• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 4 A INFÂNCIA REPRESENTADA NO IDEÁRIO ESCOLANOVISTA

4.3 A existência humana e a educação

Sören Aabye Kierkegaard (Figura 45), nasceu no dia 5 de maio de 1813 em Copenhague, na Dinamarca, e faleceu em 11 de novembro de 1855. Kierkegaard foi teólogo, poeta, cristão e o primeiro filósofo considerado existencialista. Como filósofo, escreveu textos em que criticava as organizações religiosas, a ética, a moral, as questões psicológicas, dentre outros temas.

Figura 45: Sören Aabye Kierkegaard

Fonte: Soren Kierkegaard (2018).

Kierkegaard, em seus textos, explorava as emoções humanas, como a angústia, as paixões e o desespero, sensações inerentes ao ser humano. Em outras obras, o filósofo discutia a verdade subjetiva e a verdade objetiva, era um crítico voraz das práticas cristãs atreladas ao Estado, em especial da associação da religião cristã ao Estado dinamarquês.

O ilustre pensador discutia problemas profundos e concretos que acometiam a existência humana: uma vez que o indivíduo é único, e, dessa forma, a existência corresponde a uma realidade subjetiva, singular.

Por isso, cada ser é responsável por traçar a sua vida, a sua existência nesse mundo; cada um torna-se agente de suas ações e deve responder pelos seus próprios atos. A filosofia existencialista credita ao indivíduo a capacidade de construir a sua própria realidade, pois o ser é livre para tomar suas próprias decisões, bem como para arcar com as consequências. O mundo é um campo repleto de possibilidades, onde cada sujeito é responsável por traçar o seu respectivo caminho e ser protagonista de sua própria história.

Kierkegaard foi influenciado fortemente por seu pai82, um agricultor fervoroso em sua fé, pai de sete filhos – Kierkegaard era o mais novo e considerado filho da velhice. Cinco dos irmãos, além de sua mãe, morreram antes de o pai completar 33 anos de idade, o que produziu na figura paterna um estado depressivo, perdendo sua fé em Deus.

Esteticamente, Kierkegaard era considerado feio para o período em questão. Por ter uma perna maior do que a outra andava de modo desengonçado; a coluna era levemente encurvada, aparentando não ter o porte adequado para aquele contexto. Todavia, sua intelectualidade, discussões, usando parábolas e metáforas, destacavam-no diante dos demais ilustrados da época.

O filósofo era o preferido do pai, e sempre que a figura paterna chegava do campo, Kierkegaard ouvia atentamente suas histórias, as experiências vivenciadas no meio rural, e essas histórias ajudavam Kierkegaard a pensar sobre a condição da existência de cada ser.

Seguindo as orientações paterna (Mikaël Pedersen Kierkegaard, nome de seu pai), Kierkegaard desenvolveu um raciocínio profundo e criativo, pois o pai instruía que a prática de argumentação deveria ser fundamentada em argumentos criativos. Além disso, Kierkegaard progrediu e consolidou sua capacidade de argumentar de modo crítico, criativo, imaginativo e prático. Da figura paterna, Kierkegaard também herdou a melancolia, a solitude e a mágoa – sentimentos necessários, talvez, para pensar a existência humana.

Embora a maioria dos filósofos existencialistas na contemporaneidade sejam considerados ateus, Kierkegaard, o pai do existencialismo, era cristão fervoroso, mas também era um ferrenho crítico da organização eclesiástica luterana. Para ele não haveria como compreender a existência humana sem compreender a transcendência de DEUS.

Segundo Castro (2009), Kierkegaard, ao escrever: Temor e Tremor, enaltece o silêncio como forma de refutar a ideia de que é possível alcançar a fé pela própria razão, questionando

82 Kierkegaard pai nasceu servo nas remotas charnecas da Jutlândia, no norte da Dinamarca. A família era

propriedade do sacerdote local e trabalhava em suas terras. Quase certamente se deve a isso o nome de família — Kierkegaard é a forma dinamarquesa do inglês churchyard [adro ou pátio de igreja, usado como cemitério]

até mesmo se há algum sistema filosófico, pois, nessa obra, nega todos esses sistemas. A obra é marcada pelo amadorismo e pela poética, a figura anônima que redige esse texto é nominada como Silentio, para quem o silêncio é a chave para a compreensão dos demais, mas não desenvolve nenhum sistema filosófico e tampouco acredita que haja um.

A obra se inicia com o silêncio do significado de Silentio, o silêncio de Tarquínio e, por fim, se fecha com o silêncio de Abraão. Não há voz que fale à maneira da racionalidade especulativa da época, mas a voz que se quer fazer ouvida em Temor e Tremor é a da subjetividade, do indivíduo singular e da existência. Silentio/Kierkegaard conduz seus leitores a uma escolha, que está relacionada com o que é a verdade para o indivíduo. Também está preocupado em como a verdade se torna significativa para uma existência concreta e real. Silentio/Kierkegaard não é o logos que busca uma verdade por meio da racionalidade e, sim, o patho sque alcança uma verdade que atende à situação existencial do indivíduo. (CASTRO, 2009, p. 52, grifos do autor).

Kierkegaard considerava que a razão tinha suas limitações e não podia explicar a transcendência de DEUS – a fé, nessa obra, é tomada como um absurdo. Dessa forma, Kierkegaard nomeia a subjetividade, visto que cada homem é responsável por suas escolhas, como o campo correto para a busca da verdade. Embora a racionalidade tenha suas limitações, é no encontro consciente com seu próprio eu que o indivíduo é capaz de ter uma experiência individual com a fé cristã.

Pautado por esse pensamento, Kierkegaard torna-se um crítico das obras hegelianas, uma vez que, para o primeiro, há uma relação entre a razão e a fé, enquanto para Hegel83, a razão explica todo o universo, compreendendo todos os elementos e ordenando-os mediante categorias. Para Hegel o sentido da humanidade teria uma conexão profunda em alcançar, de modo contínuo, a Razão, que é materializada pela formação do Estado – explicando esse pensamento de forma simplista, a Razão, no caso o Estado, era formada mediante uma providência divina, e o Estado era composto de vencedores que pertenciam à ordem evolutiva de uma essência divina.

Além disso, Hegel conceituava a consolidação do Estado Nação como o ápice do desenvolvimento racional de uma sociedade, o que, para Kierkegaard, não possuía sentido nenhum. Para rebater esses pensamentos84, o referido filósofo lia as obras hegelianas,

83 Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em 27 de agosto de 1770, emStuttgart,falecendo emBerlim, no dia 14

de novembro de 1831. É unanimemente considerado um dos mais importantes e influentes filósofos da história, tornando-se o expoente do Idealismo Alemão. (GEORG..., 2018).

84 Segundo Kierkegaard (2004, p. 212), “a ironia é uma determinação da subjetividade”. Enquanto Hegel assertava

em sua obra História da Filosofia (2º volume, p. 62) apud Kierkegaard (2004, p. 212): “Toda dialética deixa valer, o que deve valer, como se valesse, deixa que a própria destruição interna aí se desenvolva-universal ironia do mundo”.

comentando, discutindo e criticando cada ponto que considerava frágil nas argumentações de Hegel, apontando, por exemplo, em sua obra, as sentenças passíveis de argumentações, (conforme demonstra a nota de rodapé), expondo suas próprias alegações, como demonstra a citação a seguir:

Exatamente porque cada realidade histórica é individual, e, contudo apenas um momento na realização da idéia, ela carrega em si mesma o germe de sua ruína. Isto se mostra com toda clareza no judaísmo, cuja significação como momento de transição é especialmente singular. [...] Entretanto, já que a ironia é uma determinação da subjetividade, então ela tinha de se mostrar lá onde pela primeira vez a subjetividade apareceu na história universal. Com efeito, a ironia é a primeira e mais abstrata determinação da subjetividade. Isso aponta para aquela virada histórica em que a subjetividade pela primeira vez apareceu, e assim chegamos em Sócrates. (KIERKEGAARD, 2004, p. 214).

Desta forma, Kierkegaard, tornou-se ainda mais respeitado, pois conseguiu debater, discutir, e rejeitar a obra de um dos filósofos mais célebres daquele tempo: Hegel.

Porém o mais importante é que desde o início Kierkegaard teve dúvidas sobre o Espírito Absoluto e seu autoconhecimento. Para ele, o autoconhecimento tinha que ser alcançado no nível subjetivo. Insistia que para os indivíduos o subjetivo tinha que ser mais importante que qualquer Espírito Absoluto. O reino subjetivo era nossa maior preocupação. (STRATHERN, 1999, p. 30-31).

Se a subjetividade toma corpo, torna-se o âmago da discussão no século XIX, encontrando maior vitalidade. A partir do século XX, não caberia no meio social um indivíduo passivo, covarde ou temeroso para tomar as próprias decisões. A passividade era um conceito a ser “banido” na sociedade do fim do século XIX, em especial no início do século XX, principalmente nas terras onde a efervescência do capitalismo e da modernidade ocorreu de forma tardia, comparando-se com a Europa.

Ao homem era concedida a liberdade em fazer suas próprias escolhas, ainda que isso lhe causasse mal-estar ocasionado pela angústia, agonia em traçar seu próprio caminho, sem ninguém para opinar sobre as suas escolhas ou determiná-las. Dessa forma, o ser humano, não deveria ser considerado um mero receptáculo, mas um agente, dotado de razão, sentimento, para fazer suas próprias escolhas, trilhando o seu próprio caminho, o que conferia a subjetividade de cada ser.

Sendo assim, retomamos um questionamento feito inicialmente: por que esse indivíduo, naquela sociedade, torna-se tão importante?

Os aparatos filosóficos elaborados por Kierkegaard ajudam-nos a compreender que o ser humano não tem a sua existência delineada apenas pela razão, mas possui sentimentos,

volatilidade, imaginação, humor, ou seja, suas características psicológicas também devem ser consideradas, e, por isso, a existência não pode ser formatada, tampouco explicada puramente pela razão ou pela lógica, uma vez que envolve relações, personalidade, contradições no processo histórico e de constituição desse indivíduo, o que atenua a subjetividade, destacando a singularidade do ser.

Se cada indivíduo é único, não compete à educação pensar “como ensinar”, mas sim “como aprender”. Isto implica alterar a centralidade do ensino para a aprendizagem. Sendo assim, cada aluno deve ter um tempo para aprender o conteúdo, e cabe ao professor respeitar esse chronos, atuando como um auxiliador no processo de aprendizagem. Nessa perspectiva, são postos os fundamentos psicológicos que sedimentam a educação no século XX.

O eixo do trabalho pedagógico desloca-se da compreensão intelectual para a atividade prática, do aspecto lógico para o psicológico, dos conteúdos cognitivos para os métodos ou processos de aprendizagem. Tais pedagogias se caracterizam pelo primado da prática sobre a teoria. Esta deve se subordinar àquela, renunciando a qualquer tentativa de orientá-la, isto é, de prescrever diretrizes a serem seguidas pela prática e resumindo-se aos enunciados oriundos da própria atividade dos alunos com o acompanhamento do professor. Essa tendência ganha força no início do século XX, torna-se hegemônica sob a forma do movimento da Escola Nova até o início da segunda metade desse século. (SAVIANI, 2007, p. 104).

Uma compreensão de uma infância passiva remete à ideia de que o sujeito não é livre para fazer suas próprias escolhas, dependendo efetivamente de um adulto para direcionar o seu caminho, ensiná-lo o que deve ser aprendido, impossibilitando-o de explorar o mundo com os seus próprios olhos. Caberia ao adulto determinar as regras, os limites e as normas universais a serem cumpridas por todos os sujeitos, o que está em consonância ao estabelecido por uma educação que prima pela essência.

Enquanto a teoria existencialista 85 aponta que o ser é livre e capaz de pensar desde bebê (cita-se os fundamentos epistemológicos piagetianos para fundamentar cientificamente tal assertiva). Dotado de razão – a faculdade central do ser, mas não única –, o indivíduo também tem suas paixões, fraquezas, angústias, conceituando-o como ser dotado de emoções. Logo, o

85 “O próprio COMENIUS interessou-se profundamente por esta questão; esta atitude era uma consequência

inevitável da concessão que a pedagogia da essência fez à vida concreta com a revisão dos seus métodos tradicionais de educação e de ensino. Uma vez que se aceita tomar em consideração a criança viva e espontânea, pelo menos no domínio dos métodos pedagógicos, o problema do conhecimento mais concreto da sua natureza empírica devia pôr se de modo cada vez mais imperativo. Próximo do fim da sua vida, COMENIUS tentou determinar as características principais da natureza humana compreendida deste modo e formulou conclusões muito interessantes relativamente ao seu triplo caráter (razão, palavra, mão). [...] Se o homem e naturalmente bom, a educação não deve ir contra o homem para formar o homem. Tal pensamento surge com o Renascimento, mas é ROUSSEAU que irá dar-lhe desenvolvimento”. (SUCHODOLSKI, 1978, p. 19).

mundo era um campo aberto e possível para que o sujeito explorasse o seu entorno, tivesse a sua própria empiria e sua própria narrativa a respeito de suas experiências, isso acarreta a promoção da singularidade e da subjetividade de cada ser. Pode-se dizer que a representação de infância estava intimamente associada ao conceito teórico dessas duas correntes filosóficas. Isso se refletia no pensamento que cada filosofia possuía sobre a conduta do ser e das relações entre as diferentes gerações, bem como o contexto histórico-geográfico subjacente à infância, o que reforça a ideia de que cada teoria tem uma forma de interpretar o ser e, por consequência, a infância.

Documentos relacionados