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to", abrigo de um templo católico assiduamente freqüentado por

amplas camadas da população, e que muitos queriam destruir em

nome de uma pretensa "racionalidade sanitária" ou de uma estética "importada e desenraizada".

O segundo semestre de

1920

é marcado por um intenso debate na imprensa carioca em torno do Castelo: os "sacrílegos", liderados pela

Revista 00 Semana

e contando com o apoio de periódicos habitual­ mente opositores ferozes do governo federal e municipal, como a

Careta

e o

Correio 00 Manhã,

versus os "tradicionalistas", repre­

sentados pelo

Jorned dn Brasil.

Acompanhar essa discussão é recu­ perar as interessantes metáforas (quase sempre emprestadas da biologia) que sustentam as argumentações; é sentir os desejos e os medos que constroem os sonhos e as cidades; é perceber a esperança de finalmente se encontrar o caminho do arco-íris onde, em vez do pote de ouro, estará a modernidade. Três ordens de questões foram priorizadas e metaforicamente explicitadas dessa maneira: ''manto protetor" x "infecto monturo"; "pérola" x '(dente cariado"; "mancha

colonial" x "colina sagrada".

Se a idéia do saneamento unia gregus e troianos, a questão era como se fazer isso. Para uns, sanear era preciso, derrubar não era preciso; para outros, era impossível sanear sem derrubar. Boa parte da argumentação dos "higienistas sacn1egos" (em especial, Carlos Sampaio) se sustentava na evocação dos malefícios provocados pelo "infecto monturo": os relatórios do século XVIII, denunciando a falta de ventilação, a umidade e os ''miasmas febrígeros"; e as famosas

"águas do monte", telTÍveis enchentes que assolaram a cidade em fevereiro de

1811,

J'rovocadas, em grande parte, pela lama que descera do Castelo. O telegrama de Belisário Pena, figura luminar da saúde pública, nacionalmente conhecido por sua atuação na pro­ filaxia rural, parabenizando Sampaio pelo decreto de

17/08/1920,

era a prova "científica" da necessidade de eliminar aquele "quisto" de terra vermelha. Ou, como dizia a imprensa, aquele "tumor infeccio­ nado" que "obstruía o seio do Rio" e ameaçava contaminar a cidade.59

Para os higienistas amantes das antigas tradições, o morro era o regulador natural da ventilação da cidade, protegendo-a, qual um ''manto'', do desencadear de ventos desordenados oriundos da baía de Guanabara. Em vez de obstruir, o Castelo protegia ... E se os "apolo­ gistas do arrasamento" tinham o saber médico do seu lado, os "tradi­

cionalistas" se apoiaram no parecer do famoso engenheiro Vieira Souto, opinião acima de qualquer suspeita, visto que fora sócio de Carlos Sampaio na Empresa de Arrasamento e agura era consultor técnico da Prefeitura. Desconfiado das objeções que apontavam o morro como obstáculo à ventilação natural da cidade, Vieira Souto "propunha a abertura de túneis que, além de facilitar o tráfegu, canalizasse as correntes de ar para toda esta zona"; este plano de

remodelação do Castelo, datado de

1915,

incluía ainda apreciações estéticas no intuito de transfonnar o morro ''não só numa aprazível e higiênica vivenda, como num sítio de belos passeios". Essa opinião era compartilhada por vários intendentes do Conselho Municipal, como Cesário de Melo, para quem o Castelo podia e devia ser embe­ lezado.60 Para alguns, como o prefeito Sampaio, o Castelo podia ser comparado a um "dente cariado" na linda boca que era a baía de Guanabara.61 Para outros, como o Jornol do

Brasil,

era "uma pérola a engastar na jóia suntuosa que a Providência pousou à beira do Atlântico".62 Esse debate, aparentemente de caráter apenas estético, na verdade remete a uma discussão mais profunda em torno da elogiada beleza natural da "cidade maravilhosa".

Se o tema da natureza sempre ocupou um amplo espaço nas reflexões sobre o destino nacional, ele assume maior relevância no

que se refere à capital federal e eterno cartão postal do país. Dizofle que Deus fez o mundo em sete dias, mas só no Rio gastou dois. Ditos

populares à parte, o caráter paradisíaco da natureza do Rio parece

ter inspirado os seus comentadores do século XVI até os nossos dias, constituindo.,se, para o bem ou para o ma� no aspecto privilegiado de sua caracterização como cidade.

Para o Jornol do

Brasil,

constituía um absurdo a "destruição das nossas praias para ganhar espaço ao mar, destruindo a majestade dessa curva sem par, por uma monótona e infindável reta". Tal como era feito nos países modernos, onde a natureza era protegida dos "interesses utilitários" e preservada na sua "exuberância", a "suntuo­ sa moldura que oferece o nosso morro" devia ser conservada. 63 Por­

tanto, para esta corrente de opinião, a manutenção daquela 'jóia da natureza", devidamente remodelada com a edificação de vilas e jardins suspensos, era sinônimo de modernidade.

"O homem só teve plena consciência de seu poder quan­ do começou a medir.,se com a natureza, refonnando-a. Extirpar uma montanha, como o cirurgião que extirpa um quisto ( ... ) Aculpa foi da montanha que se erguia no . h da . ·1·

- " 64

canun o CIVl lzaçaO... .

Em oposição ao discurso que demandava a preservação dos elementos naturais, estavam aqueles que consideravam como condi­ ção

sine

qua 1Wn para o ingresso do país no século XX a submissão da

natureza

à

ordem da cultura. Desamparadas dos benefícios da arte, do saber, e principalmente, do trabalho, as riquezas e belezas naturais seriam valores precários para o homem moderno.

No caso específico da reforma urbana operada no Rio de Janeiro para as comemorações do Centenário de

1922

é constantemente reafirmada a observação do bispo Azeredo Coutinho sobre a cidade: "a Natureza lhe tem dado tudo; a Arte é o que lhe falta".6ó E é essa "arte", quer dizer, esse mundo construído como lugar da cultura, e não os efeitos arranjados pela mão da natureza, que deveria ser mostrada aos visitantes estrangeiros e às "províncias".

Modelo a ser copiado pelas outras cidades brasileiras, submetido a uma forçosa comparação cornos maiores centros urbanos do mundo, o Rio de Janeiro necessariamente precisava expandir acity, seu centro comercial e financeiro e símbolo maior de uma cidade marcada pela cultura. Por que não arrasar o Castelo e construir avenidas largas? 'lüneis deviam ser perfurados, arranha-<léus levantados ... Era preci­ so não se contentar apenas com o "glorioso cenário"; urgia "construir a cidade", 66 nem que para tanto fosse necessário calar os "fanáticos" da natureza que, em nome de uma "falsa" estética, teimavam em afirmar que o arrasamento do Castelo era um atentado à beleza panorâmica da cidade.

Afinal, a capacidade de interferir na natureza seria a condição indispensável para o desejado ingresso do país na modernidade. A destruição desse "monstro" que a natureza colocara no coração da bela

capital para "envergonhá-la", e a construção, sobre seus escombros, de um "vale de luzes", um "bazar de maravilhas", como era conside­

rada a Exposição Internacional, indicava a disposição da nação cen­ tenãria de fmalmente int:egraN;e naquilo que muitos entendiam como "civilização moderna".

''Não me incluo, pois, no número de muita gente para quem a derrubada do Castelo cons titui o maior atentado que se poderia fazer à tradição da cidade ( ... ) Pode-iSe conciliar a tradição com o salus

populi

e a remodelação da nossa

urbs.

Não quebrem o padrâo da fundação da cidade, não atirem na Sapucaia os ossos de Estácio de Sá, fica salva a Pátria". 67

o

decidido apoio do secretário geral do

IHGB,

José Vieira Fazen­ da, ao projeto de arrasamento do Castelo se, por um lado, causa surpresa, uma vez que cabia ao Instituto um importante papel na preservação da "história" da cidade, por outro, evidencia a dificuldade em conciliar os valores da modernidade com os da memória e da tradição.

Ao longo de sua história, toda cidade se enriquece de lugares aos quais pode ser atribuída uma função simbólica, por destinação elou

em virtude de algum acontecimento. Berço da cidade, referência

constante no cotidiano da capital desde os tempos coloniais, o "velho"

Castelo estava indissoluvelmente ligado a uma tradição e a um

passado, que estavam sendo forçosamente repensados num contexto

de comemoração do Centenário da Independência nacional.

Visto como uma "cidade de transição entre a urbs colonial e a

cidade babilônica do futuro",68 o Rio de Janeiro, principal cenário das

festas do 7 de setembro, precisava se livrar das ''horríveis

man

chas

que ainda lhe ficaram da deprimente máscara antiga',.69 "Histórico

depósito do cisco colonial", testemunha muda de um passado que

fizera de nós "escravos" por mais de

três

séculos, o morro do Castelo,

"de simples montão de casebres e ruínas com histórias de tesouros

nele enterrados", tornou-se o símbolo mais tangível do nosso atraso

frente

às

modernas nações estrangeiras que nos visitariam.7o