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3. DO DOCUMENTÁRIO AO CINEMA DA ASSERÇÃO PRESSUPOSTA

3.4. Cinema da asserção pressuposta

3.4.3. FICÇÃO E NÃO-FICÇÃO

3.4.3.3. Fórmulas definidoras

Compreendemos anteriormente como devemos conceber o conceito de imaginação126 empregado por Carroll. Este conceito é utilizado na definição da postura ficcional espectatorial. E esta postura, por sua vez, é um componente presente na definição de “ficção”.

Podemos, por fim, acompanhar Noël Carroll em seu movimento de retomada de sua definição anterior mais simples deste conceito, para no-la apresentar, agora, numa versão formulaica e mais completa:

uma estrutura x de signos com sentido, produzida pelo emissor s, é ficcional apenas se s apresentar x ao público a com a intenção de que a

126 Assim como faz o autor, após o esclarecimento conceitual anterior (nota 124), passaremos a remeter à expressão “imaginação supositiva” simplesmente como “imaginação”, por motivos de economia.

hipotética = imaginativa = não-assertiva

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imagine supositivamente o conteúdo proposicional de x, por reconhecer que essa é a intenção de s (p.86, grifo nosso127)

Para Carroll, a definição presente nesta fórmula apresenta as condições

necessárias para se determinar a ficcionalidade de uma obra, sendo este “o cerne” (core) de sua proposta de definição do conceito de ficção (CAP: p.86). Entretanto, necessitaremos interromper o exame desta definição e efetuar, aqui, uma pequena digressão.

O leitor oriundo do campo dos estudos de cinema, e que considera o “documentário” como um de seus objetos de estudo (mais ou menos) tradicionais, provavelmente motivou-se a ler o texto CAP devido a sua temática envolver a definição deste objeto bem familiar. Este perfil de leitor, contudo, provavelmente não esperava deparar-se com diversos aparatos argumentativos e discursivos extemporâneos, pertencentes ao expediente da filosofia analítica. Estes podem vir a se constituir como empecilhos para uma compreensão aprofundada da argumentação do autor ou, vir até a, como advertimos no início do trabalho, desencorajá-lo a dar continuidade à leitura, já que sua utilização é feita diretamente, sem maiores contextualizações, pressupondo, portanto, que o leitor do texto esteja já os conheça. Será útil, assim, comentar sobre a utilização, em CAP, de alguns destes recursos.

127 Na versão traduzida do texto (CAP), os caracteres que representam os termos existentes nas fórmulas definidoras aparecem entre aspas (e.g., “x”). Contudo, no texto original (CAP-EN), estes caracteres não são apresentados entre aspas. Isto porque na filosofia analítica, a utilização das aspas está propositadamente associada à distinção entre o uso e a menção de um termo/sentença, figurando apenas neste segundo caso – isto é, quando desejamos “falar das próprias palavras ou de seu sentido”, conforme o que ocorreria no “discurso indireto” (Cf. FREGE, 2009: p.133-134). Nas fórmulas de Carroll os símbolos que representam os termos são usados no “modo costumeiro” de utilização do discurso (na oposição acima, trata-se do “uso”), como no “discurso direto”, ou seja, de modo que o que importe seja a “referência” destes símbolos para com os termos por eles representados (Cf. op. cit.). Por isso, optamos por reproduzir estas fórmulas a partir do texto traduzido, mas eliminando as aspas, cuja presença, a nosso ver, estaria aqui tecnicamente equivocada. Note-se, contudo, que utilizaremos as aspas em torno destes termos, em outros momentos do texto, quando o que estiver em jogo for a citação de (“menção” a) os mesmos.

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Acabamos de mencionar, por exemplo, a existência de “condições necessárias” na definição acima, expressão esta utilizada pelo próprio Carroll para designar uma característica dos elementos de sua definição (e.g., CAP: p.86; 87).

Lidar com definições conceituais que envolvem condições necessárias ou condições suficientes é um expediente bastante rotineiro na área da filosofia analítica128, mas o mesmo não pode ser assumido ao se tratar do campo dos estudos cinematográficos, que possui referenciais teórico-metodológicos bastante diversos. Embora, neste exemplo, a expressão “condições necessárias” não seja exatamente obstrutiva à leitura de CAP, ela, no entanto, possui implicações que passarão, provavelmente, despercebidas para o estudioso de cinema. Para não prejudicar o andamento da leitura, digamos apenas que as “condições necessárias” são aquelas sem as quais um dado fenômeno não pode existir (sine

qua non); e, por sua vez, as “condições suficientes” são aqueles cujo atendimento garante o fenômeno/efeito. Para se obter definições conceituais precisas, na filosofia analítica, costuma-se especificar a conjunção tanto das condições necessárias, quanto das suficientes de um dado fenômeno129.

Já outro recurso mobilizado por Carroll, neste trecho de CAP, e que pode, efetivamente, oferecer alguma dificuldade de compreensão para o leitor não-filosoficamente treinado, é a apresentação da definição do conceito em pauta (“ficção”) através de uma fórmula definidora.

Contextualizamos no capítulo anterior (viz. item 2.3.2) a utilização desse tipo de recurso, particularmente por Carroll e, de forma mais geral, pela filosofia analítica. Apesar de este recurso visar a obtenção de um rigor conceitual que, em tese, proporcionaria clareza teórica (por sua suposta não-ambigüidade),

128 Há aqueles que concebem que a tarefa a que os filósofos analíticos deveriam se dedicar é a análise conceitual efetuada especificamente através de condições necessárias e suficientes, contudo, mais recentemente, este não tem sido mais considerado “o único ou mesmo como o objetivo primário da análise conceitual” (Cf. GLOCK, 2011: p.134).

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Essa conjunção de condições é denotada pela utilização, em uma definição, da expressão “se e somente se”, ou sua contração, “sse”. Por exemplo: “x é um filme de asserção pressuposta se e somente se...”.

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por outro lado devem-se reconhecer as dificuldades de compreensão que a utilização deste tipo de recurso tem o potencial de oferecer.

Na fórmula definidora em questão, a utilização, por parte de Carroll, dos símbolos “a” e “s”, é motivada, conforme dito em nossa exemplificação no capítulo anterior, pelos termos “audience” (público) e “sender” (emissor), enquanto “x” é usada para representar uma obra qualquer130 que seja candidata ao pertencimento à categoria “ficção”.

Quanto à estrutura desta fórmula, visto que ela será semelhante à estrutura da fórmula que veremos mais à frente, definidora do cinema da asserção pressuposta, deixaremos para examiná-la melhor na sub-seção seguinte.

Retornemos, enfim, à argumentação de Carroll.

Carroll acabara de nos oferecer uma fórmula contendo sua definição para o conceito de ficção. De acordo com princípios lógico-analíticos que subsidiam sua abordagem, ao obter a fórmula anterior, definidora da ficção, Carroll propõe que poderemos encontrar a definição de “não-ficção”, que seria seu “contraditório lógico” (Cf. p.88), através de uma simples operação de negação da fórmula anterior, ou seja, “negando o aspecto central definidor da ficção” (p.86).

Temos o resultado desta operação na seguinte definição:

uma estrutura de signos com sentido x é não-ficcional apenas se o emissor s apresentá-la ao público a com a intenção de que a não imagine supositivamente x, como resultado de seu reconhecimento da intenção de s (p.86, grifos nossos)

Com relação à definição anterior de “ficção”, a operação de negação mencionada ocorre, na definição do novo conceito, sobre a o elemento “intenção autoral” - o “aspecto central” que distingue ambos os gêneros.

130Ou, mais precisamente, Carroll utiliza aqui o símbolo “x” para se referir à “estrutura de signos com sentido” existente no interior da obra. No entanto, para os propósitos da discussão presente, a versão simplificada que apresentamos servirá. Maiores considerações sobre esse tema serão estabelecidas no item 4.2.

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Assim sendo, se observarmos essa fórmula da não-ficção, e compararmo-la com o sistema de equivalências e oposições presentes no esquema anterior (e.g., imaginativo = não-assertivo, cf. Figura 6), que ilustrava as atitudes mentais atribuíveis ao espectador, temos que a condição de que:

1. O público não interprete x de modo [ imaginativo ].

... presente na definição de não-ficção, pode ser traduzida (Cf. CAP: 86-87) para:

2. O público não interprete x de modo [ não-assertivo ].

Sendo assim, a conclusão de Carroll é que, com base nessa definição da não-ficção, “qualquer filme cujo autor não prescreva aos espectadores que entretenham seu conteúdo (...) como não-assertivo enquadra-se nesta categoria” (p.87, grifo nosso), incluindo nisto os filmes que, segundo Carroll, “se posicionam fora do jogo da asserção” (p.87), isto é, aqueles filmes que “se abstém” de indicar a seu público como este deve interpretar seu conteúdo.

Para exemplificar a categorização, Carroll recorre novamente aos filmes experimentais citados anteriormente, Arnulf Rainer (1960) e Serene Velocity (1970). No caso deste último, Carroll afirma que, “para seu realizador, é neutro ou indiferente o modo como venhamos a entreter as imagens do corredor” (p.87) que figura no mesmo. Este filme, então, pertenceria à categoria da “não-ficção”, isto é, ele “não é uma ficção” (p.87, grifo do autor), pois ele “não nos determina a

imaginar que o corredor existe”, e tampouco nos determina a assumir a atitude contrária, ou seja, a crer que o corredor existe (p.87, grifo nosso). Não há nenhuma indicação sobre qual postura mental deveria ser adotada pelo público.

Tendo, no decorrer de seu texto, atingindo o ponto em que é capaz de nos fornecer sua definição para o conceito “não-ficção”, e tendo oferecido também

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exemplos de sua utilização para a categorização de filmes, Carroll nos lembra, contudo, que este ainda não é o destino final de seu empreendimento.

A noção de “não-ficção” é útil, mas, se nos lembrarmos da discussão existente no início de CAP, não é esta a noção que atenderá às nossas necessidades.

E isso porque, embora ela possa ser usada para se referir a um conjunto grande de filmes, por outro lado, certos tipos de filmes que também entram no escopo de sua referência, como é o caso de Serene Velocity (1970), não constituem “a espécie de filme com que se preocupam os interessados pelo campo documentário” (CAP: p.87), que é a comunidade discursiva que nos compete.

Então, visto que o conceito de “não-ficção” é extensionalmente mais amplo do que o desejado, Carroll nos lembra que nosso objetivo é buscar um “conceito mais refinado” para “apreender esse conjunto mais delimitado de filmes” (Cf. p.87). E é o que ocorrerá logo em seguida.