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[N]O INTERIOR DA CIDADE: MEMÓRIAS DE ITINERÂNCIAS Preâmbulo

80 Composição de Jota Velloso Maria Bethânia Kirimurê Álbum: Mar de Sophia; Gravadora: Biscoito Fino; Ano: 2006.

1.5. Experiências de migrantes: o lugar nos estudos em Salvador

Nesta seção, continuo a esboçar sociologicamente o tema e as questões que orientaram este trabalho. Como mostrei, Salvador é uma cidade que cresceu espantosamente nas últimas seis décadas do século XX, mais precisamente entre os anos

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1940 e os 1980,141 como indicam os dados demográficos analisados. Eles revelam que este crescimento ocorreu, especialmente, em virtude dos processos migratórios. Neste mesmo período deu-se o processo de mudança na estrutura produtiva do Estado, com o impulso industrial e modernizador que contribuiu para a transformação de certas regiões econômicas tradicionais, assim consideradas, tornadas centros de expulsão populacional.142 O declínio do crescimento demográfico de Salvador, iniciado já na década de 1960, acelerou-se no decorrer dos anos para aproximar-se hoje das taxas das duas primeiras décadas do século XX.143 De que maneira as Ciências Sociais estavam olhando para todos estes processos? Tratei desta questão na presente seção. Outras questões foram aparecendo mediante os trabalhos que realizei, na tentativa de entender estes processos.

O aparente paradoxo entre o afluxo de riqueza associado a essa expansão e os índices sociais alarmantes, refletidos na miséria explícita da maioria absoluta dos bairros da metrópole baiana, preocupavam planejadores e pesquisadores, desde que o processo ganhou contornos mais nítidos na década de 1950. Mas, preocupavam-se, ainda mais, os habitantes destas áreas que no cotidiano produziram estratégias e “arranjos sociais” para garantir a sobrevivência. Nesse aspecto, nos anos 1950 e 1960 se evidenciou uma relação estreita entre as mudanças demográficas e urbanas em Salvador e as grandes transformações nas atividades econômicas ocorridas na região ampla em que se inseria, bem como, em outras regiões do Estado. A década de 1970, nas linhas das macroanálises sociológicas e demográficas, os estudos continuavam a indicar um momento de mudanças socioeconômicas e culturais muito fortes para a história de Salvador. A crise econômica agroindustrial do Estado e o investimento na industrialização da cidade e sua região metropolitana, com a implantação dos polos industriais, trouxe à nascente metrópole um contingente muito grande de pessoas do interior, em busca de novas possibilidades de liberdade e sobrevivência.

141 Outras análises, como veremos, consideram a partir dos anos de 1950 como sendo o período de significativos fluxos migratórios. Para efeito desta análise, que toma o migrante e seus descendentes na cidade em suas experiências e não o fenômeno, este limite é pensado desde 1940, quando já encontro narrativas que registram a experiência do migrante de outros lugares do Estado em Salvador já nesta década.

142 SOUZA, Guaraci (1978, 1985); MACHADO (1992); SANTANA (1998); SEI (2007, 2006, 2003). Retomo esta discussão no próximo capítulo da tese.

143 Esse processo de mudanças na dinâmica de crescimento e urbanização ligadas as novas orientações e radicalização da do sistema capitalista industrial encontra semelhanças nos principais centros urbanos brasileiras, a despeito de diferenças quanto aos momentos e expressões.

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A década que se seguiu, os 1980, foi marcada pelo o crescimento das invasões em diferentes áreas desocupadas da cidade. As invasões mobilizaram milhares de pessoas que buscavam resolver o problema da moradia que se abatia sobre elas, dentre outros fatores, por conta do alto custo dos aluguéis. O mercado imobiliário se instituiu para transformar em mercado as vastas propriedades dos “donos da terra”, particulares e do Estado, configurando vetores de ocupação e destinações desiguais para diversas áreas da cidade. Este período correspondeu à consolidação de inúmeros movimentos sociais, à ampliação e diversificação das classes trabalhadoras e às conquistas e derrotas desses movimentos ligados a moradia e a vizinhança. É neste momento que os aspectos, por assim dizer, cotidianos e, ao mesmo tempo, estruturantes da vida social da capital baiana, envolta da necessidade de compreender os diferentes sentidos do fazer e configurar a cidade, apareceram de maneira mais central nos estudos acadêmicos a partir de meados dos anos 1980, mas ainda de forma incipiente. É deste momento a ênfase nos processos de produção dos sujeitos; em suas práticas e experiências; nas marcas e transformações que estes produzem nos territórios da cidade; e, sobretudo, na forma como, ao mesmo tempo, se transformou, social e subjetivamente, estes sujeitos.

O sociólogo baiano Gey Espinheira (1986b, 1992), neste rastro, enfatizou as contradições sociais que se manifestavam na cidade e os ajustes sucessivos ao longo da sua história no processo de configuração territorial. A cidade passou a ser vista como a constituição viva do modo de ser dos seus moradores, de suas culturas, assim como da estrutura e das desigualdades sociais. Desta maneira, as práticas e as diversas formas culturais de organização do espaço doméstico e público (no bairro), de sobrevivência, lazer, comunicação, educação, cuidado com os filhos e de enfrentamento e resistência social e política dos habitantes das periferias, incluída a maioria dos migrantes, tornam-se importantes na busca por pertencimento a Salvador.

Em “Divergência e Prostituição”, Gey Espinheira (1985) abordou a questão da prostituição no Maciel/Pelourinho – Centro Histórico de Salvador –, nos anos 1970. O autor traçou o perfil desta população e apontou para o aspecto migrante de sua constituição. O sociólogo baiano indicou os locais de origem, os períodos que estes aportaram em Salvador e se deslocaram pela cidade, o jogo e os confrontos cotidianos e as estratégias por estes para se estabelecerem na metrópole. Nele, o autor registrou a trajetória de vida de

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Tereza e Raquel, ambas migradas para a capital baiana, entre os anos 1960 e 1970. A primeira oriunda do município de Bauru, São Paulo; e, a segunda, do município de Maragogipe, no Recôncavo da Bahia. Estas trajetórias são tomadas por Espinheira para pensar os desejos e projetos que mobilizavam diferentes sujeitos e condições a saírem e construírem percursos que não eram almejados por seus familiares, produzindo o que o autor denominou de “divergência”.

Essa perspectiva e as preocupações de investigação se mantiveram em linha de “divergência”, nas décadas seguintes. Em termos gerais, mesmo já sinalizando mudanças de foco e de certos interesses, as abordagens se mantiveram circunscritas em análises de caráter eminentemente economicistas e estruturais. Alguns estudos desenvolvidos, nos anos 1990 e início dos 2000,144 focavam nas mudanças que a cidade e toda a região estavam experimentando, desde os últimos anos da década de 1970 e nos anos 1980; o advento e consolidação do sistema industrial e o “novo” operariado baiano; as mudanças na malha urbana de Salvador – caracterizadas por derrubadas de edificações habitacionais e comerciais, extração de áreas verdes, alargamento de ruas e recolocações populacionais; o surgimento e consolidação de novos bairros na cidade e a emergência de formas organizativas no âmbito do trabalho e da cultura que sinalizavam para os processos das migrações e para a presença do “mundo rural” na cidade.

Ana Fernandes & Marco Aurélio Gomes (1993), urbanistas, num esforço de sistematização e macroanálise, ao mesmo tempo em que mantinham a ênfase nos grandes condicionamentos econômicos e sociais, demonstraram a relação entre condição de habitação e acesso aos serviços básicos oferecidos pelo Estado. Com efeito, pode-se registrar nessa tendência uma preocupação em embasar políticas públicas para “minimizar” as contradições na ocupação do espaço urbano, e a exigência de uma intervenção mais efetiva do Estado diante dos problemas, em particular da habitação e, da mesma forma, de acesso e circulação nos territórios da cidade.145

Por sua vez, Milton Moura (1997) examinou a distribuição espacial dos bairros

144 No âmbito dos estudos desenvolvidos no CRH/UFBA, além dos trabalhos do Michel Agier, ver ainda: CASTRO (1991); CASTRO & BARRETO (1992).

145 De forma paralela, agências estatais como a Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI) encamparam estudos nesse molde com o objetivo explícito de orientar a formulação de políticas públicas. Conferir (1999).

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pobres e ricos da cidade, que, segundo ele, se caracterizou por uma “integração desigual e assimétrica de extremos relativamente próximos”. Esta visão procurou no modelo de ocupação e administração do território urbano um dos fatores para explicar a cidade e seus modos de vida particulares. Ademais, Moura enfatizou que:

[o] mundo da pobreza é marcado pela precariedade, instabilidade e insegurança e provisoriedade das relações que os indivíduos estabelecem entre si, com os sujeitos empregadores, com o Estado e seus aparelhos... Os arranjos no âmbito da família, do trabalho, da religião, da participação em movimentos explicitamente políticos etc., se dão pelo trânsito incerto num leque restrito de oportunidades e perspectivas. (MOURA, 1997, p. 229)

Efetivamente, não era na provisoriedade que desejavam viver estas pessoas. Elas buscavam a estabilidade do bem viver numa cidade que escolheram para construir seus assentos. Elas buscavam subverter as condições de pobreza e da segregação. Para os migrantes e seus descendestes que viveram a experiência da pauperização, da impossibilidade de acesso a bens materiais e simbólicos, da precariedade social, do preconceito e do racismo na cidade, a busca premente era e continua sendo pela sobrevivência. Ora, esta etnografia demonstra através da experiência destes sujeitos o que significou a escolha de migrar para Salvador; bem como, a maneiracomo se deu a inserção destes no jogo cotidiano da vida urbana e as negociações com referencias culturais e simbólicos associadas aos seus locais de origem.

Retomo as contribuições de Michel Agier em seus estudos na Bahia, nos quais focalizou (como sinalizei anteriormente), a constituição do espaço urbano, os significados a ele atribuídos, as “identidades”, os aspectos das sociabilidades, através das redes sociais constituídas pelos sujeitos no bairro da Liberdade, registrando a espacialização do bairro, imagens, significados e hierarquias na sua configuração. Ele também registrou entre os moradores com os quais conviveu e aos quais acompanhou em suas pesquisas, a presença de migrantes baianos, especialmente vindos do Recôncavo. Estes migrantes assentados no bairro da Liberdade representavam à maioria dos moradores que deram origem as

94 “avenidas”, conforme Agier.146

Preocupado com as redes que configuravam aquele bairro e as relações dos atores sociais com outros espaços da cidade, o autor afirmou a importância neste processo, além das redes familiares, as redes de amigos, as “turmas”. Elas constituíam-se em redes de sociabilidade que, em geral, eram inextricáveis às famílias e configuravam os processos de inserção no bairro e, de forma geral, na cidade, como formas de organização políticas que assumiam papel fundamental na abertura de novas brechas de inserção e benefícios sociais locais (AGIER, 1998a; 1990a, BACELAR, 1991).147 Em outros termos, Agier observou a posição ocupada pelos indivíduos e os grupos familiares e a forma que estes desenvolvem suas trajetórias dentro e fora do bairro, conferindo sentido, dinâmica e existência à cidade. Observei similaridades entre as trajetórias nesta etnografia. Evidencio, nestes casos, a importância dos espaços formais de educação, ou como definiram alguns dos meus interlocutores e entrevistados, estudar fora do bairro, ou estudar na cidade, lhes possibilitou construir novas redes de amizade e [re]conhecimento dela. Através da experiência de sair do bairro, de ir para a rua,148 ampliavam, não só suas redes de relações e sociabilidade, os horizontes, perspectivas e projetos de vida deles.

No processo de configuração do bairro da Liberdade e das redes sociais ali engendradas, Agier evidencia os papéis e inserções diferenciadas na dinâmica social entre homens e mulheres. Tal diferenciação é evidenciada em outros estudos sobre redes de inserção sociais e culturais em Salvador.149

A literatura analisada indica outros aspectos da especificidade das mulheres em suas experiências entre as famílias pobres e negras das periferias da capital baiana, a exemplo da chefia familiar, a ocupação de espaços e cargos de liderança e direção em espaços religiosos e educacionais. Na “Cidade das Mulheres”, décadas antes, Ruth Landes (2002), a partir de suas incursões em terras e águas baianas nos anos 1930, observou o lugar

146 Pequenos becos e ruelas estreitas e sem infraestruturas. Trata-se, entretanto, de uma noção que assume entre os moradores dos bairros pobres, “populares”, como preferiu denominar Agier, de Salvador, outros sentidos e significados, como veremos mais adiante.

147O trabalho de Bacelar é sobre os encontros de jovens para o “baba”, o jogo de futebol realizado por grupos de rapazes em campos de várzea e quadras.

148O termo rua apareceu na pesquisa apreendido de sentidos, para além de sua dimensão espacial e urbanística referente à via de acesso e circulação. Rua referindo-se à cidade; a um festejo público, a uma atividade política (manifestação pública). Em outros casos, a rua aparece como lugar onde a vida social e coletiva acontece e as pessoas se encontram; onde a vida acontece.

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de centralidade e poder exercido pelas mulheres no universo religioso dos Terreiros de Candomblé em Salvador e o alcance deste poder no âmbito da organização das famílias pobres e negras e, de forma mais ampla, na vida social da capital baiana. Tempos depois, nos anos 1980, em “A família das mulheres”, Klaas Woortmann (1987) evidenciou a peculiaridade da participação das mulheres na estruturação e na chefia das famílias baianas. Em “As casas das mães sem terreiro”, Gabriela Hita-Dussel (2004) analisou as formas de composição das redes sociais de inserção e participação engendradas por mulheres negras (mães/avós) do bairro do Nordeste de Amaralina, na orla oceânica de Salvador, informando a especificidade da figura feminina, nos anos 1990, no que concerne a chefia da família por parte de mulheres mais velhas na administração de diferentes gerações. O bairro do Nordeste de Amaralina, assim como a maioria dos bairros do Subúrbio Ferroviário, é estigmatizado no imaginário social da cidade como lugar de criminalidade e violência. Nestes bairros, da mesma forma que em outros lugares, as pessoas usam como estratégia de proteção deslocar em suas narrativas a indicação do lugar da moradia, ao se afirmarem moradores do Rio Vermelho – bairro de classe média e tradição boêmia dos artistas e intelectuais da cidade –, que faz fronteira com o Nordeste de Amaralina.

Em trânsito neste campo, o trabalho de Cláudio de Almeida (2009) forneceu pistas muito interessantes para pensar as estratégias de inserção de mulheres negras da periferia de Salvador em diferentes redes de relações sociais e culturais da urbi. As experiências das mulheres – moradoras do bairro periférico de Castelo Branco –, eram marcadas pela participação em cargos de liderança e posições de destaque nas igrejas evangélicas nas quais congregavam. Almeida enfatizou as semelhanças compartilhadas entre estas mulheres para explicar a ascensão delas na congregação e destacou, em especial, o “tempo de moradia no lugar”: a antiguidade no bairro onde se situavam suas igrejas. Esse tempo lhes conferia um reconhecimento e respeito por parte dos outros moradores do bairro que ultrapassava a esfera da “vizinhança” e adentrava a “comunidade religiosa”, potencializando a ascensão aos cargos mais elevados da hierarquia sacerdotal do pentecostalismo (espaço reservado predominantemente aos homens). A antiguidade de residência no bairro é um importante “capital social e simbólico” nos bairros pobres e negros de Salvador. Este aspecto de reconhecimento, respeito e consideração se evidenciam

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em ideias que aparecem inscritas nos relatos emitidos, por exemplo: Fulano é filho, neto de Seu Beltrano e Dona Fulana; Poxa, véio, você não respeita Dona Fulana e ou Seu Beltrano; Fala com Dona Sicrana.

Em outra oportunidade, Agier refletiu sobre as trajetórias, discursos e inserções institucionais de “lideranças afro-baianas” em espaços religiosos, culturais, políticos e sindicais em Salvador, nos finais dos anos 1970 e nos anos 1980, e destacou, na combinação desses três aspectos, uma matriz de compreensão do processo de identificação dessas lideranças e de produção – se assim posso dizer –, de pertencimento e identidade (AGIER, 1998b). Ele trabalha a trajetória de lideranças em diferentes espaços da vida social de Salvador. O autor destacou, sobretudo, a importância destes “lugares de origem” na constituição identitária e nos rumos que estas lideranças150 deram em seus percursos pela cidade.

Antônio Sérgio Guimarães, neste campo temático, enredou pela a dinâmica do “operariado baiano”, nos anos 1980, a partir da trajetória de “lideranças”, algumas delas marcadas pelo deslocamento do interior do Estado da Bahia para a capital, em especial do Recôncavo da Bahia. Através da história de vida de Alberto, nascido no município de São Félix, na região do Recôncavo, nos anos 1950, Guimarães analisou o processo de (re)significação da pertença à cidade a partir da participação nos movimentos de reivindicação política (GUIMARÃES, 1998). A partir desta trajetória marcada pela luta, problematiza as implicações desse “lugar de origem” nas experiências que caracterizam as relações em diferentes redes sociais, a exemplo da família. É salutar observar que Guimarães enfatizou os processos que engendram o percurso que esse e outros sujeitos produzem na cidade e, sobretudo, as mudanças e (re)significações que estes operam mediante os lugares socioculturais que ocupam na dinâmica da vida na capital. Ao mesmo tempo, não deixou escapar a sua análise os conflitos que preenchem de colorido as relações sociais entre os membros que figuram a rede familiar destas lideranças. Os conflitos e as frustrações indicados pelo autor na trajetória de Alberto circundavam a esfera da educação formal, no caso, abandonada, sobretudo, em detrimento da inserção no mundo do trabalho operário, constituído e alimentado pela lógica do conhecimento técnico operacional; e

150 O termo liderança tem múltiplos sentidos apropriados e operados entre os meus entrevistados, como veremos mais adiante.

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ainda, dos diferentes valores morais e culturais junto aos membros da família (cônjuge, irmãos e filhos).

O trabalho do antropólogo haitiano Louis Marcelin (1996), “A invenção da família afro-americana”, sobre as famílias negras do Recôncavo da Bahia e suas redes familiares polarizou diferentes aspectos que ajudaram a alinhavar esta tese. Marcellin, ao narrar a experiência dos sujeitos com os quais trabalhou, toma como ponto de partida as “casas”, os grupos familiares, residentes nos bairros da periferia do município de Cachoeira, sem perder de vista as “travessias” e os circuitos produzidos por estas pessoas, seus familiares e parentes para e entre outras cidades da região, especialmente Salvador. No caso, analisou o processo estruturado em dois níveis: i. da “casa” e ii. das “configurações das casas” (Idem). Marcellin tratou estes níveis, tendo em conta que a “casa” assumia um sentido e um significado para os indivíduos e grupos envolvidos no processo uma dimensão, não só prática, mas simbólica, como um conjunto de representações sociais e culturais, de valores morais, que configuram uma forma de organização familiar e social mais ampla para as famílias negras e pobres das cidades do Recôncavo. Neste trabalho o autor faz um percurso minucioso pela literatura antropológica que trabalha a “casa” enquanto categoria analítica, indicando que, geralmente, os termos casa (maison), maisonnèe, demeure (home, lar), família e outros tantos que lhes são associados apresentam um vasto lastro de significados culturais. Constituindo, desta maneira, categorias culturais que, enquanto tais, traduzem realidades com limites fluidos, cujas normas participam de uma determinada experiência social.151 E enquanto tal podem remeter às mais diversas imagens e realidades; a diferentes

151 Marcelim faz uma profunda revisão da literatura que trata a casa enquanto experiência social e cultural e categoria analítica. O autor parte das contribuições de Levi-Strauus sobre a maison, como centro da organização social das “societés à maison”. Lévi-Strauss com a perspectiva de ultrapassar as oposições filiação/aliança, propôs a noção de casa (maison), com a finalidade de dar conta das práticas familiares, da domesticidade e do parentesco nas sociedades que não foram apreendidas por estas teorias do parentesco. Conforme afirma Marcelin, a “casa” seria “sujeito” de direitos e deveres e não se reduziria, em consequência, à demeure (home). Sendo assim, a casa, como experiência social, resultaria do parentesco cognático (Cf. Ibidem., p. 77). Entretanto, Marcelin, observou que, ao relocar a casa para o centro das discussões como instituição social, passa a acontecer um prologamento da aliança e da bilateralidade próprias às sociedades complexas. Nessa perspectiva, a discussão em torno da casa remete-nos a detalhes em torno da aliança e da descendência. Para Marcelin uma forma de dar conta dos aspectos socioculturais está em prover outra atenção antropológica segundo a qual as condições sócio-históricos, os contextos sócio-culturais onde emergem as casas, a produção do espaço destes, assim como a arquitetura que as caracterizam, pudessem ser pensadas conjuntamente os grupos sociológicos que os habitam e que, reciprocamente, são habitados por eles (Cf. Ibidem., p. 78). Sobre outros detalhes desta a leitura, MARCELIN, op. cit., especialmente o Capítulo II. “Casa e rede doméstica”.

98 sentidos intercambiáveis.

Neste universo de termos polissêmicos, os estudiosos especializados buscam dar

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