• Nenhum resultado encontrado

O mundo é aqui Maré mansa e morna De plataforma ou de Peri-Peri (…) O mundo é o mar Maré de lembranças Lembranças de tantas voltas que o

mundo dá. 158

Neste capítulo, percorro o Subúrbio evocando as experiências dos migrantes que abrem portas e nos inserem no univero mais amplo e complexo dos processos de mobilidade que informam sobre múltiplas trajetórias que configuram este território; principalemnte abrem portas para contar sobre suas vidas. Dito isso, procuro conduzir os leitores por esse território estabelecendo e indicando proximidades, distanciamentos e dijunçoes das experiências vividas e às memórias daí forjadas por crianças, jovens, homenes e mulheres pobres e negros e não-negros que passaram e que permanecem ou não nesta parte de Salvador. Os alinhavos que teço têm por eixos: 1. os relatos de vida dessas pessoas, recolhidos através de entrevistas e conversas; 2. as fotografias produzidas por mim, em campo, e dos acervos fotográficos de instituições públicas de pesquisa; 3. as cartografias produzidas a partir de relatos, observações e referências institucionais, com vistas a apresentar por dentro a configuração desse território.

158 Composição de Vevé Calazans e Jorge Portugal. Maria Bethânia. Memórias do Mar. Álbum: Mar de Sophia; Gravadora: Biscoito Fino; Ano: 2006.

108

2.1- Abrindo as portas do Subúrbio

109

Este território é configurado de muitas territorialidades, um lugar de muitos lugares e histórias. No percurso cotidiano do bairro do Dois de Julho – no centro antigo da cidade, nas imediações da Praça da Piedade –, de ônibus até o Subúrbio, a Salvador construída por fortes desigualdades sociais e raciais se reaviva para mim em tons mais nítidos. Entretanto, não apenas sobre isso informa esse território ao se adentrar nele. O tecido é de retalhos e eles são constituídos por diferentes texturas e cores. Sob ele as pessoas que o fizeram e continuam a fazer nos mostram suas nuances.

No mapa acima observamos a subdivisão do Subúrbio em Zonas de Informação (ZI's): Plataforma, Periperi, Coutos e Paripe. Até 2008, a Ilha de Maré constituía uma destas ZI's, quando ouve modificações com o atual Plano de Desenvolvimento Urbano – PDDU de Salvador. Neste novo desenho a Ilha de Maré, passa a pertencer a RAXVII – Ilhas; e o bairro do Lobato a RAIII – São Caetano.159 Entretanto, para muitas pessoas com as quais pesquisei, estes lugares estão associadas ao Subúrbio. Trata-se de classificações, arbitrariamente definidas, que pouco ou quase nada nos informam sobre as dinâmicas e relações sociais que agregam e criam proximidades e distanciamentos social, cultural e historiacamente produzidos. Porém, lanço mão destas classificações como recurso para me auxiliar na construção de uma narrativa cartográfica que me possibilite percorrer o território e observar em plano mais amplo a dinâmica social, contribuindo para melhor situar o leitor que me acompanha.

Entrar nas linhas da vida social e cultural que constituem o Subúrbio e mergulhar em seus interiores requer a disposição do caminhante atento, observador e desconfiado. A disposição em ser um praticante cotidiano da cidade e não apenas um visitante ou um voyeur. Para os que fazem dos seus dias a arte de caminhar, experimentar, fazer e viver os múltiplos territórios da cidade nas relações estabelecidas com as pessoas que também o fazem, cada passo constitui um novo ponto de referência ou, como prefiro chamar, uma nova conta na guia que se fia no percurso da vida. A ordem dos que buscam garantir a sobrevivência lhe impõe outras ordens de significados, de entendimentos, outros sentidos no deslocamento.

110

No mapa 01, apresento linhas(vias) de acesso ao Subúrbio. Para chegar aí é possível partir de diferentes pontos da Cidade Alta e do novo centro comercial da cidade – localizado nas imediações do bairro do Iguatemi e da Rodoviária –, passando pela Baixa do Fiscal,160 principal porta de entrada da Avenida Suburbana161 (ou Suburbana).162 Para tal, é preciso passarpelos bairros da Calçada e ou do Largo do Tanque.

A construção da Suburbana, em 1968, conforme informam FONSECA E SILVA (1992), beneficiou diretamente aos grandes proprietários de terras da região, com a crescente especulação imobiliária, obrigando as pessoas a se deslocarem para áreas mais internas e invadir terrenos desocupados do Subúrbio, a exemplo de Paripe, Nova Constituinte, Bate Coração, dentre tantos outros.163 Até sua inauguração, o acesso para os bairros do Subúrbio eram realizados através da Estrada Velha de Periperi, do trem da Leste e dos barcos que navegavam pela Baía [mapa 01].

A política de precarização no sistema de transporte fluvial utilizado pelos moradores de alguns trechos do Subúrbio até os anos 1980 (a exemplo de Lobato, Cabrito, Plataforma, dentre outros), o abandono do trem e o aumento vertiginoso da população, contribuíram para que o sistema de transporte rodoviário se tornasse a principal alternativa para viabilizar a circulação das pessoas e o acesso aos bens e serviços por parte desta população na cidade.

A Suburbana contorna paralela à própria linha férrea, atravessando a região no sentido norte-sul, quase sempre à beira-mar –, e pela Estrada da Base Naval, que liga o bairro de Paripe à BR-324 (Salvador-Feira).

160 Este ponto é também conhecido como Viaduto dos Motoristas. Aqui, além do comércio de ferragens, acontece nos finais de semana a Feira do Rolo. Esta parte do Subúrbio também é conhecida por seus constantes e demorados engarrafamentos, que se estendem muitas vezes até o Lobato.

161 O nome oficial da Avenida Suburbana é Avenida Afrânio Peixoto. Entretanto, em termos locais: Subúrbio e, de forma mais ampla, em outras partes de Salvador se referem a esta avenida pelo nome de Avenida Suburbana ou simplesmente: Suburbana.

162 Mesmo existindo outras áreas suburbanas (áreas que também abrigam as populações de baixa renda da cidade), quando está toponímia é evocada nas palavras dos moradores da cidade, aparece em referência ao Subúrbio Ferroviário. Houve algumas tentativas em popularizar a ideia de oposição entre dois Subúrbios, um Ferroviário e o outro Rodoviário – este último para caracterizar uma área da cidade onde estariam localizados bairros nas imediações da saída da cidade, próximos a BR 324, que liga Salvador a Feira de Santana. No entanto, esta distinção não se popularizou na cidade.

163 Nos anos de 1960, o Subúrbio experimentou os efeitos do processo da industrialização e urbanização em curso na cidade. Paralelamente, ocorria a reforma viária da cidade e a busca de um padrão urbanístico condizente com o projeto modernizante e turístico, já idealizado desde os primeiros anos da administração de J.J Seabra. Sobre outros aspectos deste processo encontramos em GORDILHO-SOUZA (2000).

111

Quem não estiver de carro particular para chegar aí terá que utilizar o transporte público fornecido pelas empresas de ônibus que circulam pela região, o trem ou ainda, o sistema de transporte complementar das vans, topics e mototáxi. Nos bairros mais afastados da orla da Baía, principalmente os que se ergueram sobre ou entre morros, o acesso é feito por vias locais.164

Além de opção de transporte para as pessoas que residem nos bairros do Subúrbio, o trem é um importante aspecto histórico e cultural do local. Está fortemente ligado aos processos que caracterizaram o período da economia baiana que corresponde à implantação de modernizações na indústria açucareira, ao melhoramento do serviço costeiro e à construção das ferrovias, como sublinhei. A linha férrea da Leste Brasileiro, com saída do terminal da Calçada em direção ao Recôncavo, e daí para o sertão, constituiu uma nova configuração social ao longo dos seus trilhos.165

Os bairros desta parte de Salvador começam a tomar corpo e lugar na vida da metrópole, no início do século XX. Neste período, o Estado buscou um maior controle sobre a ocupação e posse das terras na cidade. Em 1944, por exemplo, restringe a vigência da enfiteuse,166 (GORDILHO-SOUZA, 2000) legitimando, com isso, a comercialização do solo e instituindo a especulação imobiliária, como veremos mais adiante. Concomitantemente, a migração do interior da Bahia para Salvador e o crescimento vegetativo da população propiciaram a procura por moradia. As dificuldades da população

164 O serviço do sistema de transporte coletivo é feito pelos ônibus municipais e metropolitanos; pelo trem, por barcas ligando a ilha de Maré a São Tomé de Paripe e Plataforma à Ribeira (o que enche ainda mais os olhos de beleza de quem escolhe esta forma de deslocamento), e pelo subsistema de transporte complementar feito por micro-ônibus e vans e alguns veículos (kombi e ônibus de particulares). O Subúrbio dispõe de aproximadamente 54 linhas de ônibus, com seus pontos iniciais concentrados em cada bairro, configurados em 14 terminais. As linhas de ônibus municipais são operadas por empresas privadas sob administração da SMTU – Secretaria Municipal de Transportes Urbanos –, atendendo à maior parte da demanda existente. Já as linhas de ônibus intermunicipais, administradas pelo DTT – Departamento de Transportes e Terminais, sob jurisdição estadual, também operam na Avenida Suburbana, ligando a Capital à Ilha de São João (município de Simões Filho), Mapele (município de Candeias), entre outros. Quanto ao subsistema de transportes representado pelas vans, foi criado pela SMTU, em 1998, para suprir a inacessibilidade dos ônibus a muitos bairros por problemas de declividade, pavimentação, e/ou largura viária insuficiente.

165 As primeiras aglomerações urbanas na região da Suburbana remontam ao século XIX, tendo surgido como bairros de operários em volta de um núcleo de fábricas bastante expressivo, especialmente do setor têxtil. Dentre estas, destaco a Fábrica dos Fios, no Lobato, a União Fabril e a Fábrica Fatbraz, ambas em Plataforma, que por muito tempo representaram a principal fonte de empregos para a população do Subúrbio Ferroviário (GARCIA, 2009).

166 Segundo consta no dicionário Aurélio, enfiteuse significa aarrendamento a longo prazo, que confere um direito real, o domínio útil de um imóvel (terras não cultivadas, terrenos destinados a edificação), mediante pagamento de uma pensão anual, chamada foro; aforamento.

112

pobre em ter acesso à moradia e terrenos com preços reduzidos na área urbana de Salvador levou-os a procurar áreas mais distantes, a exemplo do Subúrbio. Até os fins da década de 1950, o número de bairros que integravam o Subúrbio Ferroviário permaneceu reduzido. Os moradores se concentravam nas localidades de Plataforma, Lobato, Paripe e Periperi, que ofereciam um mercado de trabalho para mão de obra local.

Foram feitas aí as melhorias das vias de acesso, neste período: Águas Claras / Paripe e a estrada da Base Naval de Aratu, outras duas portas de entrada para o Subúrbio. Ora, porém, pelos trilhos da Leste a vida continuava a circular por entre os 13,5 km de extensão, desde o bairro de Paripe até o da Calçada, percurso que se realiza em aproximadamente 20 minutos.

2.2 – Histórias de vida: territórios e enredos

Imagem 04. Nos trilhos da Leste

Composição de Cristiane Souza com fotos produzidas pela autora em 2002.

Em 2010, durante a pesquisa, o fluxo do trajeto original havia sido alterado por causa da manutenção da ponte que atravessa as águas da Enseada do Cabrito. O trem trincava nos trilhos em engasgos que entrecortavam seu percurso para desviar dos reparos, naquele momento, reservados a ponte do trem que recorta e emoldura a Enseada. Da estação de Paripe duas paradas, Coutos e Periperi, até a estação de Plataforma. Daí Mira, Luís, Eliane e Seu Hélio, por exemplo, usuários comuns do sistema, faziam o transbordo em micro-ônibus até a Estação do Lobato. De volta aos trilhos da Leste, nesta Estação retomam lugar na locomotiva que sinaliza o momento da partida. Desta vez, o percurso da

113

viagem se completa na estação secular da Calçada. Após um ano, o serviço foi regularizado e os passageiros, assim como eles, voltaram ao contínuo da viagem. A despeito de todo o abandono e da precarização do serviço oferecido pela Rede Ferroviária Federal S.A (RFFSA), como enfatizaram muitos moradores do Subúrbio, atravessar as linhas da Leste, ao longo deste território reserva, aos que se aventuram, ainda, uma das mais belas paisagens da cidade.167

Imagem 05. Suburbana: atravessando pelo Lobato a caminho de Paripe

Fonte: Pesquisa de Campo, janeiro de 2011. Fotografia Produzida pela a autora.

Seguindo o percurso de ônibus, ao entrar na Suburbana, pela Baixa do Fiscal, ao longo da avenida, observo diferentes edificações destinadas à moradia, aos serviços públicos de saúde e educação, e ao comércio, nada diferente de outras áreas periféricas de

167 O trem opera no trecho de Paripe até a Calçada com nove estações – Paripe, Coutos, Periperi, Praia Grande, Escada, Itacaranha, Almeida Brandão / Plataforma, Lobato (Santa Luzia) e Calçada.

114

Salvador, se não fosse aqui a presença de uma grande orla marítima que a emoldura, juntamente aos trilhos da ferrovia e alguns morros, do lado esquerdo; e, do direito, inúmeros morros e outeiros.168 Na imagem 6, aparece em primeiro plano o ônibus da principal empresa que presta serviço de transporte para essa parte da cidade, a da Praia Grande. Mais ao fundo, vemos a imagem das edificações do antigo almoxarifado do Banco do Estado da Bahia (BANEB), um pouco mais à frente vê-se o terreno onde se situava o Motel Mustangue.169 Mais acima observamos algumas edificações na parte do Alto do Cabrito, no Lobato, cercados por manchas de vegetação. Nessas proximidades residem, no bairro do Lobato, Dona Maria Guiomar, conhecida como Guió, e Railda dos Santos, mulheres de diferentes gerações que chegaram nesse bairro em momentos e circunstâncias diversas.

Dona Guiomar, uma senhora negra de 82 de idade, nunca trabalhou fora de casa, dedicou-se aos cuidados do marido e dos filhos. Mudou-se para Salvador acompanhando o marido, Seu Portela, que trabalhava na Leste. Natural de Alagoinhas, nos anos 1930, residia aí. Em uma das suas viagens diárias, conduzindo sua locomotiva, na parada da estação, conheceu Dona Guiomar, no município de Entre Rios. Lá ela nasceu e residia. O relacionamento surgido deste encontro não foi visto pela família dela com bons olhos, porque Seu Portela era viúvo e pai de quatro filhos. Sustentar o relacionamento com o condutor da Leste exigiu de Dona Guiomar resistir à família, principalmente ao tio que a criava. Após dois anos de noivado, eles se casaram em Alagoinhas, onde moraram por quatro anos até a transferência dele para Salvador, conforme recorda Dona Guiomar no trecho que reproduzo a seguir:

Dona Guiomar: Meu marido trabalhava na Leste e morava em Alagoinhas que

ia até, a gente pegava, a última coisa daqui da Bahia, que depois já era o

Sertão. Já era o Sertão. A gente veio pra qui e eu aluguei uma casinha

pequenininha. Quando ele [Seu Portela] viu: 'mas Guió, tu é doida [risos]?'. Oh! Foi uma sala e um quarto [risos]. Tinha aquele menino, filho dele, porque ele era viúvo (…). Quando este chefe de trem trabalhava, naquela época, mais aí até Barracão, mas sendo que não passava – você sabe Barracão é o Estado da Bahia

168 Em muitos trechos da Suburbana o comércio se especializou em concertos e vendas de peças de carros. 169 Em 19 de maio de 1989, o Motel Mustangue foi soterrado por um grande deslizamento de terras vindas do alto do Bairro de São Caetano, decorrente das fortes chuvas que lavaram a cidade, acarretando a morte de inumaras pessoas. Nesse período, o acesso ao Subúrbio Ferroviário passou a ser feito por Paripe, através da BR-324. Esta tragédia conformou-se num episódio que colocou este estabelecimento na memória das pessoas que vivem ou viveram ali e, decerta forma, na memória da cidade.

115

ainda, e outro já é Sergipe –, ele ia até lá. Quando ele voltava, aí passava no Barracão. Me chamava de você e eu chamava ele de senhor. Eu me casei ia fazer vinte três anos, ele tava com quarenta e dois e tinha quatro filho.

Haroldo: Casou em Alagoinhas e veio direto pra Salvador?

Dona Guiomar: Não, fiquei quatro anos lá. Ele viajava de lá pra Barracão e

depois de lá pra Alagoinhas. Depois mudaram ele pra aqui, pra ele trabalhar aqui. Agora, meu filho, me pergunto uma coisa: 'Que horror que acabaram com

a Estrada de Ferro, porque é uma coisa tão bonita, cada trem bonito não era!? Ave Maria!' Hoje não tem mais nada, já acabaram com tudo... E eu sei que acabou foi tudo!

Haroldo: Quando a senhora saiu de lá...

Dona Guiomar: De Alagoinhas eu vim pra aqui. Eu morei primeiro ali no

Paripe, não. É, Paripe mesmo, aonde tem a Base [Base Naval de Aratú]. Lá a gente viveu um ano. Foi um ano – agora eu não me lembro é a data. Depois mudamos pra o Lobato, morei no beco lá.170 Morei um ano num quarto. Vim com eles tudo (…). Aquilo não era uma casa bem verdade [risos] era que quando ele viu que soube, disse: 'Oh, Guio! Tem nada não. Vamos ficar aqui mais uns dias, depois a gente vê qualquer coisa. Depois um senhor que gostava muito dele aí, disse: 'não, eu tenho a minha casa e tenho uma casa ali que tá alugando'. Aí foi e alugou pra gente lá. A gente viveu onze anos naquela casa ali [próximo a sua casa atual], quer dizer que ali de fronte, você descendo, assim, essa rua, quando chega lá no fim. A gente viveu onze anos, mas foi quando aquela trovoada, aquela coisa toda que acabou com tudo da mãe dele. Ele [o amigo de Seu Portela que alugou a casa para eles] então foi lá em casa que queria a casa pra mãe (...). Quando ele [Seu Portela] chegou eu disse: 'que falaram que é pra botar a família toda aqui'. Ele disse: 'não tem nada não, Guió'. Foi. Ficou três meses com a gente a mãe, a dona da casa, passou três meses com a gente, porque a gente não achava, não tinha aonde a gente achar casa pra alugar aí e ficou. Foi uma senhora muito boa também comigo e eu com ela, ela já morreu, outro dia ela morreu fui até pra o enterro dela.171 [grifos meus]

Os caminhos percorridos desde Alagoinhas até Salvador transcorrem pelas lembranças de Dona Guiomar postas em relevo apontam para a nostalgia e o horror, pois: acabaram com a Estrada de Ferro, porque é [era] uma coisa tão bonita, cada trem bonito;

para as distâncias e proximidades entre a Bahia e o sertão, ao qual ela não se sentia pertencente; e, especialmente, dos primeiros anos em Salvador. Conforme diz: Era tudo mato, entre os anos de 1950-1960. O mato existente quando chegou ao Lobato começou a desaparecer com as derrubadas sistemáticas para demarcação de terrenos a serem comercializados das mais diferentes formas para as pessoas que buscavam sair do aluguel já ali, bem como, para aquelas que chegavam de fora pelo mesmo motivo. Sobre isso Dona Guiomar diz:

Aqui tudo era mato. E tava foi vendendo aos poucos.

Haroldo: E quem vendia esses terrenos aqui?

170 Trata-se da parte mais internas do Lobato, longe do local onde reside atualmente. 171 A entrevista com Dona Guiomar foi realizada em 09 de outubro de 2010.

116

Dona Guiomar: Quem tava vendendo eu não me lembro o nome, mas era as

pessoas... Eu num lembro, assim não. Eu lembro que a gente comprou aqui, que quando a gente recebia aquele dinheiro, ele disso: Oh, Guio! Vá ver, vá lá, veja como é. Aí eu cheguei: 'Oh, Portela é até bom o terreno e tudo, tanto que essa casa a gente ainda morou oito anos aqui numa casa, como é que chama... De taipa, taipa, não. Meu marido fez de madeira. Aí a gente botou, a gente viveu um bocado de tempo. Aí depois...

Haroldo: Mas chegou a ser na palafita?

Dona Guiomar: Não. Ele fez tudo assim, aqui no barro mesmo.

A primeira casa erguida no terreno deles era de madeira e já construída no barro mesmo, quer dizer em terra firme, diferente de muitas outras pessoas. Porém, a construção de casas de taipa era alternativa comum utilizada por inúmeras pessoas que buscavam a moradia fora do aluguel nestas e em outras áreas do Subúrbio. Elas produziam um cenário, não só no barro mesmo (ordenadas em pequenos terrenos), mas nos mangues e águas da enseada.172 No caso, aí também se formou uma extensa área coberta de palafitas, como havia ocorrido décadas antes no bairro do Uruguai (em maior escala é verdade!), local onde se ergueu a partir dos anos de 1940 a invasão dos Alagados – a mais antiga ocupação de palafitas de Salvador e uma das mais antigas do Brasil.173

Em outro ponto do Lobato reside Railda, uma jovem senhora de pouco mais de cinquenta anos que sobrevive de um pequeno comércio que mantém funcionando em sua casa. Aí comercializa bebidas, doces, salgados, condimentos, dentre outros produtos para consumo doméstico. Este é um modo comumente encontrado entre os moradores pobres

Documentos relacionados