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DESEJOS HETEROTÓPICOS

45. EXT / MAR / DIA (Ponta Ruiva)

Os 7 náufragos entram em quadro caminhando na praia, todos de costas para a câmera e de frente para o sol, que se põe no horizonte. (Figura 116)

No momento exato em que o sol começa a se pôr no mar, os 7 tiram a roupa e entram na água. Com diferentes ritmos e certezas, todos nadam em direção ao sol. Sem barcos, somente corpos indo em direção ao horizonte e tentando alcançar o sol que morre no mar.

Figura 116 – Filmagens vaga-LUMEs – Sagres – Portugal, 2013

Foto: Carla Mesquita

Criamos um quadro de informações (Figura 117) para cada integrante, que pudesse dar sustentação às improvisações. A ideia é que os multiversos fossem criados coletivamente, nas experimentações realizadas em sessões de improvisação. Assim, a experiência do corpo se tornava a escrita no corpo, do corpo e para o corpo; o que buscávamos eram experiências singulares que pudessem transformar corpo em palavra escrita, em cena, em história fílmica.

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Figura 117 – Quadro de informações para os integrantes, 2012

Integrante

Verbo Objeto Relação com

o barco Parte do corpo referente/ Qualidade principal Motivo/ Tônica

Dani ARRISCAR Giz Âncora Coluna Vertebral

(PESO/ SUSPENSÃO)

Compreender o amor

Betinha LEMBRAR Rede, água Casco Bacia/ Ilíaco

(CIRCULAR)

Elaborar o desejo de ter um filho Deliana MEDIR Pedras brancas

de rio, cristal Mapa Pele (DESLIZE/ MEDIÇÃ0) Descobrir um caminho para si

David PERSEGUIR Copos, baldes, vasilhas

Gávea Crânio

(com foco nos olhos)

(CONTÍNUO/CORTADO)

Transitar entre a vitória e a derrota

Ray DISCERNIR Fotografias/ cartas/ envelopes Remo Pernas/Pés (DENSIDADE/ LEVEZA) Distinguir o sonho e a realidade

Carlos CURAR Espelhos, panos, baldes Vela Costelas (EXPANSÃO/ RECLUSÃO) Desapegar das coisas

Marcus CONSTRUIR Pedaços de madeira, corda, tecido Timão Braços/Mãos (PRECISÃO) Construir sua própria família.

Tomemos Marcus Diego como exemplo das relações estabelecidas com este quadro. Seu verbo de ação foi construir. Ele carregou por todos os anos um interesse e uma vontade continuada de aprender. Lembro que veio do curso de teatro do Projeto Café com Pão Arte

ConFusão, o qual eu coordenava. Tinha treze anos de idade quando entrou para a Cia. Ormeo.

Nas primeiras aulas de corpo, apareceu com uma página rasgada de uma revista, destas como

Boa Forma, revista brasileira voltada para o público que busca um estilo de vida fitness. Essa

171 se era corpo o estudo de agora, insistia tanto naquelas posturas que acabou fazendo a parada de mão (estar apoiado, invertido, sobre as mãos). Ele lutava por tudo, tornou-se um grande assistente no trabalho da Cia. Ormeo, conhecedor do palco, de iluminação e som, e também comigo dava aulas de teatro e condicionamento físico. Tinha uma história pessoal familiar tr nsform bonit lut . “CONSTRUIR” r s u v rbo.

Figura 118 – Marcus Diego – Filmagens Leopoldina - MG (2013)

Foto: Carla Mesquita

Ele é o único que não tem uma cena específica na relação com as águas da Serra da Canastra em Minas Gerais, no que intitulei na tese Relações entre estados de corpo e imagem, que veremos na seção seguinte. Marcus é quem começa a montar o barco, com habilidade, por isso as mãos são o foco de sua pesquisa (Figuras 118 e 119). É ele quem convida todos para essa viagem coletiva, ele é quem começa a construção do barco para a viagem comum a todos. Seus elementos são aqueles que seriam manuseados para construir o barco: madeira, cordas, tecidos.

Figura 119 – Marcus Diego – Filmagens Leopoldina - MG (2013)

172 Para cada um dos personagens busquei relacionar o verbo ao universo biográfico, e este a um elemento do barco. Se Marcus propunha uma direção, convidava para a viagem, tinha nas mãos a possibilidade de construir aquilo que seria o meio para a viagem, o barco: dele, Marcus tinha o Timão, a roda do leme de um barco, aquilo que permite governar uma embarcação. (Figuras 120 e 121).

Figuras 120 e 121 – Marcus Diego – Filmagens Leopoldina - MG (2013)

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121 Fotos: Carla Mesquita

Assim, corporalmente esses elementos trouxeram a ele a exploração da precisão, da ç o ons i nt ui os o movim nto o orpo. Um i i tr b lh r omo os “olhos n s m os” om um puro p r rr g r sust nt r poi r, acarinhar, firmar, suportar as demais personas, e a própria proposta da viagem. Só no naufrágio, Marcus cai (Figura 122). Mas seu despertar já em Sagres se inicia pelo movimento das mãos, como se neste gesto, fossem seus olhos a abrir.

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Figura 122 – Marcus Diego – Filmagens – Sagres - Portugal (2013)

Foto: Carla Mesquita

Ao mesmo tempo, enquanto essa rede de informações era montada, estava pesquisando o autor angolano José Eduardo Agualusa em seu livro Teoria Geral do

Esquecimento (2012). Um livro lindo que conta a história de uma mulher, Ludovica, que

constrói um muro separando seu apartamento do resto do edifício onde mora para se isolar da trági históri Angol : “[...] ro livros n omp nhi um o Lu o s vê cercada por histórias, aparentemente desconexas, que mais tarde baterão à sua porta na forma de muitos personagens, feitos de carne e osso, mas que poderiam ser habitantes de um sonho”.46 (AGUALUSA, 2012).

A partir do livro, fui reescrevendo passagens, ideias, motes que me estimulavam a partir da vida da personagem de Agualusa, que mesclava também realidade e ficção na construção de seu roteiro, uma vez que a história carregava partes de um diário real e partes de uma história criada pelo autor. Com o diário ele elencou dados, recriou mundos, inventou personas, como fizemos em vaga-LUMES a partir de observações de dez anos de convívio entre nós.

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174 Mostramos abaixo alguns estudos criados, a partir do livro de Agualusa, para cada uma das personas de vaga-LUMES. São textos que tomaram funções diversas no roteiro: se transformaram em textos-off, em escritos nas paredes e objetos, em indicações de cena, em estímulo para improvisação, em qualidades de movimento corporal.

Sou estrangeira a tudo, como uma ave caída na correnteza de um rio. Movo-me como uma medusa. Afundo-me nos meus próprios sonhos. Talvez a isso se possa chamar morrer. (Daniela Guimarães)

Hoje não aconteceu nada. Dormi. Dormindo sonhei que dormia. Árvores, bichos, uma profusão de insetos partilhavam os seus sonhos comigo. Ali, estávamos todos, sonhando em coro, como uma multidão, num quarto minúsculo, trocando ideias e cheiros e carícias. Acordei e estava sozinha. Se, dormindo sonhamos dormir; podemos, despertos, acordar dentro de uma realidade mais lúcida? (Rayane Rodrigues)

O tempo escorre como se fosse líquido. Não tenho mais cadernos onde escrever. E nem canetas. Escrevo nas paredes com aquilo que encontro e imprime. Poupo na comida, na água, no fogo e nos adjetivos. (David Peixoto)

O cansaço, a vista que se esvai, isso faz com que eu tropece nas letras. Leio páginas tantas vezes lida, mas elas já são outras. Erro, ao ler; e no erro, por vezes, encontro incríveis acertos. Foi assim que comecei a construir o barco. No erro, me encontro muito. As coisas são melhoradas pelo equívoco. (Marcus Diego)

É outra vez noite. Tenho contado mais noites do que dias. Abro a janela e vejo a lagoa. A noite desdobrada em duas. Ela e um filho como reflexo? Isso não me sai da cabeça. (Elizabeth Scaldaferri)

Gosto de descascar laranjas, de parti-las e ver a direção dos veios. Separar os gomos, enxergar percursos. (Deliana Domingues)

Os ventos entram por todas as frestas e nos movem também. Olhamos espelhos, identidades perdidas, de novo vistas, identidades transitórias. Nossos espelhos estão cheios de sombras. Passaram muito tempo na solidão. É preciso continuar o movimento, outros ventos. (Carlos Tavares)

Vamos trazer abaixo alguns exemplos de partes do roteiro que surgiram da mescla destes materiais, mostrando seus desdobramentos. Queremos, com isso, demonstrar o percurso do corpo-itinerante no processo do roteiro: a ignição corpo, a experimentação nos corpos e na experiência de criação. E, por fim, a cena escrita como apontamento futuro do corpo a ser filmado (mostrado através de fotos de cenas filmadas).

Pedaços de roteiro que surgiram das primeiras sensações de corpo levadas às experimentações nos jogos de improvisação e nos depoimentos dos bailarinos, na criação de s us mun os p rti ul r s no film nos stu os sobr p rson g m “T ori G r l o

175 Esquecim nto” su s r l çõ s possìv is com a escrita e o fazer do filme. A essa altura, estávamos no terceiro e quarto tratamentos do roteiro. Pimentel e eu escrevíamos completando e discutindo um a ideia do outro, em trocas continuadas de e-mails e em encontros presenciais.

Vamos ajuntar aqui os dados da personagem-biográfica de Deliana Domingues, o texto que criei para ela a partir do livro de Agualusa, as experimentações demonstradas na sequência de fotos do vídeo em que ela improvisa com os todos os demais integrantes para chegarmos à escrita deste trecho no roteiro final.

Na improvisação, a proposta para Deliana Domingues era trabalhar com uma qualidade sutil, sentida pela pele, na ideia de compor com movimentos a partir do verbo “MEDIR” p r tr z r i i m p s tr ç os onstruir p r ursos por m io os elementos da natureza que comporiam também o interno do barco (verificar na tabela mostrada anteriormente).

As pedras dos rios, que era um dos elementos de Deliana, serviam como pontes de passagem. Os corpos dos demais também serviriam de pontes. Seu texto era sobre as laranjas, sobre descobrir percursos: “gosto de descascar laranjas, de parti-las e ver a direção dos veios. Separar os gomos, enxergar percursos.” Indiquei que o texto estivesse escrito no espaço onde escolhesse, mas perto do seu corpo. (Figuras 123 -127).

Figuras 123 a 127 – Cena Deliana Domingues, ensaio. Cia. Ormeo

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177 127 Estudos sobre plano-sequência, improvisações para escrita de roteiro (2012/2013).

Fotos: Frame-film

Das sessões de improvisação sucessivas, aos poucos as ações corporais foram escritas no espaço da cena. As improvisações se transformavam na medida em que novos elementos eram introduzidos na pesquisa. Pouco a pouco, pelo exercício de construção ativa das imagens no corpo e nas escritas narrativas que fui realizando concomitantemente, surgiu o seguinte trecho de roteiro:

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