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CAPÍTULO 4. UMA TRAJETÓRIA DE APRENDIZAGEM EM DANÇA

4.3. A sala 18: um híbrido

Figura 28: Sala 18 do Instituto de Cultura e Arte (ICA) da Universidade Federal do Ceará (UFC). Foto: Emyle Daltro. Março de 2014.

A sala 18 é ampla, com cerca de 14 metros de comprimento e seis metros e quarenta centímetros de largura, sem carteiras, sem mesa, com apenas uma cadeira que geralmente fica próxima do equipamento de som. Possui assoalho aplainado, de madeira, coberto com faixas de linóleo preto, unidas umas às outras com fitas adesivas de cor cinza. Além do equipamento de som que toca CDs, há um aparelho de DVD, caixas de som no teto, lâmpadas frias, além de projetor data show, três aparelhos de ar condicionado e janelas de vidro em dois dos lados do salão. Uma barra móvel e um quadro branco – no período que ministramos essa disciplina, não havia ainda o quadro branco.

Figura 29: Sala 18 do Instituto de Cultura e Arte (ICA) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Março de 2014. Foto: Emyle Daltro.

Essa sala de aula parece ter sido preparada para favorecer a fluidez de danças a se constituírem sem tropeços, sem maiores resistências e interferências, para que humanos pudessem ter sua intencionalidade naturalmente como elemento central da ação desencadeadora de dança.

Os psicólogos já demonstraram que mesmo um bebê de dois meses consegue distinguir claramente movimentos intencionais e não intencionais. Humanos e objetos são nitidamente diferenciados [...] No entanto, uma diferença não é uma divisão. Os bebês são bem mais racionais que os humanistas: embora percebam as muitas diferenças entre bolas de bilhar e pessoas, isso não os impede de acompanhar o modo como suas ações se misturam nas mesmas histórias (LATOUR, 2012, p. 113 e 114, nota de rodapé).

Milton Santos, no processo de definir o espaço geográfico como um híbrido, ―um resultado da inseparabilidade entre sistemas de objetos e sistemas de ações‖ (2012, p. 100), escreve que:

A ação é tanto mais eficaz quanto os objetos são mais adequados. Então, à intencionalidade da ação se conjuga a intencionalidade dos objetos e ambas são, hoje, dependentes da respectiva carga de ciência e de técnica presente no território (2012, p. 94).

Latour reivindica simetria entre humanos e não/humanos, mas pontua que obter simetria ―[...] significa não impor a priori uma assimetria espúria entre ação humana intencional e mundo material de relações causais‖ (2012a, p. 114).

Se necessariamente nos esquecemos ou não conhecemos o processo de construção e de adequação da sala de aula de dança, por exemplo, não significa que tais processos não agiram e não estejam agindo com ela/nela e conosco/em nós que dançamos com a sala no tempo presente, condicionando nossos atos com esse espaço híbrido de ações humanas/não/humanas, ou, referindo-se a não/humanos, ações de ―objetos viventes‖ ou ―objetos expressando vida‖ (WHITEHEAD177, 1919 apud SANTOS, 2012, p. 102).

Se quiséssemos projetar num mapa geográfico comum as conexões estabelecidas entre uma sala de conferências e todos os lugares que o afetam ao mesmo tempo, teríamos de traçar setas e mais setas para incluir, digamos, a floresta de onde veio a madeira da mesa, o escritório que planejou as salas de aula, a gráfica responsável pelo folheto que nos permitiu encontrar o recinto, o zelador que cuida do edifício etc. E isso não seria um exercício ocioso, pois esses locais afastados de algum modo anteciparam e preformataram o recinto transportando, por diferentes meios, o conjunto de padrões que o tornaram um local adequado – e ainda o administram (LATOUR, 2012a, p. 289).

E em nota de rodapé de parte do trecho acima, Latour escreve: ―com efeito, a cognição está de tal forma distribuída que a ideia de um indivíduo fazendo cálculos é controversa‖ (2012a, p. 289 e 290), assim como o é a ideia de um indivíduo automovente, a qual abordamos em capítulos anteriores. Latour reforça essa ideia, escrevendo que:

As habilidades cognitivas não residem em ―você‖: estão distribuídas por todo o cenário formatado, feito não apenas de localizadores, mas também de inúmeras proposições suscitadoras de competência, de incontáveis e pequenas tecnologias intelectuais (2012a, p. 306).

Em nossas pesquisas de movimento, propomo-nos levar em conta esses padrões que tornaram um local preparado para dançar e que ainda o administram, como escreve Latour, o que para nós, foi possível trazendo à tona as memórias encorporadas nas coisas e, quando – por meio de práticas, conversas, leituras –

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WHITEHEAD, Alfred North. An Enquiry Concerning the Principles of Natural Knowledge. Cambridge: Cambridge University Press, 1919.

conseguimos ―ficar com‖ e ―dançar com‖ essas coisas, entrando no movimento de seus devires, estávamos a nos constituir como corporrelacionalidades em dança.

Latour chama de ―localizadores‖ ou ―articuladores‖ as presenças transportadas de uns lugares para outros, por meio de interações distribuídas no tempo e no espaço, trazidas à cena (no tempo presente) por inúmeros atores não/humanos (2012a, p. 281). Essas presenças, segundo Latour, ao comporem ações não sociais, tornam visível o social (2012a, p. 280). Exemplos disso são as duas instalações coreográficas estudadas, trabalhos de arte que tornam modos de organização de corpos e espaços visíveis, tornam visível o social.

Nos passos de Latour (2008), pensamos que uma maneira de conduzir esse tipo de experimentação foi atermo-nos à recalcitrância das ―coisas mudas‖ (LATOUR, 2004) e ―paradas‖ – acrescentamos. Também nos ativemos aos ―sujeitos falantes‖ e ―moventes‖ que compunham, por exemplo, a sala 18, durante nossas aulas de dança. Recalcitrância evidenciada em seu assoalho ―mudo‖ e ―parado‖ que nem sempre está limpo, o que requer a mobilização da pessoa ―falante‖ e ―movente‖ que responde pela limpeza das salas ―mudas‖ e ―paradas‖, pois caso contrário, os estudantes ―falantes‖ e ―moventes‖ costumam se recusar a realizar rolamentos e outros movimentos em que muitas partes do corpo tocam o chão ou ficam rentes a ele. Recalcitrância observada em relação ao cabo que liga meu notebook ao aparelho de som, o qual nem sempre está funcionando adequadamente e tenho que mobilizar o técnico responsável para fazer os ajustes necessários para termos música em aula; e também no aparelho refrigerador de ar que o esfria demasiadamente, causando frio nos/nas estudantes que pedem para desligá-lo. Então, abrimos as janelas de vidro por algum tempo e o calor que embala – e é embalado por – afazeres cotidianos dos moradores da cidade de Fortaleza retorna à sala e temos que fechar as janelas e ligar novamente o aparelho de ar condicionado, tendo de constantemente regularmos a temperatura do ar produzido; há também o barulho que esse aparelho refrigerador ―mudo‖ produz que, muitas vezes, dificulta escutarmos materiais em vídeo e sonoridades que com frequência compõem nossas aulas; sem falar que quando há uma quantidade grande de discentes, as paredes da sala tornam-se obstáculos/possibilidades para danças acontecerem; em outras situações, com menos alunos/as, a amplitude do espaço ―vazio‖ pede que o ocupemos e aí parece que, em alguns momentos, nós sujeitos ―moventes‖ é que

resistimos e começamos delimitar espaços para nossas ações na sala de aula; quando a proposta é assistir e discutir material videográfico na sala 18, sentimos falta das cadeiras, uns se sentam, dali a algum tempo se deitam, depois mudam de posição, condicionados pelo chão e assim, as aulas ocorrem com uma presença/interferência marcante em nossas ações de diversos humanos/não/humanos – chão, som do aparelho de ar condicionado, frio ocasionado pela temperatura muito baixa do ar, ação dos zeladores da sala, equipamento de som, cabos, aparelho data show, janelas, entre outros. Ou seja, somos sensibilizados e acionados, aula após aula, por todos esses humanos/ não/humanos acima mencionados que, com sua recalcitrância movem-nos a realizar as danças que extrapolam os limites da sala 18.

Entendemos a sala 18 como um espaço híbrido de ações oriundas de associações de humanos/não/humanos. Essa percepção, juntamente a leituras de textos que abordavam essa temática; a relatos de vivências em que os/as alunos/as se viam sendo levados a agir por outras agências – também fora da sala de aula; a exercícios que favoreceram o entendimento de corpo/espaço como multiplicidade heterogênea, conduziram nossas aulas de dança.

E como seria forjar outros espaços para dança? Queríamos experimentar humanos/não/humanos co-constituindo danças conosco, estender nossa pesquisa de movimento a outros corpos/espaços para acompanhar composições em dança.

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