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CAPITULO IV: EXTERIORIDADE E QUESTÃO ECOLÓGICA: CONSTRUINDO A

1. EXTERIORIDADE E NATUREZA

1.1 NATUREZA E ECOLOGIA

1.1.2 Exterioridade, natureza e ecologia

1.1.2.3 Exterioridade, ecologia e libertação

Dussel tem clara intenção de superar essa perspectiva reducionista de interpretação da natureza. A natureza não pode ser interpretada e compreendida como um mero ente ao dispor do homem que o significa como matéria-prima a ser utilizada na produção da satisfação de suas necessidades e, de forma negativa, na satisfação da ganância de um sistema de produção que não propõe a vida, mas o lucro na ordem do dia.

Desta feita, não podemos esquecer que para nosso autor a natureza tem claro sentido metafísico: ela guarda uma imensa cota de exterioridade à espera do homem, única substantividade livre e autônoma, que, por sua vez, precisa respeitar

169 a natureza, que só possui autonomia relativa, como substantividade vivente imprescindível enquanto condição fundamental para a existência humana. Portanto, é a partir da exterioridade do cosmos, da natureza e do próprio homem que Dussel concebe a relação prático-poiética com a natureza. Propõe o seguinte ordenamento da reflexão com base no que já foi exposto que a nosso ver se insere na perspectiva de uma ética que, desde suas origens, explicita um princípio material:

A filosofia da libertação, para além do realismo crítico e do pensamento heideggeriano (um idealismo ontológico), supera a contradição falsa do realismo-idealismo, afirmando a anterioridade real do cosmos (ordo realitatis), a aprioridade existencial do mundo (ordo cognoscendi) e a interpretação econômica da natureza (ordo operandi)256.

O ordenamento da reflexão no pensamento de Dussel, como vimos ao longo desse trabalho, tem aplicação certa e determinada: a realidade de pobreza e exclusão na América Latina e no chamado Terceiro Mundo ou Sul pobre, hoje. É desde a exterioridade da periferia que se pode pensar e considerar não só a transformação da relação entre os homens, mas também a possibilidade de uma regeneração da relação com a natureza e isso “se já não for muito tarde”.

Considera que a libertação política da periferia (subdesenvolvida e sem desenvolvimento algum) é condição essencial da possibilidade de regeneração do equilíbrio ecológico natural, mas que essa libertação só cumprirá essa função/tarefa se se tratrar de uma autêntica afirmação da exterioridade cultural e das demais dimensões da vida do outro, não somente de simples imitação da vida e do processo econômico e tecnológico destrutivo do centro (nações desenvolvidas do chamado Norte rico)257.

Superar a relação de destruição da natureza é atitude de responsabilidade, de respeito à natureza, de justiça ao outro e à sua cultura. É atitude que relembra e remonta à humanização da natureza e à naturalização do homem proposta por Marx258.

256 Dussel, 1996, pág.130; 1980, pág. 114.

257 Cf. Dussel, 1996, págs.139-140; 1980, pág. 124. 258 Cf. Marx, 2008, pág. 107.

170 Mas, no atual estágio da Civilização Ocidental – de sociedade de e para o conhecimento, “sociedade avançada”, pós-convencional –, do liberalismo econômico e do modo de produção capitalista, não destruir, não devastar a natureza, não interferir mais do que já se interfere no equilíbrio ecológico natural parece uma tomada de atitude quase impossível.

A natureza, a terra, sua história e atmosfera, foi ferida mortalmente. O segundo relatório do Clube de Roma nos indica que o crescimento não é linear mas orgânico (isto é, as regiões do centro resistirão melhor às crises; as da periferia morrerão antes); todavia as crises já são mundiais, e atingirão todos os homens de todas as regiões. Contudo, os responsáveis políticos, econômicos e militares do sistema destruidor da natureza hoje, no mundo, são as potências desenvolvidas do centro, já que contaminam mais de noventa por cento da terra (embora não possuam trinta por cento da população mundial). Esse centro industrial jamais se autodeterminará a reduzir o crescimento, porque seria o fim do sistema cuja essência se resume no irracional crescimento acelerado259.

O estágio atual da crise ecológica ou civilizacional pelo qual passa a humanidade inteira não diz respeito a simples “boa vontade” ou “bom senso” para realizar as mudanças necessárias para se dar à vida e à realidade um sentido diferente do sentido atual: consumir-produzir e vice-versa. Estamos diante de um problema mais sério. Trata-se de um longo processo histórico no qual o homem se adequou e se acostumou a destruir e a submeter a natureza e o próprio homem em nome do “seu bem-estar”. Não se desfaz esse lastro introjetado nas consciências individualistas desde a modernidade a nossos dias com alguns alertas e bondosos conselhos entre iguais.

Dussel tem clareza de que as mudanças se processarão. Mas tem certeza de que terão um alto custo e não virão do sistema capitalista de produção. Com ele podemos questionar se alguns milagres tecnológicos serão capazes de regenerar o equilíbrio ecológico? Ou mesmo se os românticos e moralistas conselhos de intelectuais abalisados converterão inveterados destruidores em pacíficos amantes

171 da natureza?260 Dussel é descrente e ateu desse caminho. Acredita que, se a

solução um dia for alcançada, será, com certeza, por outros caminhos.

A permanecer a situação tal qual, a natureza, em sua substantividade vivente, que parecia manter-se em estado de passividade, “agora” responde com uma “lógica” natural que não permite réplica, implacável, diríamos nós: “Aquele que me destrói se destrói!”261. Esse diagnóstico/prognóstico seguido de profundos

questionamentos, feitos ainda em meados da década de 1970, parece não ter perdido a pertinência e a atualidade, pois não se tratava de pessimismo, mas de percepção da realidade e do processo destruidor em curso e, por isso mesmo, não impediu nem inibiu a reflexão ética de Dussel.

Será que uma nova atitude homem-natureza já não será impossível para o capitalismo na etapa de desenvolvimento em que se encontra? Será que modelos homem-natureza mais pobres, menos destruidores, menos consumidores, mais econômicos, mais pacientes e mais respeitosos para com a natureza, só poderão surgir em povos que não chegaram ao grau contraditório da tecnologia dentro do capitalismo? Será que se produzirá a ruptura do sistema destruidor quando as relações homem-homem forem redefinidas?262

Foram questionamentos importantes, sem dúvida, que consolidaram a suspeita de Dussel de que a libertação da periferia, dos pobres, dos excluidos, compreende a um momento necessário na história263. A libertação dos excluidos, das vítimas hoje, deve ser, a todo instante, o que norteia e orienta a práxis libertadora seja de intelectuais engajados, seja de movimentos ecológicos, socias e populares, enquanto sujeitos de novos e mais justos tempos.

Já é tempo de se buscar uma fonte meta-física para [justificar] os “Movimentos ecológicos, os “Movimentos pela paz” na Europa e Estados Unidos e os “Movimentos de libertação” no Terceiro Mundo. Esse fundamento é a Vida, a vida do planeta, a vida humana como o ser mesmo que é posto em perigo pelos armamentos do centro e pelas injustiças na periferia264.

260 Cf. Dussel, 1996, pág.139; 1980, pág. 122. 261 Dussel, 1996, pág.138; 1980, pág. 121. 262 Dussel, 1996, pág.139; 1980, pág. 122. 263 Cf. Dussel, 2009a, pág.15; 2007a, pág. 15. 264 Dussel, 2011, págs. 182-183.

172 O projeto ético-político de Dussel – que parte da exterioridade do outro, que se defronta contra a dominação ontológica, que afirma a exterioridade ética do trabalho vivo, que considera a natureza, em sua substantividade vivente, coisa real e, portanto, juntamente com o homem, sujeito na produção da Vida – critica de forma contundente o sistema capitalista de produção ou, na verdade, o sistema destruidor da natureza, da vida, do homem, do planeta.

O sistema capitalista, ao não poder distribuir a superprodução, não pode usar sua grande capacidade produtora instalada – isso produz desemprego, isso impede ter recursos para comprar mercadorias, e a falta de compra diminui todavia a possibilidade de produzir. A maneira pela qual as empresas compensam as perdas de seus lucros esperados mas não efetivados é a produção de armamentos. Os armamentos (instrumentos de morte e não de produção de vida e de consumo) põem em perigo de total extinção a vida dos seres humanos do planeta, além de serem usados para reprimir e assassinar aqueles que organizam e participam de movimentos de libertação na periferia265.

O projeto ético-político de Dussel que desde as origens se pautou no respeito, no valor e na dignidade da vida do povo seja na América Latina, na Ásia ou na África, dos pobres e excluidos, da comunidade das vítimas nos tempos atuais, pode então requerer para o exercício categórico de seu quefazer filosófico, de seu pensar histórico-dialético situado a partir dos contextos sócioculturais acima mencionados, de sua reflexão ético-crítica a partir do diálogo com a tradição filosófica europeia, um princípio material universal da ética a partir do qual legitime e justifique as razões pelas quais assume epistemológica e hermeneuticamente seus posicionamentos em favor da vida e das condições da vida da natureza, do homem, do planeta.

Somente agora, depois do largo e difícil percurso empreendido, o pensamento filosófico ético e crítico de Dussel pôde formular o princípio material universal da ética que tem na vida seu referente supremo266, e com isso, diante da crise ecológica e civilizacional causada pelo sistema capitalista de produção amparado no

modus vivendi do mundo ocidental europeu, pôde propor, então, a partir de uma

265 Dussel, 2011, pág. 183.

173 ética da vida, elementos que permitam pensar a possibilidade de uma ética ecológica.

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