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DA EXPATRIAÇÃO ORGANIZACIONAL COMO CAMPO DE OBSERVAÇÃO EMPÍRICA: A CONSTITUIÇÃO DE UM PROGRAMA DE

PESQUISA.

No presente capítulo dá-se conta dos desenvolvimentos intelectuais subjacentes à constituição de um programa de investigação concreto, nas suas diferentes etapas fundadoras: a elucidação de um campo de problematização particular, a articulação de um conjunto de princípios de construção teórica de um objeto de pesquisa, a delimitação de um campo ou referente de observação empírica, destinado ao teste ou verificação da direção ou direções de interpretação (de um problema), enunciadas a título provisório (Quivy & Campenhoudt, 1998; Ragin & Amoroso, 2011).

1.1. A delimitação de uma problemática sociológica: A prestação de trabalho global. No mapeamento preliminar do itinerário a assumir para a pesquisa, constituiu uma preocupação primeira a necessidade de formular, de modo claro e sucinto, uma pergunta de partida, para que assim fosse suscitada, como necessidade circunscrita, uma clarificação posterior. A pergunta, a pergunta atempada, como forma de atender à prevenção de Durkheim (1987 [1895]), relativa à necessidade de controlar os efeitos da teorização aprendiz, espontânea, tipicamente informada pela “ilusão da transparência” da realidade social (Pinto, 1984, p. 49). Uma pergunta de partida que possibilitasse a delimitação preliminar de um campo específico de possibilidades e de constrangimentos, colocando em prática a rutura epistémica, a criação de uma distância com uma sensação de evidência e familiaridade, de ressonância imediata produzida em função do sentido de proximidade experimentado pelo autor, em relação ao universo temático indicado. Como mencionado no ponto anterior, esta questão decorreu de uma experiência vivida pelo autor: a experiência de um sentido de dificuldade e de contradição, vivida num contexto organizacional específico, apenso a uma situação concreta de prestação de trabalho.

No âmbito da delimitação da problemática a considerar em termos sociológicos, a concretização de uma fase de exploração substantiva e iterativa, constituída por uma revisão de bibliografia, flutuante, acionada por seleções em modo bola de neve (Biernacki & Waldorf, 1981), e de cunho marcadamente heteroglóssico (Bakhtin, 1981), interdisciplinar, e por um conjunto de contactos e entrevistas exploratórias com testemunhas privilegiadas (Quivy & Campenhoudt, 1998), gestores de trabalho e de mobilidades internacionais, atuais ou antigos trabalhadores em regime de mobilidade internacional, atuais ou antigos trabalhadores

2 expatriados, revelou-se decisiva na definição e estabilização de um perímetro de problematização, em termos teóricos, a partir da questão de partida sugerida.

A partir destas diligências exploratórias, observou-se a notação tendencialmente acrítica e o valor semântico difuso atribuído, em termos teóricos, a conceitos como expatriação, profissional global, carreira ou mobilidade internacional, e a visão marcadamente gestionária, economicista, utilitária, da literatura existente, com atenção primordial dada ao resultado ou à eficácia de um ajustamento concretizado pelos indivíduos, à análise das condições optimais de performance, de desempenho de um expatriado (Lysgaard, 1955; Black et al., 1991; Shaffer et al., 1999; Holopainen et al., 2005; Mol et al., 2005; Thomas et al., 2012; Takeuchi, 2010, 2013; McNulty, 2014), uma perspetiva prescritiva, unidimensional, ancorada em conceitos de natureza ambígua do ponto de vista teórico (e.g., ajustamento, adaptação intercultural, desempenho), cujo contributo é, à partida, residual para a obtenção de ganhos de clarificação dos processos acionados no plano da subjetividade e da intersubjetividade, das dinâmicas sociais, cognitivas e expressivas, inerentes a uma experiência de prestação de trabalho global (Sanchez et al., 2000; Bartel et al., 2001), e, em concreto, a uma expatriação organizacional (Lindgren et al., 2001; Kohonen, 2007; Alvesson et al., 2008).

Com efeito, na literatura existente sobre as temáticas mencionadas, sobressai como tendência a adoção de estratégias de pesquisa com foco analítico tipicamente unidimensional, centrado ou na experiência do indivíduo mobilizado (Takeuchi, 2010; Mayrhofer & Reiche, 2014), tomado como principal stakeholder no/do universo do trabalho prestado num quadro internacional, ou na perspetiva das empresas que promovem e gerem este regime de prestação de trabalho (Brewster et al., 2014). Trata-se de uma opção que se prende, no essencial, com constrangimentos de ordem prática, de acesso ao campo empírico, que dificultam o desenvolvimento de abordagens multidimensionais (Mayrhofer & Reiche, 2014). Em particular, como é ilustrado por Dabic et al. (2013), no decurso das últimas quatro décadas, o foco típico dos estudos realizados sobre mobilidade associada ao universo da prestação de trabalho global, e, em particular, sobre projetos de expatriação organizacional concretizados no quadro de empresas e organizações transnacionais (Pries, 2001), tem vindo a centrar-se nos modos de gestão dos ciclos de expatriação (Adler & Gundersen, 2008), na descrição de condições de ajustamento do profissional mobilizado e de modelos-padrão de adaptação, na análise das possibilidades de otimização dos desempenhos individuais (Lysgaard, 1955; Black et al., 1991; Shaffer et al., 1999; Mol et al., 2005; Thomas et al., 2012; Takeuchi, 2013).

Tendo presente a questão de partida assumida para o programa de pesquisa, procurou-se, a partir deste conjunto de observações, identificar uma perspetiva de problematização distinta da identificada como prevalecente em termos bibliográficos, um modo de ver,

3 especificamente sociológico, de um problema sociologicamente relevante, que permitisse a delimitação inicial de um caso2 (Ragin & Becker, 1992, pp. 9-10)

A prestação de trabalho global (Suutari et al., 2009; Mayrhofer et al., 2012; Baruch et al., 2013; Mayrhofer & Reiche, 2014) emergiu, neste contexto, pelo alcance integrador e multidimensional, como ideia agregadora, um centro de gravidade temático da pesquisa. O trabalho global define, em termos gerais, uma modalidade específica de realização de trabalho, uma forma de trabalho contingente (Lundin et al., 2015), cujo exercício implica, numa maioria de circunstâncias, mobilidade (física) dos indivíduos através de países/fronteiras geográficas (Mayrhofer & Reiche, 2014), podendo a sua prestação implicar (ou não) uma inscrição organizacional.

Num contexto empresarial, a prestação de trabalho global associa-se a processos de internacionalização da atividade produtiva, e decorre da emergência de modalidades particulares, globais, de coordenação e de organização do trabalho (Bartlett & Ghoslal, 1992; Galbraith, 2000). Trata-se de uma realidade heteróclita, multidimensional, que se expressa por via de uma multiplicidade crescente de fenómenos socioeconómicos e organizacionais. Neste sentido, considera-se que o trabalho global define, em termos concetuais, em simultâneo, uma modalidade particular de exercício, de realização de trabalho, e um tipo de experiência específica, de um ponto de vista individual. Assim delimitado como objeto em termos teóricos, visou-se a adoção de um horizonte de análise do trabalho global e da prestação de trabalho global distinto das abordagens que o consideram no quadro de uma articulação com a análise de fluxos migratórios, a um nível micro ou macrossociológico3.

Um dos traços específicos da economia mundial contemporânea é a criação e a densificação de atividades produtivas de natureza transnacional (Bartlett & Ghoslal, 1992;

2 Em termos teórico-metodológicos, um caso representa, numa aceção construtivista, uma construção teórica que emerge no decurso de um processo de pesquisa. Um caso, neste sentido, não se encontra ou se descobre, não é dado ou existe a priori. Representa a prática ou o fenómeno em análise, apresenta uma função de sensibilização ou orientação teórica, e é sugerido, em parte, pela questão de partida da pesquisa (Czarniawska, 2014, p. 23). Na circunstância em apreço, este é o sentido visado. Um outro sentido tipicamente apenso a esta expressão apresenta um acento empiricista, derivando do seu uso como expressão que representa uma unidade empírica, sugerindo o seu uso a identificação de instâncias, de sites disponíveis para a análise empírica do objeto de estudo (Ragin & Becker, 1992, p. 8).

3A teoria migratória clássica coloca o acento tónico da análise em factos migratórios caracterizados, em

medida significativa, pela permanência temporal, e pela mudança de territorialidade e de contexto social dos indivíduos. Trata-se de referências que têm vindo a ser crescentemente questionadas, pela crescente dificuldade de estabelecimento de fronteiras (concetuais) entre migrações clássicas, mobilidades temporárias, circulação pendular (em espaços de vida quotidianos alargados) e mobilidades imateriais, virtuais (através de meios de comunicação à distância). Hoje, estas fronteiras são ténues, não obstante “(...) nos tenhamos habituado a encarar como axiomática a ideia de que a copresença física (no espaço) e duradoura (no tempo) possui implicações sociológicas precisas, pelo que uma mudança intensa (no espaço e no tempo) apresenta propriedades particulares – sendo a migração uma mudança simultânea dessas coordenadas –, tal tem perdido tendencialmente significado” (Peixoto, 1998, p. 95).

4 Galbraith, 2000), onde organizações transnacionais desempenham um papel nevrálgico - organizações inexistentes, na sua forma e expressão atual, há poucas décadas. As organizações, e, em particular, as empresas, com os seus mercados internos de trabalho, são um dos principais veículos institucionais das migrações contemporâneas (Peixoto, 1998), desempenhando um papel significiativo na estruturação de práticas de mobilidade profissional: “No campo das migrações internacionais, o canal predominante dos fluxos de quadros é, agora, o das empresas transnacionais” (Peixoto, op. cit., p. 511). Trata-se de uma circunstância que decorre, nos termos de Peixoto (op. cit., pp. 2-4), da importância socioeconómica das grandes organizações (multirregionais e multinacionais), das empresas e do Estado, da necessidade organizacional de existência de fluxos de mobilização e de colocação de recursos qualificados, e da sua “facilidade” relativa, menção já referida anteriormente.

A emergência destas organizações multi-localizadas, públicas ou privadas, de grande dimensão, implicou uma forte deslocação espacial dos indivíduos como forma ou veículo de acesso à concretização de percursos profissionais ascendentes. A “variação espacial da força de trabalho” tende a acompanhar a mobilidade estrutural dos meios de investimento e de produção (Massey, 1984). Neste quadro, as empresas transnacionais (Pries, 2001) desempenharam e desempenham um papel especialmente relevante na recomposição de práticas de gestão de mobilidade de profissionais, e do seu contributo específico para os fluxos migratórios globais (Peixoto et al., 2016). Trata-se de um contributo significativo no contexto português, onde, tipicamente, grande parte das movimentações internacionais não se processa num contexto de iniciativa individual, mas enquadrada por práticas internas de empresas e de organizações (Peixoto, 1998).

Registam-se, no decurso da última década, esforços crescentes de compreensão de diferentes tipos de prestação de trabalho global que têm lugar nas e pelas organizações, e, nestas, nas empresas internacionais em particular (Peiperl & Jonsen, 2007; Suutari et al., 2009; Andresen et al., 2012; Kraimer et al., 2012b; Baruch et al., 2013, Andresen et al., 2014). Peiperl e Jonsen (2007), num primeiro momento, Kraimer et al. (2012b), num aprofundamento posterior, sugerem a existência de três dimensões, em termos sócio-materiais e fenomenológicos, que permitem distinguir a prestação de trabalho global como modalidade específica de realização de trabalho: 1) a mobilidade física; 2) a flexibilidade cognitiva (em simultâneo, como requisito prévio e efeito da experiência); e 3) o potencial de disrupção com domínios contíguos ao trabalho (a família, a conjugalidade, o estilo de vida, em particular). Neste contexto, Baruch et al. (2013) identificam, no quadro da divisão internacional do trabalho contemporânea, sete dimensões específicas passíveis de caracterizar uma experiência de trabalho global, e, a partir da diferente conjugação relativa destas, apresentam uma proposta constituída por vinte tipos distintos de trabalho global (cf. Anexo A, para análise do detalhe

5 desta proposta). A orientação fundamental de cada dimensão proposta pelos autores é perspetivada como crítica na diferenciação da experiência individual (Dubet, 1994) de prestação de trabalho global.

Considera-se decisivo, neste sentido, enquadrar a prestação de trabalho global, em si mesmo, enquanto modalidade contemporânea de exercício do trabalho, expressão de práticas de gestão e de organização localizáveis, em termos sócio-históricos, no conjunto de mudanças operadas nas e pelas empresas, consideradas não apenas enquanto categorias expressivas, mas também enquanto agentes de estruturação social (Sainsaulieu, 1988). Deste modo, na presente pesquisa, a prestação de trabalho global é perspetivada, em termos teóricos, como fenómeno emergente do campo do trabalho, do emprego e da empresa, considerando-se relevante atender, por este motivo, às mudanças socioeconómicas e socioculturais inerentes à evolução dos diferentes modos de organização do capitalismo (Lash & Urry, 1987; Amable, 2003, 2005; Boltanski & Chiapello, 2009) num quadro de modernização reflexiva (Beck, Giddens & Lash, 2000, [1994]), e aos conflitos potencialmente experimentados por empresas e pelos indivíduos neste contexto.

A ação individual, a experiência de tensão (Kraimer et al., 2012a), a possibilidade de existência de conflito e de crise identitária (Dubar, 2006), circunstâncias que contribuem, a par de outras, para a incerteza que tende a caracterizar os percursos de vida contemporâneos, delimitam uma outra dimensão significativa, no quadro problematizador da pesquisa. Considera-se que as práticas de recomposição identitária, consideradas como atividade de reconstrução de semelhanças e de diferenças, de expressão de tensões de natureza dual inerentes à relação e à integração social (e.g., dentro/fora, inclusão/exclusão, eu/outro, herdado/visado, estrutura/prática, socialização/ação), são particularmente salientes num contexto como a prestação de trabalho global, e, em particular, como a expatriação organizacional (Thomas, 1998, Kohonen, 2007; Nasholm, 2011; Kraimer et al., 2012a), pelo facto de se modificarem, nestes contextos, de modo sensível, as referências e os recursos disponíveis (linguísticos, relacionais, materiais, simbólicos) para que o indivíduo se possa exprimir (narrar, relacionar, interpretar), fazendo-se, de certo modo, reconhecer.

Da exploração de diferentes direções de problematização da prestação de trabalho global enquanto problema de pesquisa, emergiram, em termos gerais, várias relações que se afiguraram pertinentes na consolidação das dimensões analíticas a considerar, no desenvolvimento de um programa de pesquisa:

a. A relação da prestação de trabalho global com o tempo. Num quadro de prestação de trabalho global, o tempo tende a ser tomado em termos lineares, é finito, o que induz mudanças no modo como as relações sociais estabelecidas no e pelo trabalho são perspetivadas - de

6 modo provisório (Ibarra, 1999), com maior pendor instrumental, transacional (Baruch, 2004, 2006), temporário. A temporalidade é subjetivamente apropriada, num contexto de prestação de trabalho global, como duração, uma duração linear adstrita a unidades particulares, discretas, de trabalho, propostas à luz de modelos de gestão inspirados por princípios de racionalização flexível (Abrahamson, 1997) e de organização temporária (Bakker, 2010; Packendorff & Lindgren, 2014; Lundin et al., 2015). Assiste-se, em particular desde a década de 1970, ao início de uma era de projetos económicos “temporários” e “flexíveis”, sujeitos à vigência de um contrato específico e à necessidade episódica de tipos particulares de competências técnicas (Peixoto, 1998, p. 195);

b. A relação da prestação de trabalho global com o espaço organizacional. Num contexto de gestão da prestação de trabalho global, o espaço organizacional é perspetivado como sendo dotado de fluidez. Pode representar ou não um constrangimento. É (sempre) outro, todavia, o espaço organizacional, material, onde as atividades de trabalho global se desenrolam, em experiências individuais que tendem a ser marcadas pela distância e pelos efeitos da distância (Cappellen & Janssens, 2010c). Estar ou sentir que se está fora, off-site, com contactos esparsos com o grupo tido como de pertença (Merton, 1968), pode gerar conflito identitário, a diluição de comprometimentos, de um sentido de continuidade, de segurança (Elliott, 2015). Em teoria, poderão ser outros, os espaços organizacionais salientes num quadro de prestação de trabalho global, mais difusas as relações de autoridade e de interdependência que se estabelecem. A rede, o projeto, a mobilidade, o movimento no espaço, podem emergir, neste contexto, como categorias expressivas;

c. A relação da prestação de trabalho global com a alteridade, a diferença. A prestação do trabalho global apresenta-se, em termos putativos, como modalidade de exercício do trabalho e prática de gestão centrífuga (Stoffaes, 1992 [1991]), disjuntiva (Appadurai, 1990, 1996), cuja genealogia e alcance ontológico se consuma pelo colocar fora, pela dispersão (Jameson, 2011), pela produção, não de repetição, mas sim de diferença(s) (Deleuze & Guattari, 2004), configurando uma potencial situação crítica4 num quadro de relações sociais rotinizadas (Giddens, 1984, 1989), uma experiência de integração social temporária, liminar (Tempest & Starkey, 2004; Beech, 2011; Borg & Soderlund, 2014), condição de ambiguidade (Thomas, 1998; Bartel & Dutton, 2001; Osland & Osland, 2005), de tensão (Kraimer et al., 2012a), e, em simultâneo, de acréscimo hipotético de autonomia individual e de liberdade relativa (Cappellen & Janssens, 2010a, 2010b, 2010c);

4 Para Giddens (1989, p. 49), uma “situação crítica” é “a circunstância de tipo imprevisível que afeta uma quantidade substancial de indivíduos, e que ameaça ou destrói as certezas de rotinas institucionalizadas”.

7 d. A relação da prestação de trabalho global com a individualização, com a possibilidade de constituição (social) de lógicas de ação individualizadas. O indivíduo propenso a atos heróicos (Osland, 2000; Alvesson et al., 2008; Alvesson, 2010), que se idealiza, que se narra e reinventa (Kaufmann, 2004, Elliott, 2013), a ele próprio, como um herói disposto a sacrifícios (Osland, 2000; Maclean et al., 2012), idealizado pelos outros como disponível, capaz, relacional, como estando sempre pronto (Ehrenberg, 1995, 1998). O indivíduo que vai e que regressa, e cuja afirmação não deriva, neste sentido, da afirmação de um individualismo em sentido ético, intro-determinado, mas sim da possibilidade de subsistência de um e num enquadramento social e organizacional;

e. Considerar o trabalho global como uma prestação situada, implica o encontro com realidades intrinsecamente plurais, multidimensionais. O desempenho de trabalho global constitui uma realidade apenas suscetível de plural (Certeau, 1974). Em termos empíricos, não existe, em si mesmo, trabalho global – existem, sim, múltiplas formas de prestação de trabalho global, observáveis enquanto produto de práticas sociais e organizacionais, de uma atividade, de um desempenho situado. A perenidade da inscrição organizacional do trabalho prestado, a multidimensionalidade intrínseca a esta inscrição, pode gerar, no plano sincrónico e diacrónico, conflito identitário (Ashforth & Johnson, 2001; Bartel & Dutton, 2001), decorrente da concorrência e da simultaneidade de atracões (Stoffaes, 1992 [1991]), da ambiguidade correlativa de pertenças.

1.2.A construção de um modelo de análise orientador da pesquisa.

A consideração da prestação de trabalho global como problemática da pesquisa sugeriu, enquanto necessidade correlativa, a exploração e a clarificação adicional de diferentes noções ou temáticas contíguas (e.g., globalização, globalismo, internacionalização empresarial, empresa internacional, gestão internacional de recursos humanos, mobilidade internacional, profissão global), cuja diversidade e necessidade de articulação relativa, determinou o aprofundamento iterativo do quadro bibliográfico tomado como referência.

No desenvolvimento do caso a considerar, em termos “lógico-teóricos” (Silva, 1994, p. 40), diferentes perspetivas sociológicas centradas no ator, na ação e na interação em contexto organizacional, com diferentes focos e filiações – e.g., a ação como conhecimento e socialização (Berger & Luckmann, 1999 [1996]; a ação como interação situada (Goffman, 1959, 1961, 1983); a ação como linguagem (Schutz, 1972); a ação como estratégia (Silverman, 1970; Crozier & Friedberg, 1977); a ação como experiência (Dubet, 1994); a ação como prática (Bourdieu, 2002 [1972]) – foram selecionadas como eixo de enquadramento

8 inicial dos pontos de vista teóricos que poderiam cuidar da análise da natureza das relações que se estabelecem entre o indivíduo e a evolução da sua situação de trabalho.

Como é defendido por Weick (1979, p. 33), a consideração dos predicados organizacionais de um contexto particular de trabalho deve remeter para uma abordagem informada pela interdisciplinaridade. Atendendo ao mencionado, diferentes operadores de análise foram considerados a este nível, no sentido de identificar a forma como diferentes conceitos- charneira e a sua (inter)relação, permitiriam firmar uma perspetiva analítica relevante no tratamento da prestação de trabalho global enquanto problemática de referência da pesquisa, e na edificação de um articulado teórico suscetível de dar conta do observado em termos empíricos.

O processo de destradicionalização (Giddens, 1984, 1989) das relações sociais e dos modos de integração social e organizacional (Dubar, 2006), localizável no contexto de uma sociedade temporária (Bennis & Slater, 1968), de natureza centrífuga (Stoffaes, 1992 [1991]), perpassada por dilemas de representação (para empresas e para indivíduos) (Jameson, 2011), emergiu como mudança estrutural significativa, ao sinalizar, em certa medida, o carácter heterogéneo, transitório, efémero, movente, atribuível a práticas organizacionais e individuais contemporâneas. Neste quadro, instituições sociais clássicas (e.g., o Estado-nação, a empresa, o emprego, o trabalho, a profissão, a família) apresentam-se diminuídas no seu papel referencial, na sua influência (outrora) integradora, registando-se a possibilidade de existência de conflito e de contradição no plano da ação dos indivíduos, num contexto marcado pela temporalidade e pela interrupção persistente da continuidade contextual (Archer, 2007), por formas de organização social transitórias, como o projeto ou a rede (Lundin & Soderholm, 1995; Lundin et al., 2015).

Considera-se, neste quadro, que a ação individual é, em grande medida, o resultado de um fazer, de uma atividade, de práticas (Bourdieu, 2002 [1972]; Schatzki et al., 2001) localizáveis no decurso de trajetórias de vida individuais, que decorrem de contributos das instituições, e, em particular, das interações sociais (Veloso, 2004). Neste sentido, considera-se que as determinações sociais e organizacionais são insuficientes, no presente, para dar conta da diversidade individual e de trajetórias pessoais, profissionais e familiares. O foco da análise sociológica deve articular, neste quadro, a influência imputável às estruturas sociais para a compreensão das trajetórias dos indivíduos, e às implicações da necessidade de mobilidade (Urry, 2000, 2007; Cresswell, 2006; Costas, 2013) e de autonomia individuais (White, 1992; Beck, 2000; Billett, 2003, 2005, 2006).

Na presente pesquisa, o foco da análise é colocado, deste modo, numa perspetiva dual: nas práticas desenvolvidas, por um lado, por coletivos organizados (empresas), e, por outro, ao

9 nível individual, nos diferentes contextos proximais, materiais, de interação social que as condicionam, delimitando diferentes espaços de possibilidades de práticas (Bourdieu, 2002 [1972]), de inscrição situada de trajetórias individuais.

A regra formal, para Tarde (2007 [1893]), é valorizada não como uma norma, mas sim como uma possibilidade que se pratica. A prática “realiza” o indivíduo, torna-o “real” - uma