• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 4 PRÁTICAS URBANÍSTICAS CONTEMPORÂNEAS NA ÁREA DA

4.1. EXPANSÃO E DEGRADAÇÃO DO BAIRRO DO RECIFE: ANTECEDENTES DOS

A trajetória dos planos propostos para o Bairro do Recife, até o final do século XIX, é intrinsecamente ligada ao Porto do Recife. Nessa época, os planos seguiam uma orientação baseada no discurso voltado à necessidade de ampliar as possibilidades de navegação e melhorar a acessibilidade na área de armazenamento do Porto. A partir dessa data, as práticas passaram a incluir problemas de ordem de saúde pública e modernização urbana, inspirando- se no modelo haussmaniano, aplicado no início do século XX, no Bairro do Recife. O resultado foi uma transformação radical, não só na malha urbana, como na dinâmica da vida social do Bairro.

De acordo com o estudo do capítulo anterior, apesar do Plano de Reforma ter alcançando alguns de seus objetivos, a área do Bairro do Recife entrou em forte declínio no inicio da década de 1930, movido pela inadequação da reforma à tradição sócio cultural da cidade. Além desse motivo, são atribuídos também fatores como a supervalorização ocorrida nos terrenos resultantes do novo urbanismo. Esses dados impuseram um processo de elitização, excluíram os pequenos comerciantes e favoreceram a implantação de empresas comerciais e financeiras nacionais e internacionais. Embora o novo modelo representasse facilidades e avanços nas negociações com o porto, descaracterizaram ainda mais o lugar. Grandes empresas foram atraídas pela reforma, ocupando porções significativas do solo e mesclando usos. Entre elas, instalou-se a “S. A. Grandes Moinhos do Brasil”, e a Fábrica Pilar ampliou significativamente suas instalações nas imediações da Igreja do Pilar.

No Bairro, iniciou-se um processo de esvaziamento habitacional transformando a tradicional área da cidade em um local degradado e esquecido, voltado apenas para o comércio atacadista e os serviços financeiros. A metropolização50 dos anos 70, unindo o Recife e os municípios periféricos com o intuito de integrar economias, passou a ser também um forte aliado para novas e significativas mudanças. Entre essas mudanças, está a expansão do Recife em direção aos bairros periféricos (Bairros do Espinheiro, Parnamirim e Casa Forte) e ao sul (Bairro de Boa Viagem). Reconhece-se também nessa época que a população cresce mais nos

50

A Região Metropolitana do Recife ou Grande Recife é a segunda maior aglomeração urbana do Nordeste e a sexta do Brasil (superada pelas regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre e Salvador respectivamente). Está entre as nove primeiras regiões metropolitanas instituídas no Brasil (criada pela Lei Complementar Federal 14/73 de 8 de junho de 1973). De acordo com o IBGE a RMR é formada por 14 municípios:Jaboatão dos Guararapes, Olinda, Paulista, Igarassu, Abreu e Lima, Camaragibe, Cabo de Santo Agostinho, São Lourenço da Mata, Araçoiaba, Ilha de Itamaracá, Ipojuca, Moreno, Itapissuma e Recife (capital com o maior PIB per capita do Nordeste). Possui ao todo, 3.787.667 habitantes (IBGE/2009).

municípios integrantes da metrópole do que na cidade do Recife. A relocação do terminal rodoviário e a desativação da antiga estação ferroviária também contribuíram para a diminuição do fluxo diário no centro da cidade. O movimento populacional, o comércio e os serviços deslocam-se incentivados por transformações no sistema viário urbano.

―Ou seja, o que se viu no Bairro foi a emergência de um capital construído ocioso, caracterizado pela baixa rentabilidade, significando uma desvalorização da riqueza construída, pública e privada. Pior ainda, o Bairro permaneceu como uma lembrança na memória dos cidadãos da metrópole recifense e não mais se materializava enquanto espaço de convivência. A perda do seu valor cultural foi acompanhada da perda do valor social‖ (LACERDA & ZANCHETI, 2000).

Em função desses fatores, o Bairro do Recife perdeu seu poder de centralidade consolidando- se como um reduto da boêmia. Passou a ser considerado como uma das principais áreas problemas de toda a cidade, também devido à ocupação das ruas e espaços públicos pelo comércio ambulante. No Bairro do Recife, a degradação física das edificações e dos espaços públicos e a ausência de ―vida urbana‖ estigmatizaram a área como zona ―marginal‖ e perigosa. O Bairro tornou-se um ponto para boêmios, cabarés, boates e prostíbulos. (LACERDA & ZANCHETI, 1999)

Dessa fase, depoimentos de antigos moradores do Bairro do Recife são testemunhos registrados por Montenegro, Sales e Coimbra (1989), que escreveram “Bairro do Recife; Porto de Muitas Histórias”:

...Eu cheguei em Pernambuco com 15 pra 16 anos e fui logo pra o Brum. (...) Aí comecei quebrando a cabeça em "boîte"...Depois consegui uma ordem pra tirar roupa de lavagem do Porto. (...) Acertei meus documentos e comecei a trabalhar no Chantecler. ...E fiquei trabalhando lá muito tempo. De lá mesmo eu pegava os cartões da "boîte" e levava pra botar nos navios pra aquela turma ir pra o Chantecler se divertir. ... o administrador do Porto, com a autoridade e a força que ele tem, fechou os portões pra gente. Simplesmente ele acabou com aquele movimento que tinha antes. Nós ficamos entrando só na faixada do cais, mas era muito humilhante, por ali esperando, sem poder entrar nos navios pra buscar as roupas, como era antes. Isso foi em 70. ...Agora, naquele tempo era completamente diferente de hoje. O porto era muito movimentado. Tinha muitos navios estrangeiros nesse porto. ...As boîtes tinham um grande movimento, tinham disciplina... Por aqui sempre teve pensão de mulheres e comércio. .... A Rua da Moeda sempre teve comércio de várias coisas, agora, em cima, sempre era boîte e pensões de mulheres. Só que era tudo limpo. Não existia tanta gente dormindo no chão. Isso sempre existiu, mas não desse jeito que está hoje. Todo mundo morrendo de medo. A gente andava abertamente, não existia assaltante. (depoimento de Maria José Medeiros residente, na época da entrevista, na Rua de São Jorge, 279, Bairro do Recife. Entrevistada em 1988/1989)

...Agora, quanto ao Brum, era um lugar fabuloso, ...Aqui havia festas bonitas pelo São João, havia bloco de carnaval, o "Cara Suja" do moinho e outra troça aqui do São Jorge; havia um campo de futebol ali do São Jorge Futebol Clube, onde os rapazes jogavam. ...Hoje a situação do Brum é essa, a Portobrás recebeu isso de graça. Não pagou, fez desapropriação

não pagou, a maioria do pessoal não recebeu, o meu caso, né? ...acabaram com o bairro do Brum, o bairro onde começou o Recife, não compreendo uma coisa dessa não. ... Aqui no bairro morava muitas famílias, moças estudavam. Até missa aqui neste bairro, senhoras casadas, mas a boemia começava ali na praça Artur Oscar conhecida como Praça do Liso. Ali tinha a Rua do Bom Jesus, tinha a Rua da Senzala, que hoje não existe mais, a Rua da Guia e a Rua do Apolo. Estas ruas eram as ruas da boemia. Depois foram se espalhando mais lá pra Vigário Tenório, Avenida Rio Branco, Rua da Madre de Deus. Mas o centro mesmo, o centro da boemia era a rua do Bom Jesus com aqueles Café Central, Café Chileno. O Café Chileno abria até 01:00 hora da manhã e os marítimos ficavam ali, as meninas ficavam todas ali, vinham de toda parte do Brasil e do interior... A boemia à noite era para aquele pessoal que chegava, os marítimos. Havia um movimento muito grande no Porto e tinha época que não tinha lugar pra encostar os navios. Então aqueles navios ficava no largo e a marujada toda descia para fazer as suas farras, beber e fazerem os seus amores. ... E se uma mulher vinha fazer a zona, como chama-se, e não tinha pensão, vinha dos subúrbios, então a pessoa se engraçava levava lá para os famosos meia-noite. ...Chegou, pagou, subia, acabou-se. Lá fazia fila esperando... Agora, depois da esquina da Rua do Apolo, Rua da Senzala ali não morava família nenhuma não. As famílias até passavam durante o dia pela Bom Jesus, mas nunca passavam pela Rua da Senzala nem Rua da Guia. (depoimento de José Valdemiro da Silva, residente na época da entrevista na Rua Dália, 79. Boa Viagem. Entrevistado em 1989)

Figura 91: Imóveis deteriorados transformados em pensões Fonte: www.longoalcance.com.br

Figura 92: Imóveis deteriorados transformados em pensões Fonte: www.longoalcance.com.br

Os imóveis perderam o valor econômico e proporcionaram ao Porto a aquisição de grandes parcelas urbanas visando ampliações e reformas. Os espaços públicos foram invadidos por vendedores ambulantes e outros serviços. A Rua Alfredo Lisboa, por exemplo, foi interrompida pelo Porto e transformada em pátio de manobra de transportes. Ocorreram grandes construções como armazéns, terminal açucareiro e o parque de tancagem. Executou-

se um grande aterramento no Cais do Apolo para a locação de um grande parque metropolitano, nunca viabilizado.

O Porto também desapropriou na década de 1970 uma grande área construída no entorno da Igreja do Pilar para a ampliação de seu retroporto51, igualmente não concretizado. (ZANCHETI, MARINHO, LACERDA, 1988)

A procura de novos espaços, pelo Porto, pode ser atribuída à insuficiência da sua área física, que não oferecia mais condições para ampliação de suas instalações. Essa necessidade surgiu motivada pelo acelerado crescimento da economia brasileira em decorrência da implantação das multinacionais que estocavam combustíveis inflamáveis, derivados do petróleo e demais produtos químicos, assim como a importação e exportação de grãos e cereais. Com o aumento da demanda houve a proliferação de construções de galpões, armazéns e containers nas proximidades do Cais do Porto do Recife, o que constituía um risco à segurança da população e ao meio ambiente da cidade. Além disso, o Porto do Recife não comporta operação com grandes navios internacionais. Por medida de proteção e preservação ambiental, houve a desativação dos depósitos e sua transferência para outro porto fora da cidade. Esse novo Porto, no Complexo Industrial de Suape fica situado a 40 km do Recife, entre os municípios do Cabo de Santo Agostinho e Ipojuca, ocupando uma área de 135 mil hectares.

Nessa mesma época, o Bairro que já vivenciava um processo de decadência e de dependência do Porto, sofreu mais um forte impacto com a construção do Porto de Suape. O Porto do Recife reduziu suas atividades, perdendo importância em relação ao mercado externo e levando o Bairro ao esvaziamento e à deterioração.

Tendo em vista a perda de importância para Suape, a Administração do Porto do Recife não se interessa mais pela grande área que desapropriou no entorno da Igreja – a construção de um retroporto não se faz mais necessária, deixando-a abandonada.

51

Termo utilizado na marinha; local aberto e próximo ao cais, no qual se operam a movimentação e o armazenamento das cargas; área que armazena e administra produtos (cargas) que chegam ao porto. Atualmente, os retroportos recebem os produtos acondicionados em containers que são comercializados no país ou região, e depois de registrados e liberados pela fiscalização, são levados em caminhões até seu destino. A administração do setor é feita por particulares e há grande movimentação de máquinas e estivadores.