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5.3 A invenção de outros espaços: para a imaginação e criação mediada pela literatura

5.3.1 A aula de ed Física

Foto 9- Campo de futebol, onde acontece a aula de Ed. Física.

A aula de educação física, que acontece duas vezes por semana, possibilita às crianças trabalharem movimentos amplos e específicos, sendo o pátio coberto e o campinho os locais onde as aulas acontecem.

Ao conversarmos sobre as diversas atividades dos alunos e a presença da literatura em algumas dessas, a professora de sala acrescenta a contribuição da professora de educação física ao desenvolver trabalhos envolvendo músicas e expressões corporais: “a professora de educação física ela também utiliza (a literatura), ela faz brincadeiras que ela vê a partir da literatura infantil, como brincadeira de roda onde ela também envolve música”.

Apesar deste comentário da professora, não presenciei nenhum momento de aula de educação física no qual a literatura fosse usada intencionalmente, mas observei que o brincar de faz de conta esteve presente nesta aula, bem como a identificação e imitação pelos alunos de alguns personagens de histórias.

Uma das atividades que observei tinha como objetivo fazer as crianças expressarem-se corporalmente, usando movimentos amplos. Para tanto, a professora de educação física dizia o nome de um animal e as crianças o imitavam. As crianças tiveram que imitar vários bichos “como se fossem....”: jacaré, borboleta, cachorro, macaco pequeno e grande.

Neste momento percebi como as crianças mergulhavam no faz de conta com intensidade, demonstrando prazer e alegria no desempenho da atividade. Acredito que realizar tal atividade com tanta dramatização, imitando bichos que a maioria das crianças jamais viu na realidade, foi possível também devido à influência dos trabalhos literários. Digo também, pois

não podemos descartar outras influências na vida das crianças como os meios de comunicação, principalmente a televisão. Mas acredito que devido à capacidade imaginativa exigida nos trabalhos envolvendo a literatura, as crianças puderam desenvolver sua inventividade e conseguir representar os animais com destreza e ao mesmo tempo, encanto, sendo que a literatura, possivelmente, os fez entrar em contato com muitos desses bichos que não fazem parte do cotidiano delas.

Em outro momento, numa aula de educação física, a professora desta disciplina criou uma série de obstáculos para as crianças transporem. Como a escola não tem um material próprio para este tipo de atividade a professora criativamente utiliza os materiais disponíveis no espaço do pátio coberto, como o balcão e os bancos de madeira para elaborá-la. Os alunos tinham que engatinhar subindo num banco até alcançarem o balcão, passar por ele e descerem em outro banco sentados.

A proposta da atividade era de superar os obstáculos, mas percebemos que muitas crianças agregaram o faz de conta à atividade imitando bichos, como André que brinca que é um gato gatinhando.

Depois desta atividade as crianças vão para o campinho e podem brincar livremente com os materiais disponíveis como: corda, bambolês, pneus, inclusive são incentivados pela professora para brincarem nas árvores que ali se encontram.

Adilson pede para eu amarrar a corda dele bem firme numa árvore para ele se pendurar, Matheus e Martin brincam com uma roda (pneu) e ao serem questionado sobre o que estão fazendo, Matheus diz: “Estou brincando de carro”. Eu sigo em frente e amarro a corda para o Adilson que me pergunta:

(Adilson)-Por que você está filmando?

(Pesquisadora)-Porque eu estou fazendo um filme de vocês brincando. Do que você está brincando?

(Adilson)-De Tarzan, ele pode matar qualquer um, todos, até leão. (Pesquisadora)-Nossa, que forte que ele é.

(Adilson)-Ele mata sem a coisa, ele pode matar com a lança. (Pesquisadora)-Você assiste muito ao filme do Tarzan?

(Adilson)-Eu tenho, a minha mãe comprou pra mim. Eu gosto daquele que ele é criança, mas o pai dele morre quando ele vai ficar grande. Ele morre (pensativo). Meu pai não vai morrer quando eu ficar grande?

(Pesquisadora)- Um dia ele vai, mas a gente não sabe quando, mas um dia todo mundo morre.

(Adilson olha para corda e diz)-Quero ver se eu vou ter coragem (de se pendurar na corda) e completa: -Ele também faz armadilha (o Tarzan).

Aproximo-me de outras crianças, Gabriele e Bruna e pergunto de que estão brincando: Bruna responde: eu sou a mamãe e ela é a filhinha. Outra criança me chama, Matheus, para eu amarrar a corda dele no bambolê.

Constatamos que as crianças também criam e incorporam os personagens de histórias infantis nestes momentos de atividade livre na educação física, trazendo o faz de conta ao brincarem de mamãe e filhinha ou transformando um pneu num carro. Criam novas funções para os objetos, pois a corda não foi usada para pular, nem o bambolê para bambolear, mas amarrando a corda no bambolê ele passa a ser puxado para girar como uma roda ou ser arrastado pelo chão. Vygotski (1998a) explica que ao brincar a criança começa a separar o objeto de seu significado – um pedaço de madeira transforma-se em um cavalo ou em uma mesa, ou em um prato, etc. – passando a operar simbolicamente, sem que essa ação seja determinada pela sua percepção direta do objeto. Além disso, analisa que ao brincar a criança leva elementos da cultura para a brincadeira, mas que essa nunca se constitui como mera reprodução da realidade, pois

tais elementos da experiência alheia não são nunca levados pelas crianças a seus jogos (brincadeiras) como eram na realidade. Não se limitam em seus jogos a recordar experiências vividas, senão que as reelaboram criativamente, combinando-as entre si e edificando com elas novas realidades de acordo com suas convicções e necessidades14 (VYGOTSKI, 1998a, p.12).

Salientamos como o brincar na árvore com a corda permitiu ao Adilson vivenciar o personagem Tarzan que ele tanto gosta e admira pela sua força e coragem, fazendo como que ele se questione: Será que vou conseguir pular da árvore na corda? Ser corajoso como o Tarzan? Mas mais que isso, ao relembrar do filme do Tarzan, na passagem onde o pai do mesmo morre, o faz pensar sobre a morte de seu pai e sobre a finitude da vida.

Adilson identifica-se com o personagem a ponto de refletir fatos que ocorreram na história com sua própria vida, não num sentido de relacionar acontecimentos atuais ou passados, mas conseguindo projetar-se para um futuro, o que gerou sentimentos contraditórios: de alegria e tristeza. Alegria, pela característica aventureira e de força do personagem, por isso,

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“Verdad es que, en sus juegos, reproducen mucho de lo que ven, pero bien sabido es el inmenso papel que pertenece a la imitación en los juegos infantiles. Son éstos con frecuencia mero reflejo de lo que ven y oyen de los mayores, pero tales elementos de experiencia ajena no son nunca llevados por los niños como eran en realidad. No se limitan en sus juegos a recordar experiencias vividas, sino que las reelaboran creadoramente, combinándolas entre sí y edificando con ellas nuevas realidades acordes con sus aficiones y necesidades” (VIGOTSKY, 2003, p.12).

Adilson deseja ser igual a ele, fazendo-o refletir que, assim como o Tarzan era pequeno e se transformou num adulto, isso também aconteceria com ele. Mas também gerou sentimentos de tristeza, pois ao vivenciar o enredo, no qual o pai de Tarzan morre, Adilson se dá conta da possibilidade da perda de seu próprio pai.