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CAPITULO IV: EXTERIORIDADE E QUESTÃO ECOLÓGICA: CONSTRUINDO A

1. EXTERIORIDADE E NATUREZA

1.1 NATUREZA E ECOLOGIA

1.1.2 Exterioridade, natureza e ecologia

1.1.2.1 Substantividade física, vivente e humana

O cosmos é a totalidade das coisas reais enquanto realidade. Aparece assim ao homem como um locus incondicionado a partir do qual este se serve para a produção, reprodução e desenvolvimento da vida. Neste sentido, o cosmos tem um estatuto ético, pois surge como liberdade absoluta para ser utilizado livremente em benefício do outro. O cosmos, que tem na natureza sua expressão no mundo, não é objeto de adoração, mas é matéria potencial enquanto mediação para a vida de todo vivente; e por isso mesmo é mediação de toda relação prático-poiética em vista do outro.

160 A noção de substantividade Dussel a pega de Zubiri. O pensador espanhol lança mão dessa noção para melhor compreender e determinar o que chama de realidade. Aponta a distinção dessa noção com a de substância em Aristóteles. Aquela subsume esta uma vez que diz respeito à realidade da coisa real, enquanto constituída de notas essenciais, cuja unidade precisa o sentido de totalidade, enquanto essência dessa realidade. É possível mesmo dizer que a substantividade se expressa enquanto realidade física, vivente e humana. Sobre isso, e em forma de esclarecimento, diz o argentino-mexicano:

A essência das coisas cósmicas é o conjunto das notas constitutivas que operam sinergeticamente, co-determinando-se umas às outras. A essência constitutiva ou real é individual; é o que efetua a realidade da coisa que existe desde si. A essência constitui a substantividade do real, como diria Zubiri. Por isso, propriamente, tem essência, uma e só, a totalidade de todos os entes físicos naturais inorgânicos, já que constituem um só sistema, uma só substantividade astronômica. Por sua parte, a totalidade das coisas vivas tem igualmente como que uma essência, porque se comportam como uma substantividade. Somente o homem é na realidade uma substantividade (já que a substantividade assume a substancialidade como o organismo humano assimila a substância açúcar), porquanto sua liberdade fecha o conjunto de suas notas constitutivas com real autonomia, independência, operatividade.

Somente o homem, somente cada homem, é realmente coisa, res eventualis, coisa que tem história232.

Podemos entender então substantividade como uma totalidade ou realidade determinada cujo conjunto das notas constitutivas configura uma unidade que assume e dá sentido a essas notas como essência da realidade. Feita essa exposição, já podemos nos deter um pouco sobre cada uma das realidades substantivas acima mencionadas.

Substantividade física. Com base no que foi dito acima, e segundo a

compreensão de Dussel, o cosmos pode ser conhecido em sua constituição real a partir das descobertas que dele o homem faz, mas nunca é de todo ou plenamente interpretado, dada a exterioridade efetiva que o envolve, o que assinala, por sua vez, a possibilidade de um futuro contínuo da história da natureza. O cosmos aparece então como coisa que pode ser conhecida na ordem do mundo e que, por isso mesmo, como natureza, é portador de história. É conhecido então como natureza e

161 desta se pode formular modelos que permitem compreender o que é o cosmos. Convencionou-se chamar de natureza o cosmos modelado como universo em seu nível macrofísico, astrofísico233.

Com os avanços da ciência da física, hoje, podemos compreender melhor o cosmos no modelo de universo formulado e aceito por grande parte da comunidade científica: um universo que não é eterno, que não é incorruptível e sem mudanças, que não é infinito no espaço, mas que, ao contrário, teve e tem um tempo certo, está num espaço finito e em expansão, é “jovem” e ainda tem muito a percorrer. Sabe-se “muito” sobre a terra, o universo, isso graças à ciência nos avanços que teve, seja em seu aspecto macro ou micro-físico.

Dussel quer indicar, principalmente, que o cosmos físico, antes mesmo de aparecer no mundo como natureza ou de ser formulado (modelado) como universo, é, em sua realidade, um macrossistema que possui unidade, coerência e que, portanto, é uma substantividade. Mas essa substantividade, enquanto única, difere, por exemplo, de um monte de pedras cuja unidade é meramente aditiva. O cosmos como totalidade do real tem unidade constitucional. Isto é, apresenta diversas substâncias (substantia ou ousia) como hidrogênio, ferro, chumbo, mas todas incluídas e assumidas (assimiladas) num sistema físico real, na substantividade física. Encerremos esse momento, acompanhando as palavras de nosso autor:

A unidade constitucional fechada das notas interdependentes como sistema é a substantividade (que não é a tradicional substancialidade). Neste caso, é a substantividade ou unidade de sistema do cosmos como totalidade físico real. A unidade não é por funcionamento meramente combinatório ou de complicação, mas efetivamente físico coerencial; não orgânico nem mecânico artefático. É uma substantividade composta sui generis: o sistema cósmico, físico234.

Substantividade vivente. A vida se processa do cosmos e no cosmos. Vimos

que este, enquanto totalidade, se comporta como uma só coisa; como uma só realidade essencialmente constituída, de si, desde si; como um sistema real que agora é compreendido no mundo como natureza. Nesta será preciso diferenciar

233 Dussel, 1996, págs. 131-132; 1980, pág. 115. 234 Dussel, 1996, págs. 132-133; 1980, pág. 116.

162 entre o que é o simplesmente físico ou inorgânico (desde a macrofísica até a microfísica intratômica) e o orgânico ou o aspecto natural do vivente235.

A vida surge como um fenômeno sutil e de extrema sensibilidade no cosmos. Mostra desde o surgimento de uma complexidade impar que se expressa já numa simples célula viva. Sabe-se, hoje, através da ciência moderna, principalmente pelos progressos feitos nas ciências da física, da biologia, da química, que uma única célula, que um organismo vivo, do ponto de vista da funcionalidade heterogênea das partes estruturais do sistema substantivo constitucional dessa célula ou desse organismo, apresenta um grau de complexidade bem maior que o de todo o cosmos236.

Trata-se, então, a partir da origem e da evolução da vida (na natureza) na terra, com toda a sua complexidade, de falarmos de uma substantividade vivente. Esta difere, sem dúvida, daquela do cosmos inorgânico que é bem menos complexo. Essa diferença se estabelece pelo fato de que cada ser vivo, do unicelular ao vegetal e animal possuem uma substantividade relativamente individual. Diz-se relativamente porque somente ao homem é conferida a característica de indivíduo, uma vez que possui autonomia e liberdade. Ora, a substantividade vivente, que assinala a relativa individualidade de cada ser vivo, possui, sem sombra de dúvida, unidade de notas constitucionais, reais, com maior coerência e heterogeneidade funcional do que a substantividade do cosmos físico, inorgânico.

Na substantividade vivente, dada a unidade e a relativa individualidade dos seres, conforme o processo de evolução, percebe-se a capacidade de reprodução a partir da multiplicação filética de tais seres em espécies estáveis com identidade genética e de hereditariedade. Compreende-se, assim, que, no processo evolutivo, é o indivíduo que se especifica e não a espécie que se individualiza. Neste sentido, pode-se definir espécie como o conjunto das notas constitutivas pelas quais uma essência constitutiva pertence a um phylon determinado237.

Esta condição de evolução das espécies, permite que, na geração de um novo indivíduo, seja transmitido um sistema ou esquema constitutivo genético que

235 Cf. Dussel, 1996, pág.133; 1980, pág. 116. 236 Cf. Dussel, 1996, pág.133; 1980, pág. 117. 237 Cf. Dussel, 1996, pág.134; 1980, pág. 117.

163 permitirá, por sua vez, nova especiação, isto é, a originação das essências específicas por meta-especiação. Isto é o que chamamos de evolução238. Como que

explicitando esse conceito metafísico de meta-especiação, nos diz Dussel:

A evolução só se realiza quando se gera um novo indivíduo que possui em seu sistema ou esquema genético notas diferentes do progenitor e que, por sua parte, pode multiplicar-se como uma nova espécie; portanto é cabeça de um novo phylon. A substantividade ou essência vivente é então evolutiva. A vida parece possuir o que Bergson denominou o “élan vital” ou finalidade biológica, que supera a entropia e se dirige para graus de maior complexidade 239.

Substantividade humana. Já vimos que o cosmos, a natureza evoluem.

Especificamente, as coisas reais, as essências individuais e específicas, tudo na ordem do cosmos e da natureza está submetido à evolução. Mas Dussel assinala a singularidade da condição humana:

Somente o homem tem uma substantividade suficiente para poder na realidade ser considerado uma coisa individual, autônoma, separada, independente. A coerência sintomático-estrutural de suas notas é de uma clausura máxima; é a única realmente totalizada constitutivamente. E isso não só por possuir a nota constitutiva de uma inteleigência compreensora e interpretativo-conceitual, mais ainda por possuir a nota de uma real alteridade: é uma coisa para o outro [...] Toda sua somaticidade carnal coisica, não é somente organizada por sua nota intelectual, mas o repetimos, por sua referência metafísica ao outro. É a abertura ao outro, à exterioridade alteridade, que permite ao homem ser tal, ser a substantividade propriamente dita240.

Importa que percebamos aqui a singularidade da substantividade do ser humano. Somente nele, através da complexidade de seu sistema nervoso, é possível a experiência da proximidade da totalidade-exterioridade e o manejo das múltiplas mediações na totalidade do mundo241. Note-se que Dussel faz derivar o sentido da alteridade da constitutividade essencial da substantividade própria do

238 Cf. Dussel ibidem. Lembramos que meta-especiação é um conceito metafísico em Zubiri. 239 Dussel, 1996, pág.134; 1980, págs. 117-118.

240 Dussel, 1996, pág.135; 1980, pág.118.

164 homem. Desde a origem a substantividade livre do ser humano tende para o outro. A metafísica da alteridade242 de Dussel também se apóia em Zubiri.

Desde as primícias do humano uma pulsão de alteridade243 já se faz presente em sua constitutividade essencial. E tal pulsão acompanha, é claro, o ser humano ao longo do processo de maturação pelo qual passou antes de chegar ao que é nos dias atuais. Sobre isso nos diz o argentino-mexicano:

O homem teve que afirmar-se principalmente no começo como espécie totalizada, minimamente individualizada como exterioridade separada, distinta, como outro. No homo sapiens o domínio da racionalidade teve que afirmar-se já claramente como exterioridade livre, independente, podendo assim ser sujeito da pulsão de alteridade e de uma semiótica comunicativo- relacional com alto grau de complexidade (por exemplo a linguagem humana)244.

Para Dussel, é precisamente a partir de notas constitutivas como as da independência, da cultura livre e exterior que se pode fundar o fato de que o indivíduo humano é distinto e não meramente diferente (aludimos a isso no parágrafo acima). Evidencia, assim, o fato de que a espécie humana não é constituída de forma unívoca por indivíduos que simplesmente difiram desde e a partir de uma identidade que a todos assume indistintamente.

Ao contrário, a espécie humana é formada por indivíduos distintos e livres que efetuam história, com autonomia, pois se trata de res eventualis e não de ente natural. Neste caso, o conteúdo da espécie pode até ser analógico, porém com precisa distinção individual. É uma espécie que tem história, horizontes e mundo; que tem biografia do todo e das partes.

Importa, para encerrarmos esse momento, não perder de vista a compreensão que Dussel tem do cosmos, da natureza, do homem ou da substantividade física, vivente e humana: a realidade nas diversas esferas que a compõe é exterioridade e, como tal, é o campo próprio a partir do qual a vida surge, mas também se instaura, se produz, reproduz e desenvolve como bem absoluto. Diz o argentino-mexicano:

242 Ver Capítulo I: Metafísica da alteridade em Enrique Dussel (1.2.3). Para Dussel o outro é distinto e

não meramente diferente.

243 Ver Capítulo I: Metafísica da alteridade em Emmanuel Lévinas (1.1.2). Lévinas falará do desejo

metafísico.

165 Toda a metafísica da exterioridade e da libertação depende da sui generis constituição real da substantividade humana, clausura absoluta, liberdade, responsabilidade, totalidade separada e independente com função semiótica diante da totalidade do cosmos físico ou vivente e mesmo diante de todos os demais indivíduos da espécie humana. A única coisa livre, que tem mundo: o outro245.

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