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4.2 ANÁLISE DOS DESENHOS E ENTREVISTAS INICIAIS

4.2.4 Fígado, pâncreas e vesícula biliar

Observamos apenas duas ocorrências de correlação com o sistema digestório para o fígado (Carlos e Sofia) e uma relacionada à vesícula biliar (Simone). Os demais não relacionaram esses órgãos a qualquer processo relacionado à digestão, sendo o pâncreas desconhecido por todos.

Dentre os que fizeram correlação com fígado ou vesícula, apenas Carlos esboçou uma aproximação de sua função esperada, mas voltou atrás em suas colocações, o que nos permite concluir que nenhum deles possuía um modelo mental consistente com o modelo científico para esses órgãos.

Agrupamos as representações para os três órgãos de forma conjunta (o que justifica a ocorrência de pessoas em mais de um grupo), sendo: (a) relacionadas ao trato digestório - Carlos, Simone e Sofia; (b) não relacionadas ao trato digestório - Alexandra, Carlos, Fernando, Raissa e Tereza; e (c) inexistentes para os três órgãos - Ricardo.

Relacionadas ao trato digestório

No caso de Carlos, temos um primeiro momento no qual ele tenta encontrar uma resposta para a função do fígado em sua experiência prévia no abate de animais - relatada posteriormente durante a pesquisa:

Carlos: o fígado? (3,5s) Geralmente (1,5s) em animais:: (+) essa enzima que tem, que cai no, no alimento, né? É do fígado, né? Fica no fígado,

né? /.../ esse, esse negocinho aqui, que (+), que dissolve o alimento (+) ela cai do fígado, né? (+) Geralmente?

Embora não possamos precisar como foi feita esta "consulta" à memória, avaliamos que as imagens mentais do momento do abate ou da retirada dos órgãos internos no corte tenha servido de suporte às assertivas:

Carlos: em animais aí, é:: porco essas coisa assim tem, tem uma:: deixa eu ver se eu tamém num to falando (++) é do fígado mesmo, né? Tem uma:: um felzinho que amarga pra caramba (+) eu acho que ele que cai no alimento. Pra dissolver o alimento (+) no estômago.

Pesquisador: e ele cai do fígado no estômago?

Carlos: fica difícil, né? Fica meio difícil, mas num é não. Não ((risos)). Mas num é não, sabe porque? Porque o fígado tá fora dessa parte aqui ó ((apontando para a região do estômago no desenho)) (++) com certeza (2s) Pra que que serve esse fígado mesmo?

Há a possibilidade de que a pergunta feita pelo pesquisador tenha precipitado uma reavaliação da resposta, o que ressalta o papel do mediador no ensino e pesquisa. A separação anatômica do fígado e do trato digestório, conectados apenas pelo ducto biliar, de dimensões reduzidas, pode também ter contribuído nesse sentido.

Fígado e vesícula biliar foram relatados como parte do trato digestório apenas por Sofia e Simone, respectivamente. O alimento passaria por dentro desses órgãos, o que evidencia uma aprendizagem mecânica dos termos que os designam e/ou de seu tamanho e posição.

Para Simone, contudo, temos um modelo mental, esquema funcional e preditivo, ainda que não relacionado ao modelo científico. Sofia, por sua vez, tem uma representação proposicional, inespecífica, do fígado e sua posição (vide item 4.2.2).

Não relacionadas ao trato digestório

Em todos os casos verificados para funções diversas das associadas ao trato digestório, encontramos apenas representações proposicionais, com pouca ou nenhuma correlação funcional.

Em Fernando e Raissa, encontramos funções referentes ao sistema circulatório para o fígado, sendo que ambos mencionam um funcionamento em conjunto com os rins. A seguir apresentamos trechos da entrevista de Fernando:

Fernando: o fígado:: já ouvi falar mas não lembro agora (2s) pra o sangue é:: (3s) circulação do sangue? /.../ eu fico em dúvida porque::, vamo supor (+) você perde um fígado, mas o sangue vai pra:: a circulação vai continuar (++) aí isso tem alguma coisa a ver com o coração, não sei. Pesquisador: você acha que o fígado ele taria ajudando/

Fernando: eu, eu acho que o fígado, e o rins e o coração, eu acho que é todos eles são:: deve que fazem parte de alguma coisa, né? São interligado os três eu acho (+) fonciona assim, os três.

As afirmativas de Raissa são semelhantes em conteúdo:

Raissa: /.../ pra mim é como se fosse o coração (++) pra mim. Pesquisador: e o coração faz o que?

Raissa: o coração bombia o sangue (++) /.../ o fígado e o rins pra mim é como se fosse o coração.

Quando questionada sobre uma possível relação entre fígado e digestão dos alimentos, Raissa reafirma seu ponto de vista:

Raissa: no caso da comida eu acho que ele não faz nada /.../ eu acho que ele serve mesmo é só pra ajudar no:: no nosso sanguíneo, né? No nosso sangue.

Tereza também associa o fígado ao coração, mas apenas em termos de localização:

Tereza: o fígado num fica perto do coração? /.../ pode ser do lado do coração ((apontando para o lado esquerdo da representação do coração, figura 19)).

Uma referência ao coração, ainda que de forma indireta, foi recorrente na maior parte das representações. Alexandra, Carlos, Ricardo e Tereza chegaram a incluí-lo em seus desenhos, ainda que não imaginem uma conexão direta com o sistema digestório.

Consideramos a possibilidade de isto estar associado à grande exposição do órgão nos artefatos culturais26 e imaginário popular. A aprendizagem exclusivamente mecânica dos

termos fígado e rins provavelmente os tornou suscetíveis à interferência pró e retroativa, nos termos de Ausubel (2000), das funções associadas ao sistema circulatório.

Para a vesícula biliar encontramos apenas duas referências. A primeira delas foi feita por Alexandra, que a associou à bexiga:

Alexandra: vesicula:: ela faz alguma parte aqui da, da bexiga (++) eu num sei o que é, mas faz parte da bexiga eu acho (+) num sei não.

Carlos, por sua vez, não faz qualquer associação funcional, sugerindo que sua resposta tenha sido uma tentativa de corresponder às expectativas do pesquisador:

Carlos: já ouvi falar /.../ vesícula é tipo uma coisa assim ó? ((desenhando no papel o formato da vesícula, Figura 13J)) /.../

Pesquisador: porque você imaginou que ela seja assim?

Carlos: porque já tá tudo cheio aqui ((apontando no próprio corpo para o abdome)) se for, a vesícula tem que ser desse tipo aqui, mais ou menos, né? ((risos))

É interessante observar que o desenho, ao menos bidimensionalmente, se assemelha à estrutura real, embora a assertiva que se siga aponta para uma construção baseada meramente na hipótese de que na ausência de espaço, ela teria que ser achatada. Este fato reforça a necessidade de se aliar entrevista à análise de desenhos.

Inexistentes para os três órgãos

Ricardo não elabora qualquer representação que possa ser associada a algum dos três órgãos mencionados, afirmando desconhecer suas posições, tamanhos e funções, embora afirme já ter "ouvido falar" nos termos:

Ricardo: já ouvi falar mas eu num:: eu já estudei já, já muito sobre isso já, mas assim:: quando eu tava na sétima série. A cabeça esquece::

26 Siqueira (2007) discorre sobre as relações entre as representações simbólicos do coração da antiguidade aos

dias atuais e sua presença na linguagem (termos como recordar, coragem, concordar, dentre outros), bem como suas associação a valores morais, religião, tomada de ações e doenças.