num único volume intitulado Poética de romance: matéria de carpintaria. No primeiro capítulo deste estudo, o escritor resgatou os poucos escritores brasileiros como José de Alencar e Mário de Andrade, que ousaram comentar o próprio fazer literário e citou autores famosos como Andre Gide, Henry James, Ezra Pound, Johann Wolfgang Goethe, Hermann Broch e Thomas Mann, que se movimentaram no terreno da ficção e do ensaio. Neste estudo, Autran Dourado é instigante e provocador:

A propósito ou sem nenhum propósito, uma vez, em entrevista que me vi forçado a dar, disse, mesmo com o risco da má interpretação e de ter os críticos voltados contra mim, que as coisas mais importantes, para os criadores, sobre romance, foram ditas por romancistas, e as coisas mais importantes sobre poesia foram ditas por poetas. (1976, p. 13).

(28)

Autran Dourado é uma explicação de que sua obra não deve ser aproximada à de Guimarães Rosa, com a qual os críticos, apressadamente, viram pontos de contato e de quem Dourado se considera muito diferente. Alerta para o fato de que seu processo de composição não conta com a criação de neologismos: "Eu raramente invento palavras, não é o meu forte" (1976, p. 37). Em comum com Rosa, Dourado viu apenas o cenário de que as obras de ambos se alimentam:

O que temos em comum, Rosa e eu, é o nosso chão de Minas. Em mim a alma barroca e torturada, o negrume arcádico e inconfidente das Minas. Em Rosa, o aberto dos gerais, o cerrado livre e descampado (os pássaros, os bandos de maitacas e papagaios passando no céu), o cerrado livre e solto que vai dar em Brasília. (1976, p. 37).

(29)

Guimarães Rosa em Autran Dourado é substituída pela opacidade dos cenários, o que significa um mergulho sombrio no mistério da existência.

Em Poética de romance: matéria de carpintaria, o autor afirmou que o estabelecimento de correspondências diretas entre os níveis textual e extratextual é tarefa empobrecedora em face da articulação específica dos elementos constitutivos do texto. O romancista e ensaísta demonstrou lúcida compreensão da tarefa reinventiva do escritor quando se referiu à autonomia da arte literária em relação à lógica do mundo externo: "O criador amassa e emprega a realidade para criar uma outra realidade, uma realidade que obedece à complicada geometria literária, ao seu sistema de forças, que nada tem a ver com as ciências físicas, naturais ou sociais" (DOURADO, 1976, p. 72-3). Embora percebesse a ligação entre as esferas textual e extratextual, o autor concebeu o texto literário como um objeto autônomo em relação à organização do mundo externo. Assim, mesmo os romances com substrato histórico apresentam a diluição do espaço físico e do tempo cronológico para criação de um espaço-tempo indefinido.

Em 1976, o ensaio de Maria Lúcia Lepecki intitulado Autran Dourado: uma leitura mítica abordou o processo de composição das treze obras que o autor mineiro publicou entre

(30)

que não faz a avaliação da autora prescindir dos elementos de estruturação, uma vez que "uma leitura da estrutura do conteúdo não pode se desvincular da estrutura formal" (LEPECKI, 1976, p. XVIII). Lepecki observou que a morte é o núcleo de todas as narrativas de Autran Dourado. Contudo, a morte é tratada como uma etapa da vida e não como finitude, pois os mortos continuam, simbolicamente, a participar da rotina dos vivos. A dimensão mítica, que nega a morte como destruição, fundamenta a vida dos mortos o morto participa de um estatuto sagrado e também do dia-a-dia dos vivos. A ensaísta observou que, em Ópera dos mortos, a imagem da morte se apresenta de forma mais complexa e mais rica do que nos outros textos do autor. A transição do mundo habitual para a esfera do mito se dá por meio da presença de personagens vivendo situações contrastantes: Rosalina entre o mundo do pai e do Largo do Carmo, Quiquina entre o silêncio e o som, Juca Passarinho entre os lugares abertos e os fechados.

A autora empreendeu ainda um vasto estudo sobre a importância do espaço nos romances de Autran Dourado. O romance Uma vida em segredo (1964) foi analisado segundo a relação espaço/personagem. Biela, personagem principal, é enfocada na conflituosa experiência de atração e repulsa pela cidade, o lugar novo, desconhecido. Biela é, na visão de Lepecki, uma "inicianda" no reino da morte, uma vez que sua conduta, ao se mudar da fazenda para a cidade, não só revela a aceitação como a busca simbólica da morte, ao segregar-se do meio social e familiar. Neste sentido, a negação do "diferente" como forma de valorização do espaço antigo aponta para a recusa da vida nova, o que faz com que a personagem se assuma, voluntariamente, como vítima de um espaço que a levará à destruição psicológica e emocional.

(31)

dos binômios "aberto x fechado", "aqui x além", "superficial x profundo", "possível x impossível". A trajetória existencial das personagens, chamada pela ensaísta de "viagem", é sempre uma vivência simultânea de três espaços, porque através dela se vai, física ou imaginariamente, do "lugar 1" (de onde) ao "lugar 2" (para onde) através do "lugar 3" (por onde). Uma vez que a permanência num lugar ou o deslocamento de um lugar para outro pressupõe a movimentação temporal, a autora estudou também a importância do tempo nos romances do escritor mineiro. Lepecki verificou a predominância do "passado" sobre o presente e o futuro. Para ela, o passado é supervalorizado em virtude da negação do novo e do inédito e, por isso, "a maior parte dos textos incide em retrospecções. É o culto do remoto que justifica a minimização do presente e do futuro" (1976, p. 98).

(32)

incidindo sobre um cenário muito restrito, veicula problemas e temas universais tratados pela literatura contemporânea.

Em 1973, em dissertação de mestrado intitulada Linguagem e silêncio na obra de

Autran Dourado, Maria Stella Camargo analisou os romances A barca dos homens, Uma vida

em segredo e Ópera dos mortos, com vistas a discorrer sobre aquilo que a linguagem não

nomeia explicitamente no nível textual, mas sugere e evoca. Com base nos estudos de Claude Lévi-Strauss e Jacques Lacan, a pesquisadora enfocou os níveis de estruturação dos romances para demonstrar que, na linguagem concatenada e lógica, subjaz uma série de lacunas e interditos que se referem ao medo do desconhecido, à insegurança de existir, às dúvidas sobre questões transcendentais. As personagens teriam, em comum, o fato de se apresentar como seres paradoxais, pois, ao mesmo tempo em que seriam indivíduos incomunicáveis, cerrados em si mesmos, também seriam pessoas abertas à comunicação social, mas que evitariam a abordagem de assuntos metafísicos. Por este motivo, ao mesmo tempo em que a vida se apresenta como um cotidiano repleto de afazeres práticos, também se mostra como um caminho entretecido de mistérios cuja compreensão está para além do universo tangível. Para a autora, o silêncio é uma forma de proteção, uma vez que o calar-se impede que outras pessoas pensem o mundo com a mesma gravidade.

(33)

individual porque necessita se integrar perfeitamente aos valores e comportamentos do grupo e este sufoca as angústias pessoais.

Na visão da ensaísta, Biela, personagem principal de Uma vida em segredo metaforiza a segregação e a vitória do silêncio sobre a linguagem. Biela é uma "figura pálida na estrutura da família do primo Conrado" (1973, p. 78) porque se retrai em si mesma, de forma a rechaçar a comunicação com o outro. As mudanças externas de Biela, como o fato de passar a vestir vestidos velhos, comer com os serviçais e prestar auxílio doméstico para as vizinhas são correlatas das suas alterações internas e denunciam o abandono definitivo da integração à família do primo para se afirmar como individualidade solitária. O silêncio de Biela é instrumento dual que serve para proteger e atacar, pois "se inicialmente permanecia silenciosa por medo, usa depois o silêncio como reação consciente e sua derrota social é isomórfica à sua tentativa de afirmação como indivíduo" (1973, p. 83). A recusa à aceitação do papel a ela reservado e a crença em poder seguir um traçado próprio levam-na a um total isolamento.

(34)

comunicação do que para estabelecer um verdadeiro vínculo entre os homens. Em contrapartida, o silêncio expressa os aspectos mais sutis da experiência humana.

O espaço não é o enfoque principal da obra de Camargo. No entanto, o estudo tece considerações pertinentes ao propósito deste trabalho. Segundo ela, o espaço dos três romances é de extrema relevância porque permite às personagens considerações tanto sobre a vida imediata como sobre a vida transcendental. Para a autora, o espaço de Autran Dourado "rompe a tradição humana de se procurar nos horizontes longínquos, para além das estrelas, as respostas para perguntas que ecoam desde que o homem começou a questionar a vida"

(CAMARGO, 1973, p. 107). A autora considera que o mar, a casa, a fazenda são os elementos fundadores de um palco em que o homem observa os outros e a si mesmo, onde sente a vida ora segura, ora em risco, uma vez que os espaços familiares também possibilitam questionamentos sem resposta. Os cenários imanentes, como o mar, em A barca dos homens, a Fazenda do Fundão em Uma vida em segredo e o sobrado de Ópera dos mortos são eles mesmos os elementos que possibilitam reflexões de ordem transcendental.

Em 1984, Reinaldo Martiniano Marques, na dissertação de mestrado Os sinos da

agonia: técnica narrativa e consciência trágica na ficção de Autran Dourado investigou os

(35)

numa reflexão sobre o passado e o presente, na qual Dourado indaga a respeito de arquétipos do comportamento humano ao mesmo tempo em que problematiza o destino do homem moderno. Neste sentido, os acontecimentos político-sociais ficam reduzidos diante da permanência de temas universais. A presença de temas da tragédia grega – como a impossibilidade de fugir à desdita traçada pelo indiferente Destino, bem como o desejo do homem em dirigir os rumos de um grupo social implicam um "jogo de duplos", no qual personagens ambíguas percorrem uma trajetória ao mesmo tempo mítica e histórica.

Na visão do ensaísta, as personagens se assemelham ao homem moderno no sentido de experimentar fantasias e desejos reprimidos que, uma vez realizados, afetariam não só o equilíbrio do funcionamento psicológico do indivíduo, mas abalariam toda a integração deste com a coletividade. Ao abafar (não sem sofrimento) as aspirações mais secretas para se modelar a um padrão de comportamento tido como adequado, as personagens são representantes das personagens de tragédias clássicas cujas ações individuais repercutem na conduta de todo um grupo, visto que há um laço vital entre os membros de um clã. Da tensão entre reprimir ou expor o que lhes vai no íntimo, resultam homens envoltos em dilemas e dúvidas. De acordo com Marques, a ambivalência e a complexidade que caracterizam as personagens de Os sinos da agonia são recorrentes em toda a obra do escritor.

Em 1994, Angela Senra, na tese de doutorado Baús de couro, baús de ouro: Minas de Autran Dourado, levantou certos objetos e situações que, dada a intensa carga simbólica, são chamados por ela de sinais. Tais sinais acompanhariam obsessivamente a obra do escritor desde 1947, com a publicação de Teia. A autora se propôs a investigar a funcionalidade dos sinais em Teia (1947), Sombra e exílio (1950), Tempo de amar (1952), A barca dos homens

(1961), Uma vida em segredo (1964), Ópera dos mortos (1967), O risco do bordado (1970) e

(36)

escritor: o baú, a carta e os papéis, a casa. Assim, "a partir da simbologia e das mitologias que cercam cada sinal, pretende-se ler os textos autranianos, fisgando as variantes de tais marcas"

(SENRA, 1994, p. 6). O baú, que em Teia serve para guardar trastes, ganha elevada importância em Ópera dos mortos, uma vez que é o lugar onde Rosalina guarda os objetos pessoais e o álbum de fotografia dos antepassados, atualizando, com isso, a dor de não conseguir se desvencilhar do seu destino solitário. Em Os sinos da agonia, o baú serve para guardar as cartas de amor de Malvina por Garpar, cartas estas que também são a prova que incriminam Januário na morte de João Diogo. O baú é, pois, o elemento-símbolo de um emaranhado complexo de relações. De simples objeto em Teia, o baú é o elemento da ligação vital entre os membros de uma comunidade em Os sinos da agonia. O "baú", na opinião da autora, seria o mais rico dos símbolos nas obras do autor:

O baú, nos textos de Autran Dourado, guarda o passado; ele aparece, essencialmente, como protetor da memória do que foi, de quem passou, do vivido, do acontecido. Baú-caixão de objetos, fatos, documentos de histórias escondidas, túmulo de traços, retratos, medalha-coração partida, cordões de ouro rompido, panos desbotados. Passado que insiste em se fazer presente, mesmo descorado. Esfiapado. (SENRA, 1994, p. 68).

De acordo com a estudiosa, a "carta" e os "papéis" podem configurar, nos romances de Dourado, tanto um simples bilhete de amor como o segredo de uma confissão individual ou o registro da memória coletiva (certidões de nascimento, certidões de propriedade, mapas de navegação). Em Teia, a carta é tão-somente uma declaração de amor, mas em Os sinos da

agonia a carta expõe as etapas de elaboração e execução de um crime. Assim é que "os papéis

do universo individual entretecem-se com os documentos da vida coletiva das comunidades, integrando, todos eles, a História das gentes de Minas" (SENRA, 1994, p. 8). A "casa" é um sinal que desempenha diversas funções nos romances autranianos. Em Teia, a pensão com seus moradores apressados tematiza a transitoriedade e a fugacidade da vida. Em Ópera dos

mortos, o sobrado também se liga ao destino humano porque está atrelado à ascensão e queda

(37)

prestígio político do Coronel e, portanto, a decepção e amargura implicam a ruína do sobrado. Em Sombra e exílio e Tempo de amar, a casa está em ruínas, o que não é senão reflexo da precariedade das relações familiares.

As apreciações críticas da obra de Autran Dourado, cada qual com seu respectivo instrumento teórico, permitem constatar em todas elas o levantamento de questões referentes à relação do homem com seu espaço físico. Os cenários regionais não se limitam à reprodução de temas e tipos humanos específicos de dada localidade, uma vez que impõem ao homem o próprio questionamento da vida em curso. Os cenários como a fazenda, a casa, a cabana e o mar ganham relevo ontológico, uma vez que são a base para considerações sobre a trajetória humana. Assim, o mundo das coisas depende de uma finalidade humana que o ilumina com uma luz particular. Portanto, a atuação sobre o mundo das coisas é que impele o homem para a aventura da vida e confere ao espaço seu significado particular.

1. 2. A recepção crítica de Juan Rulfo

O escritor mexicano Juan Nepomuceno Carlos Pérez Rulfo Vizcaíno (1918 ― 1986) publicou El llano en llamas em 1953. Trata-se de uma coletânea de quinze contos cujas ações se desenvolvem num cenário que, dadas as descrições geológicas, se aproxima das terras calcinadas do sudoeste do estado de Jalisco, no México. Em 1955, a nova edição de El llano

en llamas constou de dezessete contos. Neste mesmo ano é lançado o romance Pedro

Páramo. Em 1980, Juan Rulfo publicou El galo de oro, um roteiro para cinema. A excelência

(38)

Trata-se do que Hugo Rodríguez-Alcalá chamou de "la máxima fama con la mínima obra"4

(1965, p. 88). No entanto, a crítica demonstrou de início, uma reação negativa em relação à obra do escritor. A primeira censura aconteceu ainda em 1955 e proveio de Ali Chumacero, paradoxalmente, editor-chefe da Editora Fondo de Cultura Económica, responsável pela publicação do romance Pedro Páramo. Chumacero classificou o romance como "una

desordenada composición [...] Sin núcleo, sin un personaje central en que concurran los

demás, su lectura nos deja a postre una serie de escenas hiladas solamente por el vapor

aislado de cada una"5(1969, p. 109).

A falta de ordenação lógica entre os fragmentos textuais, as idas e vindas temporais, o desdobramento do espaço em diferentes camadas, a linguagem sintética e aparentemente simples desnortearam os críticos da época. A quebra da cerrada visão lógica do mundo de modo a afetar o pensamento racionalista era uma prática estranha ao texto ambientado em regiões rurais. A crítica norteava-se pela concepção de que, à focalização específica do cenário, deveria corresponder uma forma de conhecimento engendrada no contato com a realidade concreta, o que limitava sobremaneira as experiências estéticas. Poucos críticos, dentre eles Salvador de la Cruz, puderam compreender, de início, o propósito da inovação de Rulfo: "es que Juan Rulfo acaba de despertar con esta obra el marasmo en que se halla

sumida la novela mexicana que hace muchos años se ha anquilosado en la repetición de los

mismos temas"6

(apud MONTOTO, 1999, p.18). Ao enxergar nos romances mexicanos, a "repetición de los mismos temas", Cruz revelou estar um passo à frente de seus colegas, uma vez que não norteou a avaliação da obra de Rulfo com base nos parâmetros estéticos dos romances regionais de teor crítico-social.

4

"a máxima fama com a mínima obra". (Vale esclarecer que todas as traduções apresentadas neste capítulo são da autoria da pesquisadora)

5

"uma desordenada composição [...] Sem núcleo, sem uma personagem central em torno de quem se reúnam as demais. Sua leitura deixa-nos a posteriori uma série de cenas alinhadas somente pelo vapor isolado de cada uma".

6

(39)

Não obstante a inicial recepção negativa, apenas três anos depois o romance já estaria traduzido para o alemão e, em 1970, para o inglês, sueco, norueguês, italiano, polonês, francês, português, russo e esloveno. Na década de oitenta, o romance encontrava-se traduzido para mais de trinta idiomas.

Passado o impacto inicial, os leitores mostraram-se receptivos e, mais tarde, completamente seduzidos pela obra de Rulfo. Não é difícil entender os fatores que permitiram a aproximação entre as narrativas densas de Rulfo e o leitor comum. Em primeiro lugar, o substrato regional não limita nem circunscreve os esquemas operacionais do texto, pois o homem de Rulfo é o homem atormentado em sua trajetória existencial, aquele que busca um sentido para a vida, sendo o portador das inquietações que perseguem o homem moderno. Um segundo ponto de identificação seria exatamente a aspiração ao indefinido, o desejo do ilimitado, aspectos que fazem o leitor valorizar Comala o cenário onde se desenvolvem as ações de Pedro Páramo justamente naquele ponto que desagradou os críticos, ou seja, trata-se de um lugar onde os eventos não estão mais subordinados ao raciocínio de causa-efeito. A naturalidade e a espontaneidade com que acontece a quebra do ordenamento causal foi um recurso que agradou ao leitor não mais satisfeito com a lógica cartesiana presente nos textos regionalistas.

A década de sessenta foi o momento de revisão da antiga postura crítica. Grande parte das mudanças no posicionamento crítico ante a obra de Rulfo se deveu ao estudo El arte

de Juan Rulfo, de Hugo Rodríguez-Alcalá, publicado em 1965. Com o subtítulo "Historias de

vivos y difuntos", Rodríguez-Alcalá realizou o primeiro estudo de fôlego destinado a analisar

(40)

reconstituir o processo fabular, embora as ações não se apresentem lineares no discurso narrativo. Os contos têm por finalidade contrariar as expectativas habituais do leitor, de modo a instaurar significados não explícitos na manifestação textual. Na segunda parte, o autor procedeu ao estudo do que chamou "estrutura escatológica" do romance e da paisagem desolada, entendida por meio do binômio "inferno/paraíso". O autor analisou ainda a complexidade emocional das principais personagens de Pedro Páramo. Segundo o estudioso, o grande mérito de Rulfo consistiu em reaproveitar o cenário da revolução cristera7 não para destacar os conflitos ocorridos entre a Igreja e o Estado nos anos de 1926-29, mas para revelar o cotidiano do homem comum que habitava o interior mexicano quando da revolução. O que ganha relevo não é a pugna entre cristãos e federalistas, mas o homem em sua trajetória solitária de existir. Quanto ao aspecto que mais desnorteou a crítica de então, ou seja, o aparente "caos estrutural" da obra, o ensaísta alega que a ausência de laços conectivos entre as partes componentes das micronarrações de Pedro Páramo obedece a uma intenção subjacente, uma vez que não se pode "unir" logicamente aquilo que se apresenta fragmentado e inconcluso. No entender de Rodríguez-Alcalá, a linguagem sintética de Rulfo, ao mesmo tempo em que evoca sentidos não-manifestos no tecido textual, também mostra o homem que não se abre ao diálogo, como se pode constatar na declaração seguinte: "Esta parquedad se

nos manifiesta ora como economía de medios expresivos con los que logra Rulfo um

máximum de efectos cuando él mismo actúa de narrador, ora como un laconismo propio de

sus personajes ensimismados y, por consiguiente, caracterizador de su índole

7

(41)

reconcentrada"8 (1965, p. 207). De fato, no nível textual, o texto forma uma rede de sentidos que ultrapassa a ordem habitual do mundo organizado logicamente. No que se refere ao laconismo das personagens, pode-se afirmar que nem sempre a palavra possibilita revelar a amplitude e intensidade das emoções e o silêncio é, paradoxalmente, a forma de expressão de aspectos sutis da experiência subjetiva.

As décadas de setenta e oitenta foram profícuas em estudos críticos sobre a obra de Rulfo pois "o número de livros dedicados a estudar quase que exclusivamente a narrativa rulfiana quadruplicou" (MONTOTO, 1999, p. 31). Em 1970, no México, o autor recebeu o

Premio Nacional de Literatura, fator que chamou a atenção da crítica e dos leitores para sua

obra. Na década de setenta, o nome de Rulfo como um dos melhores prosadores do mundo latino-americano era consenso entre os críticos literários.

A década de oitenta marcou um período em que os estudos sobre a arte de Rulfo foram tão intensos que os Cuadernos Hispanoamericanos, de números 421 a 423 9, publicados entre julho e setembro de 1985, foram inteiramente dedicados ao estudo da obra do escritor mexicano. Trata-se de quarenta e um artigos em que o estilo do autor, os contos e o romance são abordados sob diferentes enfoques temáticos. É um alentado volume de quinhentas e quinze páginas, a maior reunião de artigos que se destinam à compreensão da obra de Rulfo. De tal legado crítico, destacar-se-á, a seguir, alguns estudos.

Julio Rodríguez-Luis em "La función de la voz popular en la obra de Rulfo"10 teve como objetivo oferecer algumas claves para explicar o fenômeno Rulfo. Para o ensaísta, os temas que perpassam toda a obra do autor são a violência, a indiferença em relação à morte, a solidão e a tristeza. De acordo com Rodríguez-Luis, as personagens são representantes de um

8

"Esta moderação nos é manifestada ora como economia dos meios expressivos com os quais Rulfo logra um máximo de efeitos quando ele mesmo atua como narrador, ora como um laconismo próprio de suas personagens ensimesmadas e, por conseguinte, caracterizador de sua índole densa".

9

Cuadernos Hispanoamericanos. Madrid: Instituto de Cooperación Iberoamericana, nos. 421-3, jul/sept. 1985, 515 p.

10

(42)

povo que parece ser vítima de uma interminável opressão. O crítico observou que o resgate de entrevistas concedidas por Rulfo serviu para o estudo do contexto social e histórico de El

llano en llamas e Pedro Páramo, resultado do interesse do autor pelo povoado camponês,

cuja vida recria em tons doloridos de solidão. Para o crítico, o compromisso de Rulfo com a realidade histórica faz de sua obra um ato político que se expressa por vias muito diferentes das empregadas nas obras comprometidas com a explícita denúncia de uma economia agrária injusta. Assim sendo, o silêncio e o sentimento de abandono substituem as vozes de solicitação de mudança política, o que confere um tom trágico ao romance. As personagens são vítimas tanto do sistema político como de um destino que não lhes possibilita outro caminho senão a morte.

Na segunda parte do estudo, Rodríguez-Luis analisou os monólogos interiores dos contos de Rulfo e verificou que as personagens expressam seus pensamentos de acordo com a ordem em que eles ocorrem em sua mente, sem submetê-los a uma análise lógica. Isto faz com que se estabeleça um contato direto entre o leitor e a personagem, contato que prescinde da mediação do narrador. Conforme assinala o crítico

son las voces de los personajes las que importan, son ellas las que el narrador desea que recordemos, y no la propia, de ahí que los cuentos más efectivos de El llano sean aquellos donde desde un principio nos habla el personaje directamente, o en los que la presencia del narrador es mínima.11

(1985, p. 138).

Rodríguez-Luis estudou ainda a estrutura coloquial e o uso de palavras populares na narrativa de Rulfo. Segundo ele, a palavra popular é vista como "unidade significativa", ou seja, apresenta uma pluralidade de significantes num só significado, própria da poesia. A recriação da fala popular se conduz por um propósito que não visa reproduzir a linguagem específica de dada localidade. No caso de Rulfo não se trataria de "reprodução", mas sim de

11

(43)

uma intenção de identificação total com a mentalidade liberta das amarras causais do discurso lógico. O ensaísta argumentou que os diálogos curtos, as perguntas sem resposta, as frases impessoais e a adjetivação comprometida com a idéia de opacidade conferem à fala popular um sentido que transcende a ordem do mundo objetivo e se projeta num universo onírico. Neste universo, o sortimento de representações e relações imediatas é substituído por imagens que desconhecem as limitações da realidade material e temporal.

O crítico constatou que a linguagem aparentemente simples é a forma de Rulfo captar "pedaços" da vida diária. Por isso, os enunciados são curtos, as histórias não podem ser compreendidas seqüencialmente, faltam explicações sobre como teria acontecido um ou outro fato. É que, na visão do crítico, as personagens de Rulfo são portadoras da articulação sem consistência lógica, típica dos povos primitivos. Tal como o homem primitivo, as personagens de Pedro Páramo pensam e raciocinam de modo diferente do homem civilizado. O modo como o homem das sociedades antigas enxergava o mundo não obedecia às leis da coerência do homem civilizado e não se baseava na estreita causalidade de ações. O homem primitivo não entendia a necessidade de evitar contradições, uma vez que as coisas podiam ser elas mesmas e algo mais, elas e outras. No estágio inicial da evolução, o homem não conhecia o princípio da "oposição". Rodríguez-Luis explica que, para o pensamento primitivo, era concebível a intervenção de fatos e seres sobrenaturais na camada da vida habitual.

José Manuel García Rey iniciou o estudo "La plática: una memoria colectiva de la

desgracia"12 com uma apreciação valorativa sobre a obra de Rulfo. Para ele, a linguagem rulfiana é "breve", "contundente", "seca" e "definitiva". Segundo o ensaísta, tal linguagem entra em contraste com as extensas páginas que a crítica tem dedicado à narrativa. O mundo de Rulfo, imediato e natural, está representado no planalto seco e deserto, que é a geografia do desassossego vital, da tragédia que pesa e atua sobre as personagens de modo ineludível. A

12

(44)

tristeza que emana constantemente da obra de Rulfo resulta da captação de um cosmo sem humor, sem alegrias e sem risos. O ensaísta dá destaque para o fato de que Rulfo buscou os nomes para suas personagens em cemitérios. Assim sendo, argumentou que a morte, enquanto evento nivelador de todas as diferenças em vida, é a motivadora real para a composição do processo fabular das obras do autor. No universo narrativo não há nenhuma razão que justifique a luta pela vida, não há relutância das personagens em se entregar ao mistério final da morte. Segundo o crítico, todos os indivíduos têm em comum a mesma falta de esperança, a mesma desolação e tristeza e é por isso que todos os seres são reconduzidos à circunstância que fundamentou a sua criação ― a morte.

García Rey comparou a trajetória existencial das personagens de Rulfo ao destino das personagens das tragédias clássicas, pois em ambos os casos o homem é impotente presa de um emaranhado de situações que o levarão à morte. No entanto, diferentemente das tragédias clássicas, em Rulfo, as ações mais terríveis, como os assassinatos, fazem parte da vida cotidiana e a morte não significa o acesso para um outro nível de existência. As mortes provocadas obedeceriam apenas à necessidade de um "ajuste de contas" que substituiria a desacreditada justiça humana. Estas circunstâncias são, em geral, rígidas e imutáveis e, frente a elas, as personagens nada questionam. Os textos de Rulfo apresentam-se, na opinião do autor, perpassados por uma "conciencia o memoria colectiva de la desgracia”13(1985, p.180). Trata-se de uma funda convicção de que o homem vive como se carregasse uma carga vital dolorida e antiga e, por isso, as personagens se movem em direção a um destino infausto.

De acordo com o ensaísta, a situação comum a quase todas as personagens de Rulfo é sentir a pobreza material de que são vítimas como uma culpa ancestral que se deve pagar com o sofrimento e a morte. A desgraça é o tema característico e o "planalto" é o seu ambiente de

13

(45)

desenvolvimento. Tal cenário de desgraças configura o universo particular de Rulfo, na opinião do crítico, já que o planalto

este mundo cerrado por la sangre, la muerte y la miseria es la ambientación, configura la particular geografía textual de Rulfo; el cosmos de Rulfo. Allí suceden las terribles historias, las acciones como accidentes casi de una historia infinita que empieza siempre y que siempre termina. El llano es marco y símbolo y este marco no transcurre aunque es iluminado por el transcurrir, por la sucesión de historias desarrolladas.14 (1985, p. 181).

García Rey entendeu que a geografia de desgraças está amparada em uma estrutura terceiro-mundista de dependência econômica e política de países pobres em relação a países desenvolvidos. Para ele, o estancamento e o empobrecimento dos países terceiro-mundistas são facilmente perceptíveis nos modelos econômicos rurais. Trata-se de um subdesenvolvimento que, em certas zonas camponesas, converte-se em miséria, gerando formas de vida que se pode chamar de "subcultura". A morte constitui uma das circunstâncias do mundo recriado por Rulfo e se revela presença habitual nesse cenário o que, no entanto, não significa que a morte esteja presente como conseqüência natural da vida. O crítico relembrou que há poucos casos de morte natural já que, na grande maioria das vezes, ela é decorrência de crimes e de vinganças pessoais. A violência e o ódio revelam a inexistência da atitude protetora, comum em pequenas comunidades. Os indivíduos integrantes de um clã ou de uma classe com rotina e interesses comuns costumam desenvolver um sistema de defesas que, protegendo o grupo, protege também cada indivíduo. No entanto, conforme García Rey, não é o que acontece com as personagens de Pedro Páramo. A proteção e o zelo para com o outro inexistem porque nada há que seja perene. Mesmo a força econômica de Comala só perdura alguns anos. Por isso, na opinião do crítico, a ruína e a desolação não permitem o surgimento de um sentido de união, visto que, na maioria das vezes, a existência do outro é uma ameaça para o indivíduo.

14

Referências

Documentos relacionados

Aos costumes, disse _____________.Testemunha compromissada na forma da lei, advertida das penas cominadas ao falso testemunho, prometeu dizer a verdade do que soubesse e lhe fosse

Considerando esses pressupostos, este artigo intenta analisar o modo de circulação e apropriação do Movimento da Matemática Moderna (MMM) no âmbito do ensino

A prevalência global de enteroparasitoses foi de 36,6% (34 crianças com resultado positivo para um ou mais parasitos), ocorrendo quatro casos de biparasitismo, sendo que ,em

Os principais objectivos definidos foram a observação e realização dos procedimentos nas diferentes vertentes de atividade do cirurgião, aplicação correta da terminologia cirúrgica,

Os instrutores tiveram oportunidade de interagir com os vídeos, e a apreciação que recolhemos foi sobretudo sobre a percepção da utilidade que estes atribuem aos vídeos, bem como

Um sistema operativo ou sistema operacional (em inglês: Operating System - OS) ou ainda software de sistema é um programa ou um conjunto de

Na primeira coleta pode ser observado o efeito significativo da inoculação na colonização total, por hifas e arbúsculos, onde a produção de arbúsculos foi 142 %

Considerando-se a importância do processo de maturação do salame enquanto aspecto de segurança ao consumidor e qualidade organoléptica, desenvolveu-se o presente estudo com o