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Experiência de Estágio no Hospital José Pedro Bezerra e no Programa de Assistência às Vítimas de Agressão Sexual (PAVAS)

3 A QUESTÃO DO ABORTO: UM DEBATE NECESSÁRIO SOBRE O DIREITO AO CORPO E AUTONOMIA DAS MULHERES

3.1 Experiência de Estágio no Hospital José Pedro Bezerra e no Programa de Assistência às Vítimas de Agressão Sexual (PAVAS)

No curso de Serviço Social estuda-se várias temáticas que atribuem à profissão uma formação generalista, que permite ao (à) Assistente Social ter uma visão de totalidade em relação às múltiplas expressões da Questão Social. Dentre elas, a que mais chamou-me a atenção foram as discussões sobre gênero, violência contra a mulher, as quais pude ter mais contato dentro da disciplina optativa Seminário Temático sobre Gênero, ofertada pelo Departamento de Serviço Social, ao cursar o terceiro período do curso. Logo, para a realização do estágio curricular obrigatório foi escolhida a área da saúde, mais especificamente, no Hospital José Pedro Bezerra (HJPB), situado no município do Natal/RN, ligado à Secretaria de Estado da Saúde Pública – Sesap/RN, onde eu tive mais contato com a temática de gênero, saúde da mulher, violência doméstica e sexual. Esta experiência foi substancial para a construção deste trabalho.

O estágio supervisionado tem o intuito de inserir o (a) estudante no cotidiano de atuação do(a) Assistente Social nas instituições, para que este compreenda a materialização das

2 XV CBAS, realizado no período de 05 a 09 de setembro de 2016 na cidade de Olinda (PE).

3 XVI CBAS, realizado no período de 30 de outubro a 03 de novembro de 2019, na cidade de Brasília (DF).

dimensões teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa do campo de trabalho e adquira a vivência da prática profissional, possibilitando a observação das múltiplas expressões da questão social inseridas nas políticas, aqui especialmente a de Saúde, mais especificamente no HJPB. O estágio tem como método a reflexão sobre os contextos sociais, políticos, éticos, institucionais e técnico-operativos, através da escuta nos atendimentos individuais ou coletivos aos (às) usuários(as). Dessa forma, o(a) profissional de Serviço Social tem o compromisso ético-político de defender a formação de qualidade, a supervisão como qualificação de seu fazer e com a formação dos(as) alunos(as), haja vista que é atribuição privativa do Assistente Social supervisão dos(as) estudantes de Serviço Social, bem como a indissociabilidade entre a teoria e a prática.

Quanto aos projetos que o hospital desenvolve, cabe ressaltar aqui, apenas dois: projeto da Casa Mãe Cidadã, que se refere a um espaço dentro do hospital que acolhe as mães que já receberam alta hospitalar, porém seus filhos ainda estão na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN). A casa tem o apoio de uma equipe multiprofissional composta por médicos (as), Nutricionistas, Psicólogos(as) e Assistentes Sociais. O Programa de Atendimento às vítimas de Violência Sexual (PAVAS), que teve seu início a partir do ano de 1999, trabalha com as mulheres que passaram por situações de violência sexual a partir do atendimento de urgência e acompanhamento ambulatorial, que são desenvolvidos pela equipe multiprofissional do Hospital, objetivando minimizar as sequelas físicas, psicológicas, sociais e morais desse tipo de violência sexual.

O projeto da Casa Mãe Cidadã foi o setor de desenvolvimento do projeto de intervenção em estágio, ao qual o objeto do trabalho foram as mulheres acolhidas na Casa da Mãe Cidadã, que tinha por objetivo fomentar discussões sobre relações patriarcais de gênero, direitos sexuais e reprodutivos e sexualidade com as mulheres acolhidas na Casa da Mãe Cidadã. Apresentava como objetivos específicos abordar as relações patriarcais de gênero que atravessam a sociedade e o impacto para a vida das mulheres; elucidar junto às mulheres da casa mãe cidadã os principais aspectos dos direitos sexuais e reprodutivos e como esses direitos podem ser por elas acessados; promover discussões sobre a sexualidade como uma totalidade da vida humana.

As temáticas abordadas giraram em torno da discussão sobre as categorias Gênero, Patriarcado e Machismo, de maneira de se adequassem ao entendimento delas, pois no momento de realização das entrevistas sociais foi percebido que a maioria possuía baixa escolaridade. A preocupação em ser uma linguagem mais acessível foi primordial para que as envolvessem na discussão, visto que esses temas são amplamente discutidos na graduação, mas

não são comumente disseminados nas instituições de saúde do país. Foi discutido também sobre direitos sexuais e reprodutivos, com metodologias variadas. Desde colagem de figuras sobre o que seriam brinquedos e atividades femininas e/ou masculinas na sociedade à exposição de vídeos explicando o que seriam os direitos sexuais e reprodutivos. Ao fim, foi feita uma roda de conversa a qual elas puderam expor seu olhar sobre as atividades desenvolvidas.

A avaliação foi feita pela exposição oral e voluntária sobre as atividades, que ao ver delas foram muito importantes para compreender seus papéis na sociedade e entender, também, o porquê de estarem naquele espaço para acompanhar seus (suas) filhos (as). Algumas delas relataram o sofrimento de precisar ficar meses na casa sozinhas (salvo as exceções em que mães menores de 18 anos, precisam ser acompanhadas e em casos em que a mãe dá indícios de problemas psicológicos), restritas apenas a poucas visitas na semana e à alimentação hospitalar, por ser aquela dieta que melhor atende às necessidades de seus filhos. É importante ressaltar que as mulheres acolhidas não são obrigadas a ficar “internadas” com seus filhos, mas que essa é a opção mais viável para aquelas que moram distante do hospital e não tem a condição de se locomover a cada 3 três horas para cumprir com a alimentação dos recém-nascidos. Também foi relatado que as atividades desenvolvidas quebraram a rotina de apenas ir visitar os leitos da UTI neonatal, pois era uma forma de distração e de aquisição de conhecimento.

Por se tratar de um hospital-maternidade de média e alta complexidade e que possui um pronto socorro obstétrico, esse é tido como referência dentro do estado do Rio Grande do Norte e atende a usuários (as) dos municípios circunvizinhos, que tem acesso pela entrada norte da cidade.

É partir do acolhimento das mulheres no PAVAS que surgiu a opção pelo objeto deste trabalho que é analisar como se configura a visão das/os Assistentes Sociais no atendimento às mulheres em situação de aborto no Brasil, a partir dos artigos publicados nos anais do 15º CBAS (2016) e 16º CBAS (2019).

Ao longo das entrevistas sociais feitas com os acompanhantes das mulheres que dão entrada no hospital em virtude de complicações na gravidez, parto imediato e/ou pós-parto, pude perceber como é realizado o atendimento das Assistentes Sociais.

Nos casos em que se configura como violência sexual, a mulher é colhida, primeiramente pelo Serviço Social, que recebe o relato e anota no formulário do programa. Esse formulário é multiprofissional e nele há espaço para o atendimento do Serviço Social, da Enfermagem, da Psicologia e da Medicina. A partir das anotações do Serviço Social, os demais profissionais orientam para que a vítima não precise relatar e reviver várias vezes a mesma situação e, assim, reduzir o impacto de seu depoimento. Se o caso for apenas para evitar uma

possível gravidez, ela já é encaminhada para a profilaxia (conjunto de medicamentos que previnem a gravidez e possíveis Infecções Sexualmente Transmissíveis). Se o caso já é de gravidez comprovada, ela será direcionada para fazer a interrupção legal da gravidez, se esse for o seu desejo. É importante destacar que é esclarecido a ela todos os seus direitos e que não irá impactar na sua liberdade civil e nem na saúde, já que se trata de um procedimento seguro e com assistência médica. Assim ela terá acompanhamento psicológico, social e médico, mesmo depois de se concretizar o aborto legal.

Podemos perceber que há uma diferença explícita e segregacionista em relação às mulheres que procuram o hospital em situação de abortamento: todas são questionadas se o aborto foi espontâneo ou provocado. Antes disso, tem todo um “protocolo de espera na triagem”

do hospital, passando pelo crivo moral de quem as atende. O atendimento é demorado quando se observa que o caso não é grave; depois, são constantemente questionadas pela equipe de enfermagem e médica a respeito do abortamento. É importante frisar a diferença de tratamento das mulheres quando é identificado um caso de agressão sexual ou quando o aborto é espontâneo ou provocado: as vítimas de agressão sexual são encaminhadas ao PAVAS e mesmo que passem por alguma situação constrangedora dentro da instituição são bem acolhidas. Já as mulheres que são observadas com processos de abortamento provocado, quando ocorre a curetagem (o procedimento de retirada do aborto), elas ou ficam pelos corredores para que todos vejam que “aquela” mulher abortou ou mais frequentemente, são colocadas junto a leitos de mulheres puérperas com bebês para que além de se sentirem culpadas (quando o aborto foi provocado), outras pessoas as perguntem: “onde está o seu bebê?”. É como uma forma de castigo para aquela mulher, mas isso acontece de forma velada. É naturalizado que naquele ambiente mulheres que sofreram um aborto sejam tratadas dessa forma. É comum, vez ou outra, saber delas que não foram bem atendidas pela equipe do hospital.

É comum que médicos (as) se recusem a realizar o atendimento de interrupção de gravidez mesmo em casos legais e garantidos por lei às mulheres vítimas de violência sexual, por ser contra seus princípios morais e religiosos. A respeito disso, a norma técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento (2005) diz que

é fundamental, por fim, reconhecer que a qualidade da atenção almejada inclui aspectos relativos à sua humanização, incitando os profissionais, independentemente dos seus preceitos morais e religiosos, a preservarem postura ética, garantindo o respeito aos direitos humanos das mulheres (BRASIL, 2005, p. 9).

Os (As) profissionais médicos(as) que seguem as normativas e realizam o procedimento do aborto não são bem vistos(as) entre a categoria, como é o caso do PAVAS que tem apenas uma médica que realiza os procedimentos para o abortamento legal. Podem ser notados também diferentes tipos de atendimento dentro do próprio Serviço Social, em que podem ser vistas práticas de garantia dos direitos das mulheres em situação de abortamento sem a reprodução de preconceitos e moralismos, ao lado de posturas conservadoras em sua atuação, seja ao acolher, ao questionar a usuária ou de duvidar de seu relato, comentando com as colegas de profissão. É possível compreender o motivo de práticas conservadoras de algumas profissionais, visto que concluíram o curso de Serviço Social ainda na década de 1980, período em que haviam poucas discussões sobre o trabalho profissional do Serviço Social frente a questão do aborto, apesar de que não justifica sua atuação profissional, pois dentre os direcionamentos ético-políticos da profissão está o compromisso com a formação profissional continuada.

3.2 Do Código Penal de 1940 ao SUS: Avanços e retrocessos nas políticas públicas de