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Experimentação coletiva e trajetória de aprendizagem

CAPÍTULO 4. UMA TRAJETÓRIA DE APRENDIZAGEM EM DANÇA

4.5. Experimentação coletiva e trajetória de aprendizagem

Nossa proposição com os/as estudantes de Corpo/Espaço pautou-se por um entendimento de que ―não são os indivíduos que têm experiência, mas os sujeitos é que são constituídos através da experiência‖, como escreveu Joan W. Scott (1999, p. 27). Teresa de Lauretis182 diz que experiência ―é o processo pelo qual, para todos os seres sociais, a subjetividade é construída‖ (1984 apud SCOTT, 1999, p. 31), porém, se contrapõe à operação que ocorre nesse processo, em que:

182

[...] a pessoa se coloca ou é colocada na realidade social e, assim, percebe e compreende como subjetivas (que se originam no indivíduo e se referem a ele próprio) aquelas relações – materiais, econômicas e interpessoais – que são, de fato, sociais, e, numa perspectiva maior, históricas (De LAURETIS, 1984 apud SCOTT, 1999, p. 31).

Ou seja, tanto Scott, quanto De Lauretis criticam a constituição de sujeitos fixos e autônomos, ―que são considerados fontes confiáveis de um conhecimento que se origina do acesso ao real através da experiência‖ (SCOTT, 1999, p. 31) e entendem a experiência como processo coletivo, político e histórico.

Scott escreve também que ―experiência é, ao mesmo tempo, já uma interpretação e algo que precisa de interpretação. O que conta como experiência não é nem auto-evidente, nem definido; é sempre contestável, portanto, sempre político‖ (1999, p. 48). Ela fala também da necessidade de os/as historiadores/as terem um projeto – necessidade que estendemos a educadores, artistas e cientistas das diversas áreas – não de ―reprodução e transmissão de um conhecimento ao qual se chegou pela experiência‖, mas sim de ―análise da produção desse conhecimento‖ (SCOTT, 1999, p. 48).

Em consonância com as ideias de Scott, Latour nos remete à etimologia da palavra experiência, a qual atesta que a mesma consiste em:

―[...] passar através‖ de uma prova e em ‗sair de‘ para tirar delas as lições [...] Define-se, não pelo conhecimento de que dispõe no começo, mas pela qualidade da trajetória de aprendizagem, que permitiu passar por intermédio de uma prova e de ficar sabendo um pouco mais. A experiência, todo pesquisador digno deste nome sabe bem, é difícil, incerta, arriscada [...] Uma experiência ruim não é aquela que falha, mas aquela da qual não se tira nenhuma lição para preparar a experiência seguinte. Uma experiência boa não é a que oferece um saber definitivo, mas a que permite redesenhar o caminho de provas pelo qual vai ser necessário passar, de maneira que a iteração seguinte não se cumpra em vão‖ (2004, p. 318-319, grifos do autor).

Latour conecta a experiência do coletivo com a experiência de laboratório, não sem criticar a Ciência183 tradicionalista, construída a partir de dualismos como natureza e cultura, corpo e mente, entre outros, onde ―as essências fundadas na

183 Latour define a Ciência, no singular e com letra inicial maiúscula, ―como a politização das ciências

pela epistemologia (política), para tornar impotente a vida pública, fazendo pesar sobre ela a ameaça de uma salvação por uma natureza já unificada [...]‖ (2004, p. 372).

natureza são cada vez mais discutíveis e as identidades fundadas sobre o arbítrio cada vez menos discutíveis‖ (LATOUR, 2004, p. 316), ciência que, segundo autores como Donna Haraway e Bruno Latour, precisa de outra(s) ciência(s) que a suceda(m).

O termo experiência, para Latour, qualifica ―o movimento pelo qual um coletivo qualquer passa assim de um estado passado a um estado futuro, do bom senso ao senso comum‖ (2004, p. 318). O bom senso representa o passado da coletividade entendida ainda como sociedade, o que nos leva ao encontro de uma má distribuição de poderes e do projeto moderno de sociedade que a aprisiona na divisão entre o mundo dos objetos e o dos sujeitos; ―o senso do comum, ou da busca do comum‖ (LATOUR, 2004, p. 371), tem a ver com o que pode ser comum a mais entidades, o que pode ser compartilhado, representando seu futuro, abrindo a experiência para o coletivo, fazendo-a abarcar humanos/não/humanos em processos de co-constituição.

Jorge Larrosa entende experiência como ―algo que nos constitui ou nos põe em questão naquilo que somos‖ (2009, p. 12) e fala da experiência como produtora de pluralidade. Larrosa escreve também sobre a importância da ―escuta‖ - termo muito usado na dança - para nos relacionarmos com a alteridade:

[...] na escuta, alguém está disposto a ouvir o que não sabe, o que não quer, o que não precisa. Está disposto a perder o pé e a deixar- se tombar e arrastar pelo que lhe vem ao encontro. Está disposto a transformar-se em uma direção desconhecida. O outro, enquanto outro é algo que não posso reduzir à minha medida (2009, p. 13).

Em processos de ensino/aprendizagem que prezem pela experiência tanto de discentes como de docentes, o/a professor/a, entendido/a como mediador/a, precisa trabalhar com os/as estudantes ―uma forma de atenção, uma atitude de escuta, uma inquietude, uma abertura‖ (LARROSA, 2009, p. 15), favorecendo encontros e invenções que não deixam jamais que a composição se feche por muito tempo e que a experimentação continue sem cessar.

Larrosa escreve que ―talvez reinvindicar a experiência seja também reivindicar um modo de estar no mundo, um modo de habitar o mundo, um modo de habitar, também, esses espaços e tempos educativos‖ (2009, p. 24). Esse autor volta-se para a ação ―humana‖, mas se pensarmos esse humano como húmus, como propõe

Haraway (2009), seremos provocados a nos debruçar sobre a ―experiência coletiva‖, como faz Latour (2004), que nos força a pensar, perceber não só a nossa experiência humana (em separado dos outros que constituem o coletivo ―humano‖), como também a experiência não/humana, pois não/humanos – inclusive os humanos que nos discursos oficiais da modernidade não se enquadravam muito bem na categoria hegemônica de humano (a de homem, branco, heterossexual, ―com alma‖ etc.) – precisam ter suas existências seriamente consideradas por todos aqueles cujos hábitos eles irão modificar (LATOUR, 2004, p. 209), sempre que agem e que são mediadores de ações coletivas. Segundo Latour, o coletivo se define ―como uma experimentação coletiva‖ (2004, p. 319), que se constitui de conexões e desconexões que permitirão ao coletivo identificar intermediários e mediadores em relacionalidades situadas e em movimentação constante de ―tornar-se com‖ (HARAWAY, 2008).

Uma ―experimentação coletiva‖, para Latour, se dá:

[...] a partir do momento em que não se pode mais definir uma natureza e as culturas, o coletivo deve explorar a questão do número de entidades a levar em consideração e integrar por uma procura cujo protocolo é definido pelo poder de acompanhamento. Retoma- se, da palavra experimentação, tal como usada nas ciências, o fato de que ela é instrumentalizada, rara, difícil de reproduzir, sempre contestada e que se apresenta como uma prova custosa, cujo resultado deve ser decifrado (2004, p. 376 e 377).

Falamos, então, em ―trajetória de aprendizagem‖ (LATOUR, 2004) como a que se propõe a ―consagrar-se a uma triagem meticulosa dos mundos possíveis, sempre a recomeçar‖ (LATOUR, 2004, p. 318). Trajetória que constantemente se abre à reconstituição de aprendizagens, portanto inventivas; que modifica as essências tornando-as hábitos mais abertos ao devir, de modo a rearticular propostas e constituir uma nova temporalidade que ―multiplica os aliados potenciais‖ (LATOUR, 2004, p. 317).

Para tanto, Latour nos lembra que ―nada substitui a experiência que deve se efetuar sempre sem certezas‖ (2004, p. 324). Mas há que se guardar o caminho feito, há que se registrar as respostas dadas a cada questão que sempre se reabre, relativa ao número de entidades que constituem o coletivo, ―comparando sem cessar

o que se pôde absorver e o que ficou de fora‖ (LATOUR, 2004, p. 324) e escreve ainda que:

[...] para empregar cientemente as noções de experimentação e trajetória de aprendizagem, é-nos necessário, sem dúvida, tirá-las dos laboratórios e partilhá-las com o grupo dos que, humanos e não/humanos, se encontram engajados (2004, p. 319).

Entendemos que o mesmo pode ser feito no âmbito da arte e da educação e de seus ―laboratórios‖ – ateliês, estúdios, salas de ensaio, galerias, palcos, escolas, salas de aula, entre outros. Sabemos também da importância de seguirmos as pistas do/com o ―laboratório‖ tradicionalmente instalado, extrapolando suas paredes, borrando seus limites e entendendo-o como nó de uma rede mais abrangente. Dessa maneira, entendemos como complementares nosso trabalho com a sala de aula e com o bosque da Reitoria da UFC e pensamos a experiência sempre como processo coletivo, em que humanos, não/humanos e os mundos que constituem estão sendo feitos e refeitos, contrapondo-se a um conjunto de ideias que regeu/rege o projeto moderno de sociedade, o qual ainda move tipos de relações que insistem em perdurar. Sobre essas ideias, Eduardo Viveiros de Castro, a partir de seus estudos com sociedades ameríndias do Xingu, escreve que:

A vulgata metafísica ocidental consiste na ideia de que não existe senão uma única natureza externa, e várias culturas, várias subjetividades que giram em torno dessa natureza. Esta funciona, assim, como sobrenatureza, é um correlativo de Deus. Deus se ausentou, mas em seu lugar, deixou-nos uma Natureza como princípio de unidade, algo que ―está aí‖ para que as coisas possam se manter juntas (2008, p. 93).

Em nossa experimentação com os/as estudantes, questionamos essa noção de natureza – externa, única, recurso, objeto – para questionarmos o espaço com o qual dançamos e entendemos espaço como híbrido de naturezas e culturas, associações de humanos e não/humanos que forjam modos de se movimentar e de viver os mais diversos.

Daí que a relação corpo/espaço é tensa, pois é preciso cuidar para não tornarmos outros modos de vida meramente como recursos para nossos estudos, sejam de dança ou de qualquer outra área de conhecimento. Sobre isso, Donna Haraway escreve que é necessário realizar o trabalho de dar atenção e garantir que o sofrimento de todos os modos de vida que se agenciam num experimento

(científico, artístico, educacional) seja mínimo, necessário e consequente. ―Se qualquer uma dessas garantias for considerada impossível, o que é sempre um julgamento arriscado feito na base de razões, mas sem a garantia da Razão, então o trabalho responsável é fazer parar o empreendimento‖ (HARAWAY, 2011b, s/p, grifos nossos).

Haraway fala de razões como contraponto à Razão – hegemônica, instaurada com o projeto moderno de sociedade que se globalizou, e propõe que:

As abstrações, nossos melhores cálculos, matemáticas, razões, são construídas a fim de poderem se desfazer para que invenções, especulações e proposições – ideias de mundo – mais ricas e mais responsivas possam ir em frente (HARAWAY, 2011b, s/p).

Construir conhecimento para poderem se desfazer e dar lugar a invenções e proposições outras, mais ricas e responsivas... Como fazer isso no âmbito da universidade, cujos princípios se guiam pela Razão? Encontramos no ensino superior das artes possibilidades de trabalharmos com essas razões, no plural e com letra minúscula, de que fala Haraway, razões que movem naturezas/culturas, em associações não estanques, em movimento, que se diferenciam constantemente. Aqui o movimento é requisitado para inventar humanos híbridos de corpos e mentes, de corpos e espaços, de naturezas e culturas. Movimento que, ao nosso ver, gera corporrelacionalidades que, em dança, possibilitam modos outros de dançar, de pensar/fazer dança como experiência coletiva.

Bruno Latour (2004), quando aborda o coletivo, propõe gerar uma nova exterioridade formada não mais por tudo o que antes foi considerado objeto do conhecimento do sujeito humano - ou seja, tudo o que representava a exterioridade do humano (natureza), onde este (em sociedade) se inseria – mas por outros sujeitos em potencial, os quais para a instituição do coletivo por meio do ordenamento, foram excluídos, mas podem retornar ao chamado para compô-lo, inquietando o poder de consideração. Daí que o coletivo se define pelo seu movimento, sempre em busca de agregar, complexificar, tornar o mundo habitável a mais modos de vida.

Acompanhamos a experimentação ocorrida durante o desdobrar da disciplina Corpo/Espaço, propondo-nos a retomar contato com os outros (LATOUR, 2004), como a proposição de ―vir a ser com aqueles com quem ainda não estamos‖

(HARAWAY, 2011b, s/p), definindo o coletivo por uma trajetória de aprendizagem a ser constituída por humanos com não/humanos performando corporrelacionalidades em dança.

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