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Explicação sobre a mudança qualitativa

4.2 Explicação dos casos concretos segundo a opinião de Scotus

4.2.2 Explicação do acidente não simultâneo

4.2.2.4 Explicação sobre a mudança qualitativa

Segundo Scotus, uma substância pode produzir ativamente sua mudança qualitativa. Certos fatos empíricos demonstrariam que alguns agentes naturais, quando não impedidos, podem mudar a si mesmos qualitativamente. Por exemplo, a água que esfria por si mesma. A questão da causalidade eficiente da água já foi tratada no item que versa sobre os acidentes não simultâneos. Resta-nos agora analisar o que Scotus diz acerca da mudança qualitativa da semente.

S. Boaventura, enquanto defensor da teoria das razões seminais agostiniana, advoga que toda matéria possui uma forma latente. Essas formas que se encontram em estado germinal desenvolvem-se por meio de sua própria atividade, bem como pela influência de agentes externos. Desse modo, uma bela flor desabrochada, embora de maneira latente, já está contida no broto. Para Scotus, porém, não é toda matéria que possui essas sementes ou formas

147 DUNS SCOTUS. Questões sobre a metafísica IX, q. 14, § 59. 148 EFFLER, 1962, p. 136.

potenciais. A oposição de Scotus se dá em virtude de que os argumentos que estendem a teoria da razão seminal para toda a matéria não são universais e necessários. Além disso, se admitíssemos razões seminais em todas as instâncias, teríamos que admitir o contrário daquilo que a experiência nos proporciona.150

Scotus concede que a experiência nos apresenta alguns exemplos de seres capazes de produzir seus respectivos semelhantes por meio de uma semente. Um touro, por exemplo, produz o bezerro em virtude de sua semente, a qual é dotada de uma forma latente; a última, para Scotus, é a razão seminal. Embora os termos semente e razão seminal pareçam ser sinônimos, é necessário fazer uma distinção entre ambos. Uma semente é um corpo, já a razão seminal não é um corpo em virtude de que a última encontra-se em potência. A forma latente na semente não se move para o próprio bem da semente. Antes, a forma que se encontra em potência na semente move-se para o bem de outro, isto é, o ser que está para ser gerado a partir da semente, o qual é semelhante ao ser que originalmente gerou a semente. Outra importante diferença entre a semente e a razão seminal se dá no âmbito hierárquico, visto que a semente é mais imperfeita do que aquilo para o qual (razão seminal) ela se destina a ser.151

Considerando-se tanto a semente de uma planta quanto a de um animal, a semente, uma vez gerada, não necessita de seu gerador para se desenvolver. Portanto, independentemente do agente externo, a semente de um animal, por exemplo, move-se por si mesma e atualiza a forma seminal do sangue, em seguida atualiza a forma seminal do embrião e finalmente atualiza-se numa forma mais perfeita. De uma maneira bem grosseira, a razão seminal mapeia o caminho que a semente deve percorrer para alcançar sua perfeição última. Entretanto, isso não significa que a razão seminal seja a causa ativa dos passos dados pela semente, pois aquilo que se encontra em potência não é, logo não pode ser o eficiente.152 Ora, se a razão seminal não é eficiente por encontrar-se em potência, o que pode ser dito acerca da noção de ato virtual?

Podemos dizer que uma semente de jabuticaba se torna uma jabuticabeira, e não uma amoreira, em virtude de algo inerente à própria semente de jabuticaba, e não por causa de fatores externos como a terra, a qualidade do solo, a umidade, a luminosidade etc. Por isso, de certo modo, a jabuticabeira encontra-se de maneira latente na semente. É evidente que a presença latente da árvore na semente não é o ato formal da árvore. Mas também isso não quer dizer que a presença latente da árvore na semente seja mera capacidade passiva de

150 EFFLER, 1962, p. 136.

151 Ibid., p. 141. 152 Ibid., p. 142.

tornar-se árvore, ou seja, tal presença latente não é só potência formal. Por isso, a presença da árvore na semente é o que Scotus denomina ato virtual.153

Foi dito que uma rosa desabrochada é a razão seminal do broto de rosa, entretanto, se a razão seminal não estiver presente em ato no broto de rosa, como ela pode vir a ser uma rosa se a própria razão seminal sempre estiver em potência? Portanto, ainda que seja de maneira virtual, é necessário que a razão seminal esteja presente em ato.

A noção de ato virtual sustenta que a jabuticabeira é distinta da amoreira porque em suas respectivas sementes estavam presentes atos virtuais ou razões seminais distintas. Se em ambas as sementes houvesse apenas pura potencialidade passiva e nada em ato virtual, só nos restaria atribuir ao meio no qual elas se encontram as razões seminais de seus respectivos atos formais. Isso, porém, seria absurdo, pois por qual motivo duas sementes, absolutamente passivas aos meios externos, se distinguiriam, sendo que foram plantadas em solo idêntico e sob idênticas condições?

Pois bem, anteriormente dissemos que a razão seminal, por estar em potência numa semente, não poderia ser o eficiente em virtude de que aquilo que está em potência não é, e o que não é não pode agir. Deve ser notado, porém, que, no Comentário sobre a Metafísica de Aristóteles, Scotus não menciona que a razão seminal é um elemento de causalidade eficiente. Entretanto, no Opus Oxoniense II, é atribuída à razão seminal o estatuto de causalidade eficiente154 e isso parece concordar com a noção de ato virtual. Portanto, uma vez que o ato virtual de uma semente é de fato um ato real, e não mera potencialidade virtual, a semente é imanentemente capaz de desenvolver o ato virtual que ela contém.

Depois de discorrer sobre a mudança qualitativa, passaremos a analisar a mudança cognitiva à luz da perspectiva de Scotus.