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Ao explicar porque o movimento modernista partira de São Paulo, Mário de Andrade bate na mesma tecla: ao contrário do Rio deJaneiro,

a capital bandeirante possuía afInidades internacionais que não eram

herdadas e oficiais; a mentalidade paulistana era menos pré-eondi­

cionada, mais livre. De uma "aristocracia improvisada do Império",

comodista e satisfeita, apadrinhada pelo prestígio da "Corte", não se podia esperar o impulso dinãmico do mundo moderno. Este viria de São Paulo, único ponto do Brasil ''fora do parasitismo do Estado", como não se cansava de afirmar Carneiro l.eão.73

Os efeitos da burocratização conduziam ainda ao esclerosamento das políticas públicas no Rio de Janeiro, como as campanhas sanitá­ rias e educacionais, que, nessa cidade, ficavam apenas nas "palavras", enquanto em São Paulo giravam no ''terreno dos fatos".74 O resultado seria a alta taxa de mortalidade infantil e o analfabetismo reinantes na capital federal,75 enquanto São Paulo ostentava o melhor quadro educacional e sanitário, numa demonstração inequívoca da vitória da eficiência sobre a burocracia.

Uma voz dissoante desafinava o coro de vivas

à

modernidade da metrópole bandeirante: Lima Barreto. Envolvido pela simpatia e o entusiasmo que lhe despertara a Revolução Russa de

1917,

o jor­ nalista carioca associava São Paulo aos Estados Unidos, país- símbolo do espírito burguês, da avidez material e da discriminação étnica.

Um por um, os pontos fundamentais que sustentavam o projeto de hegemonia da capital paulista no panorama nacional foram denun­ ciados por Lima Barreto. A apregoada integração com o italiano, pretenso portador do progresso e da modernidade, era desmentida pelas constantes expulsões desses estrangeiros, "a que chamam de anarquis­ tas, de inimigos da ordem social". O que parecia ser resultado de progresso administrativo, baseado na eficiência e no trabalho, susten­ tava-.;e em políticas especulativas voltadas para os interesses de São Paulo, em prejuízo das demais unidades da Federação. E a decantada fama de capital artística do país, quando na verdade "era uma cidade européia

à

força ( ... ), cópia mal feita de Londres ou Paris", devia-.;e a uma bem engendrada campanha de propaganda, a partir de subven­ ções a jornais e escritores de todo o país. Em suma, a ''incontestável'' superioridade cultural da metrópole paulistana se deveria muito mais ao poder do dinheiro, aos "argentários de todos os matizes", do que às inovações futuristas "velhas de quarenta anos". Aqueles que se recu­ savam a aceitar tal história de capital artística e cidade européia tinham suas opiniões omitidas e suas vozes abafadas.76

A defesa do Rio de Janeiro como eixo político e centro cultural do país transparece em duas crónicas de Lima, escritas em

1918.

Em "Carta aberta", a indignação mal contida a propósito de um projeto do presidente Rodrigues Alves de transferir a capital do Rio de Janeiro para uma cidade do interior paulista:

"( ... ) não me parece que Vossa Excelência tenha tão ingra­ to pensamento em relação

à

nossa Pátria; mas Vossa

Excelência deve deixar Guaratinguetá e vir para o Rio ( ... ) procurar remédio para sanar o que for maléfico".77

o

recado é claro: a visão estreita, provinciana, ''paulista'', impe­ diria o presidente de tomar decisões que demandavam uma avaliação mais ampla de nossos ''males", o que só seria possível na capital da República, caixa de ressonãncia dos principais debates que se trava­ vam no país naquele momento.

Mas é na crôruca dedicada ao recém-lançado

Problema vital,

de Monteiro Lobato, que mais claramente se revela o embate envolvendo as duas maiores cidades brasileiras:

"as águias provincianas se queixam de que o Rio de Janeiro não lhes dá importáncia e que os homens do Rio só se preocupam com as cousas do Rio e da gente dele ( ... ) o Rio de Janeiro é muito fino para dar importáncia a uns sabichões de aldeia que, por terem lido alguns

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Em contraposição à reação carioca, na qual pontuava a figura solitária de Lima Barreto, o discurso da hegemonia paulista é bem mais agressivo, num movimento decisivo de quem chegou para tomar um lugar já ocupado. Menos articulada, preocupada apenas em manter o tradicional comando sobre o país, a intelectualidade do Rio, absorvida como de costume pelas questões nacionais, não estruturou um projeto próprio, capaz de barrar aquele com que os paulistas se apresentavam como a mais competente elite de expressão nacional. Ao longo da disputa, o carioca, em geral, manteve-se na defensiva,

limitando.;;;e a dar respostas aos ataques recebidos e se revelando incapaz de montar uma bateria de argumentos capazes de inverter os sinais da igualdade que ameaçava se firmar no imaginário nacio­ nal: São Paulo = nação; Rio de Janeiro = antinação. Não é negada a existência de um caráter próprio a cada cidade, e nem sequer é verificado o conteúdo de "verdade" do mesmo. Para o bem ou para o mal, São Paulo ficou sendo "a cidade que não pode parar" , e o Rio de Janeiro, o lugar "do devagar, quase parando".

A quantidade e a qualidade dos intelectuais que partilhavam a tese da decadência daquela que era considerada a cabeça da nação, bem como os amplos espaços com que contavam na imprensa, expli­ cam, em grande medida, a desqualificação da "cidade maravilhosa", sucumbida aos encantos de Dionísio e aos valores da belle époque falida. Afinal, é amplamente reconhecido que o impacto do imaginá-

rio social sobre as mentalidades depende de sua difusão, ou seja, dos circuitos e dos meios à sua disposição.

Embora correndo o risco da simplificação, inerente a qualquer esquema dual, penso ser interessante compor um quadro das princi­

pais representações simbólicas que, nos anos

20,

marcaram as duas

principais cidades brasileiras:

SÃO PAULO = NAÇÃO

1)

Metrópole industrializa­ da; voltada para o interior: valores sólidos da brasilida­ de; concilia as duas faces da modernidade, a tradição e a vanguarda.

2)

Cultura brasileira e moderna.

3)

Valores da iniciativa privada; o

etlws

bandei­ rante = EFImNCIA.

4)

Sociedade organizada em partidos, associações e sindicatos.

5)

Imigrante italiano, por­ tador dos valores do tra­ balho e do progresso.

RIO DE JANEIRO = ANTINAÇÃO

1)

Metrópole litorânea, cosmopolita, contemplativa; indústrias parasitá­ rias e comércio monopolista; ligada a valores ultrapassados e decadentes.

2)

Cópia da

belle époque

falida.

3)

Protecionismo, burocracia, "socie­ dade de Corte" = INEFICIÊNCIA .

4)

Sociedade desorganizada, parti­ cipação política fragmentária, anárquica e marcada pelo cliente­ lismo e paternalismo.

5)

Negro e portugués, marcados pela indisciplina e pelo atraso.

Estas representações simbólicas, onde se articularam idéias, mitos e modos de ação, tendo ganho em inércia, pesaram sobre as mentalidades e os comportamentos. Construídas sob o renovado fascínio pela modernidade que marcou o início dos anos

20

no Brasil, as imagens das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo ainda conservam muito de seus contornos originais, revelando a eficácia e a durabilidade dessa construção. '