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Capítulo II – A INTEGRAÇÃO DA ECONOMIA DO ANTIGO NORTE DE GOIÁS À

2.2 A intervenção federal e os estímulos à ocupação regional

2.2.2 A expansão da fronteira agropecuária

Ao longo do século XX, a dinâmica de ocupação do território goiano ocorreu de forma muito heterogênea, variando no tempo e no espaço, conforme as determinações do movimento do capital. Estimulado inicialmente pelo avanço da cafeicultura paulista e, posteriormente, pela industrialização e urbanização do país, o estado de Goiás inseriu-se na dinâmica produtiva nacional como área de expansão da fronteira agrícola.

Com a implantação da estrada de ferro, ainda nas primeiras décadas do século XX, o sul goiano conheceu um processo de ocupação capitalista da terra. Houve intensa imigração, principalmente de mineiros e de paulistas, à procura de terras livres e baratas para a agropecuária. Em virtude disso, a agricultura começou a se organizar como atividade mercantil e as terras do sul do estado experimentaram uma significativa valorização. Ao mesmo tempo, as transformações capitalistas em curso não foram percebidas pelo norte do estado, cujo povoamento se fez basicamente por pequenos produtores ou posseiros nas áreas “vazias” ou escassamente habitadas até meados da década de 1950, quando a abertura da rodovia Belém- Brasília estimulou a apropriação formal do território, fazendo com que a terra e os diversos recursos naturais passassem a ser controlados pelo capital.

Segundo Campos (1985), até a primeira metade do século XX, a ocupação das novas terras normalmente ocorria seguindo processos rotineiros de produção: derrubava-se a mata

61 Sabemos que este conceito comporta muitos significados. Para efeito deste trabalho, no entanto, estamos admitindo a ideia elaborada por Graziano da Silva (1982, p. 115) de que “a fronteira não é, necessariamente, uma região distante, vazia do ponto de vista demográfico. Ela é fronteira do ponto de vista do capital, entendido como uma relação social de produção. Assim, uma região pode ser inexpressiva em termos de sua produção agrícola ou da área plantada, mas não ser mais fronteira”.

existente e plantava-se a roça até a exaustão do solo ou até que os pequenos produtores fossem expropriados pelos grandes fazendeiros.

Com a abertura da rodovia Belém-Brasília, esse sentido “espontâneo” da ocupação do território norte goiano foi alterado. A estrada projetou a privatização da terra e a mercantilização da economia regional, promovendo uma expansão significativa da área e do número de estabelecimentos rurais. Houve a intensificação do fluxo de migrantes nordestinos, que já vinham se deslocando para a região desde o século XIX, e a criação de uma nova corrente migratória proveniente do sul de Goiás, Minas Gerais e São Paulo (AJARRA et. al., 1991). A partir desse momento, a ocupação de novas terras passou a ocorrer em razão da expansão do sistema rodoviário.

Os dados da Tabela 2.12 confirmam a diminuta apropriação privada do território norte goiano na primeira metade do século XX. Em 1940, 83,4% dos estabelecimentos rurais da região estavam assentados em terras devolutas. Mais de 90% dos produtores estavam distribuídos pelas categorias de não proprietários. Apenas 8,2% dos estabelecimentos eram explorados por proprietários.

Tabela 2.12 - NORTE DE GOIÁS: Condição do Produtor - 1940-1960 Condição do

produtor

Estabelecimentos Área (ha)

1940 1950 1960 1940 1950 1960 Proprietário 1.061 2.462 12.590 753.376 2.030.980 4.289.216 Arrendatário 670 1.047 137 786.503 1.277.872 40.623 Parceiro 428 191 2.755 76.081 144.543 3.283.464 Ocupante 10.813 12.341 12.332 2.319.700 3.127.093 1.790.247 Total 12.972 16.041 27.814 3.935.660 6.580.488 9.403.550 Fonte (dados brutos): IBGE - Censo Agropecuário (1940, 1950, 1960). Elaboração própria.

Nota: O Norte de Goiás aqui considerado diz respeito ao conjunto de municípios que hoje compõe o estado do Tocantins

Na década de 1950, os posseiros ou ocupantes ainda representavam mais de ¾ de todos os estabelecimentos recenseados. Era relativamente pequeno o número de estabelecimentos dirigidos por arrendatários e parceiros (6,5% e 1,2%, respectivamente). Já os produtores proprietários praticamente dobraram a sua participação (15,3%), mas não chegavam a perfazer 1/5 de todos os estabelecimentos da região. Em contrapartida, no sul do estado os proprietários já representavam mais de 70% do total de estabelecimentos desde a década de 1940, confirmando a

existência de uma heterogeneidade espacial e temporal na ocupação do território goiano, bem como a condição de fronteira “aberta” da sua região norte.

Seguindo o aumento do número de estabelecimentos, observou-se também uma expansão significativa da área dos estabelecimentos rurais, que saltou de 3.935.660 ha, em 1940, que representavam 14,2% da área do atual estado do Tocantins, para 9.403.550 ha (33,9%), em 1960. No sul de Goiás, a área dos estabelecimentos rurais representava 46,1% da área total da região, em 1940, e 57,3%, em 1960.

Ainda de acordo com os dados da Tabela 2.12, em 1940, os proprietários detinham pouco mais de 19% da área total dos estabelecimentos (número elevado quando se observa que apenas 8,2% das propriedades enquadravam-se nesta categoria). Por outro lado, os ocupantes, que detinham 83,4% dos estabelecimentos, distribuíam as suas atividades em uma área de 2.319.700 ha, equivalente a 59,8% do total.

A partir de meados da década de 1950, a estrutura produtiva no norte de Goiás seria gradativamente modificada. A implantação da infraestrutura de transportes, com a construção da BR-153, promoveu a expectativa de valorização das terras da região, fazendo com que aumentasse o número e a área dos estabelecimentos rurais na condição de produtores proprietários. Em 1960, esta categoria já representava 45,3% do total de estabelecimentos e 45,6% da área total, ultrapassando os produtores ocupantes que totalizavam 44,3% dos estabelecimentos e 19% da área.

Segundo Aguiar (1986), durante esse período foram apropriadas não apenas as terras situadas ao longo do rodovia, mas também aquelas em cuja localização havia a expectativa de futuros benefícios, que se converteriam em ganhos de capital quando da comercialização futura. A preferência inicial foi, obviamente, pelas melhores terras e aquelas com menores problemas de acesso à incipiente estrutura que se implantava.

Junto à construção da Belém-Brasília, previam-se a ocupação e a colonização das áreas limítrofes, reservando, ao longo da via de transporte, 6 km de cada lado para assentamento de colonos. Essa colonização seria inicialmente organizada pela SPVEA e tinha como objetivo promover o desenvolvimento da produção agropecuária e a integração da região amazônica à economia nacional. A colonização rural dirigida ganhou destaque no início da década de 1960, com a elaboração de um projeto piloto que buscava articular as atividades do campo com a

estrutura urbana, através da organização de pequenas propriedades cooperativas reunidas em um mesmo espaço produtivo, denominados “Combinados Agro-Urbanos”.

Segundo Esteves (2008), o “Combinado Agro-Urbano” constituía-se num ambicioso empreendimento de colonização e cooperativização agrícola encampado pelo governo de Goiás, que visava promover um amplo deslocamento de trabalhadores rurais em áreas de conflitos de terras para áreas devolutas no norte do estado. Com isso, conservaria inalterada a estrutura fundiária assentada no grande latifúndio e criaria um novo trabalhador rural, conhecedor de técnicas racionais de produção e aliado do planejamento estatal, deslegitimando formas tradicionais de apossamento consagradas pela prática social do posseiro.

O projeto inicial previa a criação de três Combinados Agro-Urbanos (Arraias, Tocantinópolis e Araguacema), cuja implantação ficaria a cargo do Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás (IDAGO), criado em 1962, com a finalidade de coordenar e executar a política fundiária do estado.

Todavia, a tentativa de colonização planejada, baseada nos Combinados Agro- Urbanos, não obteve sucesso. Com o golpe de 1964 o IDAGO assumiu a política de modernização, priorizando os grandes capitais. Assim, o que prevaleceu foi a soldagem da economia norte goiana à dinâmica nacional, através da implantação de políticas governamentais de incentivos fiscais e crédito subsidiado, que favoreceram a grande propriedade e serviram de base de sustentação à expansão da apropriação privada das terras da região. Como destacou Plata (2001), no período em que vigorou o crédito subsidiado, grande parte deste foi utilizado para a compra de terras, o que aumentou sua demanda e preço.

Ilustra bem a magnitude da ampliação das áreas conquistadas para a prática da atividade agropecuária o fato de que, entre 1970 e 1985, o norte de Goiás incorporou 6.067.968 ha, representando um avanço de 53,8% da área total dos estabelecimentos da região (Tabela

Tabela 2.13 - BRASIL e REGIÕES: Área dos estabelecimentos - 1970-1985

Unidades Total (ha) Variação 1970-1985

1970 1975 1980 1985 Absoluta Relativa Centro-Oeste (1) 81.705.624 93.953.658 113.436.463 116.476.803 34.771.179 42,6 - Norte de Goiás (2) 11.286.436 15.736.862 18.667.625 17.354.404 6.067.968 53,8 - Sul de Goiás (3) 24.496.602 27.390.005 29.185.403 29.864.106 5.367.504 21,9 - Goiás Total (4) 35.783.038 43.126.867 47.853.028 47.218.510 11.435.472 32 Norte (5) 23.182.145 32.615.964 41.559.420 45.212.315 22.030.170 95 Nordeste 74.298.713 78.690.485 88.443.907 95.054.172 20.755.459 27,9 Sudeste 69.500.950 72.463.938 73.502.906 73.241.522 3.740.572 5,4 Sul 45.458.035 46.171.961 47.911.723 47.940.105 2.482.070 5,5 BRASIL 294.145.466 323.896.006 364.854.421 374.924.929 80.779.463 27,5

Fonte (dados brutos): IBGE - Censo Agropecuário (1970, 1975, 1980, 1985). Elaboração própria. Notas: (1) Inclui o atual estado do Tocantins

(2) O Norte de Goiás diz respeito ao atual estado do Tocantins (3) O Sul de Goiás refere-se ao atual estado de Goiás

(4) Goiás Total refere-se ao somatório da área da porção norte (atual estado do Tocantins) e da parte sul de Goiás (atual estado de Goiás)

(5) Exclui o atual estado do Tocantins

Essa ampliação da área concentrou-se principalmente na segunda metade da década de 1970 e mostrou-se superior à expansão das áreas do sul de Goiás (21,9%), da região Centro- Oeste (42,6%) e do conjunto da economia brasileira (27,5%), ficando abaixo, apenas, da região Norte do país (95%)62.

No processo de expansão da fronteira do norte de Goiás o crescimento das atividades agropecuárias ocorreu, principalmente, através da incorporação de novas terras. Essa ocupação foi conduzida pelas sucessivas intervenções do estado, que criou novas oportunidades de valorização do capital, destacando-se a expansão da pecuária em moldes empresariais, dentro de uma mecânica institucional subjacente às transformações da agricultura brasileira. Desse modo, afluíram para a região tanto os pequenos produtores quanto os grandes empreendimentos que, beneficiados pelos incentivos fiscais e creditícios, privilegiaram a apropriação privada da terra, através do aumento do número de produtores proprietários.

Como pode ser observado na Tabela 2.14, em 1970, 50,6% dos produtores do norte goiano já possuíam o título de propriedade e detinham 72% das terras. Os ocupantes, apesar de ainda apresentarem crescimento absoluto da área e do número de estabelecimentos, mostravam

62 A região Centro-Oeste inclui a área do atual estado do Tocantins em todo o período analisado. O Norte, por sua vez, não considera, até 1985, a área do atual estado do Tocantins.

uma trajetória declinante na sua participação relativa. Nessa década, não chegavam a 48% dos estabelecimentos rurais e a sua área havia sido reduzida à metade (27,7% do total).

Tabela 2.14 - NORTE DE GOIÁS: Condição do Produtor - Estabelecimentos - 1940-1985 Condição do

produtor

Estabelecimentos Área (ha)

1970 1975 1980 1985 1970 1975 1980 1985 Proprietário 18.932 21.783 28.255 36.522 8.125.152 11.181.190 15.634.837 15.882.719 Arrendatário 603 523 1.400 1.379 27.038 14.861 125.494 83.044 Parceiro 32 523 425 527 5.822 6.581 18.015 38.753 Ocupante 17.844 19.161 13.038 8.892 3.128.394 4.234.229 2.890.225 1.349.886 Total 37.411 41.990 43.118 47.320 11.286.406 15.436.861 18.668.571 17.354.402 Fonte (dados brutos): IBGE - Censo Agropecuário (1970, 1975, 1980, 1985). Elaboração própria.

Nota: O Norte de Goiás aqui considerado diz respeito ao conjunto de municípios que hoje compõe o estado do Tocantins

Em 1980, os proprietários representavam 65,5% dos estabelecimentos e ocupavam 83,7% da área. Os ocupantes iniciavam sua trajetória declinante tanto em termos absolutos quanto relativos. No final do período analisado, a relação existente entre o número de proprietários e ocupantes havia se invertido. Os ocupantes perfaziam menos de 1/5 (18,8%) dos estabelecimentos da região, ao passo que os proprietários já representavam mais de ¾. Além disso, os 77,2% dos produtores proprietários já detinham 91,5% da área dos estabelecimentos rurais, indicando que a fronteira da região norte de Goiás estava sendo “fechada”63.

De acordo com Ajarra et. al. (1991), com as melhorias de acesso e as políticas oficiais de povoamento, a expansão da fronteira nas terras do norte goiano ocorreu de maneira mais acentuada nos vales do Tocantins-Araguaia e no extremo norte do futuro estado. Estas regiões dispunham de melhor fertilidade natural do solo e, por isso, foram beneficiadas pelos programas governamentais. Nas antigas regiões mineiras, que se voltaram para a agricultura de subsistência, a penetração do capital ocorreu de forma mais tímida. Ainda assim, o que se verificou em todo o território norte goiano foi a apropriação de grandes glebas de terras, a preços baixíssimos e de maneira indiscriminada, por grupos do sul de Goiás e de outros estados, aumentando a violência e as lutas entre posseiros e grileiros pelo domínio da terra.

63 Mais uma vez recorremos a Graziano da Silva (1982, p. 117), que diz: “o ‘fechamento’ não tem o sentido de utilização produtiva do solo, mas sim o de que não há mais ‘terras livres’, ‘terras sem dono’ que possam ser apropriadas por pequenos produtores de subsistência. Há, sim, zonas não efetivamente ocupadas, mas onde a terra já representa uma mercadoria que tem preço, e está sujeira, portanto, aos mecanismos de compra e venda; aí a terra já não é ‘livre’ e está sujeita a uma apropriação privada que reclama uma definição precisa de sua propriedade jurídica”.

Assim, o avanço da fronteira, ao tempo em que ampliou a área produtiva e incorporou o norte goiano à economia de mercado, acirrou os problemas fundiários cuja origem estava na relação entre legalização e posse da terra. Um dos exemplos mais emblemáticos dos litígios pela posse da terra diz respeito à região do Bico do Papagaio, no extremo norte do atual estado do Tocantins, marcada por confrontos entre pecuaristas capitalizados em expansão e uma maioria de pequenos agricultores ali estabelecidos com suas roças voltadas para o autoconsumo e fraca comercialização regional de arroz.

A situação tornava-se ainda mais grave porque, depois do confronto, muitas dessas terras eram deixadas ociosas, em um contexto especulativo. Como mostrou Aguiar (1986), muitos proprietários do norte de Goiás adquiriram grandes extensões de terras com dois objetivos. Primeiro, aguardar que novos benefícios pudessem valorizar as suas terras, adiando assim a sua incorporação ao processo produtivo ou à sua venda. Segundo, uma vez feitas as melhorias para escoamento da produção, iniciar-se-iam as atividades produtivas, estimulando a entrada de novos estabelecimentos, com parcerias ou arrendamentos, ou intensificando as atividades anteriormente instaladas.

Não se pode deixar de mencionar, ainda que de forma sumária, o avanço da apropriação capitalista em terras indígenas. Vale lembrar que na região do atual estado do Tocantins vivem diversas etnias indígenas, dentre elas: os Karajá, Xambioá, Javaé, Xerente, Krahô, Canela, Apinajè e Pankararú, distribuídos em diversas localidades. A expansão da fronteira agropecuária acirrou os conflitos entre índios e não índios, resultando, na maioria dos casos, em expropriação dos nativos e transformação do território indígena em território capitalista64.

Dado o exposto, observa-se que a passagem dos anos 1960 para a década de 1970 representou um marco no processo de expansão da fronteira agrícola, dando início a uma intensa apropriação das terras do norte goiano, incorporadas ou não à atividade produtiva. A penetração das vias de transporte e as condições agronômicas oferecidas pela terra foram alguns dos fatores que nortearam a ocupação desta área. Além disso, as políticas oficiais que buscavam direcionar o movimento de colonização e os estímulos fiscais e creditícios oferecidos para a ocupação da

64 A questão indígena teve uma atenção maior por parte do governo federal somente com a Constituição de 1988, que detém um capítulo e outros dispositivos que garantem aos índios direitos originários sobre as terras que ocupam tradicionalmente, e a legitimidade para ingressarem em juízo na defesa e conquista desses direitos (PORTO, 2002).

região favoreceram a regularização da propriedade da terra pelos grandes capitais, em detrimento do posseiro ou do ocupante, resultando em grandes conflitos sociais.