• Nenhum resultado encontrado

Parte III Em busca de fusão

7. A fúria do corpo

“Me chamou, chorou, pediu que eu a ajudasse, perguntei em que eu poderia ser útil, respondeu que o útil lhe dava nojo, queria o ato que apagasse o passado e o futuro, queria o ato que dissolvesse a relação causa-efeito”.

“Digo-lhe que nada é tão real quanto a possibilidade de se criar uma outra realidade” João Gilberto Noll, A fúria do corpo, p.87 e p.209.

Este é o primeiro romance de Noll, publicado em 1981. Logicamente, a presente narrativa (bem como as que já vimos e as que se seguirão) evocaria uma série de outros temas, os quais exigiriam uma exegese própria para si. Contudo, iniciaremos este movimento bífido de ler o romance com vistas, simultaneamente, ao que ele exige (se é que exige) para sua compreensão, e sua participação na “Estética do não-eu” que

o todo da obra de Noll se nos apresenta73, e que o próprio autor assume como um mote

necessário para se escapar de um certo tipo de “violência”:

Eu quero que meu protagonista seja todo mundo e ninguém. Porque é uma modalidade bastante comum na literatura ocidental, esse desejo profundo de não ser, porque às vezes esses personagens estão no limite da náusea, das tensões brutais, porque no espaço público as tensões são brutais (grifo nosso) (NOLL, 2009).

Sem mais, partamos para a análise de A fúria do corpo, em nossa edição de 1989. Reproduzimos as primeiras palavras deste narrador, pois elas como que constituem um manifesto da Estética em questão na presente tese. Tudo que precisávamos saber sobre o herói, para que criássemos virtualmente uma imagem, é- nos ocultado:

O meu nome não. Vivo nas ruas de um tempo onde dar o nome é fornecer suspeita. A quem? Não me queira ingênuo: nome de ninguém não. Me chame como quiser, fui consagrado a João Evangelista, não que o meu nome seja João, absolutamente, não sei de quando nasci, nada, mas se quiser o meu nome busque na lembrança o que de mais instável lhe ocorrer. O meu nome de hoje poderá não me reconhecer amanhã. Não soldo portanto à minha cara um nome preciso. João Evangelista diz que as naves do Fim transportarão não identidades mas o único corpo impregnado do Um (NOLL, 1989, p.9).

Como já havíamos anunciado na primeira parte deste trabalho, é o nome, nos heróis de Noll, um símbolo da busca incessante pela perda da identidade. Nesta

73

No já citado depoimento dado no IEL, Noll diz: “A Fúria do Corpo é um livro sobre o impossível. O impossível se encarna no possível” (1993, p.291).

passagem, temos elementos suficientes para, senão formarmos uma imagem do herói, pelo menos vislumbrarmos sua atitude diante do outro e do mundo.

O nome, para o herói, serve para fornecer pista de seu passado, do que ele é (?), do que ele busca deliberadamente esquecer. Pistas a outro que também não tem nome, e que se o tivesse traria consigo resquícios da identidade que se busca esquecer. Não há coincidência entre o nome e a substância instável desta voz. Por isso, é necessário buscar no mais instável dentro de nós, pois esta é uma experiência que todos possuímos dentro. Explicando melhor: a imagem que não conseguimos criar desse herói é substituída por uma experiência. “Aquilo de mais instável”, eis a primeira nota que temos sobre esta voz rarefeita.

Contraditoriamente, ao buscar se perder, o herói se multiplica, pois há pelo menos três sujeitos nesta relação: aquele que é ocultado pela voz que fala; aquele que

é a voz que fala, e aquele a quem lhe chamam João Evangelista, uma espécie de

máscara social. O que parece controverso, analisado mais acuradamente, não o é, pois se a identidade for multiplicada, cresce em extensão, mas diminui, obviamente, em

unicidade.74

João Evangelista se torna assim “uma” das personas dentro desta voz; persona esta que dá alguns contornos formais, acidentais (e não essenciais, afinal o que há de essencial aqui?) ao material instável, que é sua consciência. Este contorno ao qual nos referimos trata-se do discurso religioso. O narrador deixa claro que é João quem diz, ou seja, não há convencimento interno, é uma espécie de terceiro dentro de si que fala. Ele diz sobre a unyo mystika, i.e., sobre como as identidades deixarão de sê-las quando da união com o Absoluto. Neste sentido, se não há convencimento interno, pelo menos há interesse neste tema identitário. Importante salientar que o herói poderia ser indiferente ou adotar uma postura iconoclasta com relação ao discurso religioso, no entanto, o que presenciamos é uma absorção do aspecto formal-estético de tal discurso, deixando de lado o conteúdo ético, místico e teológico.

E o narrador prossegue: “Não me pergunte pela idade, estado civil, local de nascimento, filiação, pegadas do passado, nada, passado não, nome também: não”

74

O que são, afinal, sem querermos estabelecer qualquer instrumentação de análise para o romance, as teorias sobre a pós-modernidade, senão diagnósticos detalhados sobre esta multiplicidade do eu?

(NOLL, 1989, p.9). Sobre o nome, já comentamos anteriormente; sobre o passado, consideramos de suma importância que atentemos para estas palavras, pois não são um mero jogo retórico, como adiantamos na primeira parte desta tese. É o passado um tempo que não quer ser lembrado pelo narrador, pois o passado determina o presente, logo, dá identidade. É o fluxo incessante do presente que interessa ao herói, é o inacabamento constante que o presente proporciona e que interessa na relação temporal do sujeito.

Se o nome, a filiação, estado civil e o passado devem ser olvidados por aquele que se relaciona e queira conhecer intimamente o herói, o sexo, por outro lado, não é repleto de negações que bloqueiam o acesso à persona:

Sexo, o meu sexo sim: o meu sexo está livre de qualquer ofensa, e é com ele-só- ele que abrirei caminho entre eu e tu, aqui. Mas se quiser um nome pode me chamar de Arbusto, Carne Tatuada, Vento. O que não vou te declarar é o nome e todos os dados que me confrangem a uma certidão que além de me embalsamar num cidadão que desconheço servirá de pista a esse algoz (imperceptível de tão entranhado nas nossas já tão fracas presenças) (NOLL, 1989, p.9).

A relação possível entre eu-outro, para o herói, deve ser necessariamente o sexo; é ele que deslimita, que não determina de antemão qualquer traço sobre os sujeitos envolvidos. Os demais dados pragmáticos não coincidem com o eu fragmentado, e, axiologicamente, o sexo significa e determina sobremaneira a personalidade do herói sem nome.

É emblemático que a consciência do herói se dirija especificamente ao presente, ao imediato, ou seja, ao que não tem mediação de coisa alguma (ou pelo menos é esta a tentativa de representação); especialmente, verificamos a ausência de uma mediação de rememorações ou causalidade anterior àquele presente. Tal como exemplifica esta passagem:

O meu nome não. Nem o meu passado, não, não queira me saber até aqui, digamos que tudo começa neste instante onde me absolvo de toda a dor já transpassada e sem nenhum ressentimento tudo começa a contar de agora, mesmo que sobre a borra que ainda fisga o meu presente, nem essa borra, nada, só tenho o sexo e aqui estamos, sentados um em frente ao outro, e isso importa, estamos sentados um em frente ao outro em bancos do calçadão da Avenida Atlântica, sei que és mulher porque teus lábios vaginais estão descobertos sob a saia roxa e eu os vejo entreabertos revelando pétalas de outros lábios (...) (NOLL, 1989, pp.9-10).

Temos, assim, o corolário definitivo que, entre os tempos possíveis e passíveis de relação com o herói deste romance, o presente é não só uma escolha, mas a única possibilidade àquele que busca não se limitar a uma identidade. Neste presente, a realidade é o que o narrador vê e sente; o outro que está diante dele é digno de lhe impingir certa identidade, mesmo que instável e arbitrária, mas deve levar em consideração que ele, o outro, existe enquanto material sexual. Este material será explorado em todas suas potencialidades.

O ser do qual se explorará tais potencialidades está diante do herói. Algumas palavras sobre a parte estilística deste trecho: as imagens evocadas para a representação da voz desta espécie de sereia, que encanta e paralisa, possuem estridência e agudeza:

tua voz que ouço agora tem o risco das cordas mais tesas, vibra como se quebrasse com a ponta mais penetrante os cristais mais raros, a tua voz estilhaça o que por perto se espanta, o raio da tua voz tem o poder de paralisar os desapercebidos, os que querem te calar perdem instantaneamente a força para qualquer ataque ao som da tua voz, da tua garganta nasce uma voz sem nome (NOLL, 1989, p.10).

Mesclados a essa linguagem lírico-erótica, alguns termos que evocam o Evangelista dentro do herói surgem entre uma imagem e outra: “Os nossos nomes não serão pronunciados até que chegue o dia de serem proclamados”, “umbrais do paraíso”, “como quem se dirige ao Reino”, “sei que essa mulher me trairá e eu a ela antes que o galo desperte, e cante”, “nem mesmo este pão que reparto agora com

ela”75. Logo em seguida, as metáforas barrocas e as alusões evangelísticas dão lugar a

mais crua e grotesca (no plano estético e não axiológico do termo) descrição da relação carnal entre ambos:

ela abre minha braguilha e diz com a língua cheia como um sapo digerindo um réptil, diz que meu pau está vermelho-em-riste, se eu não quero meter na xota enlouquecida dela, eu meto sim sem cerimônias, varo as entranhas dela com meu mais tenso mel, vomito todo o meu néctar lá pelo dentro mais impenetrável dela (NOLL, 1989, p.11).

75Tal como, novamente, Gunther Anders diz que Kafka “carregou consigo, como enfeites e amuletos, os cacos dos

Sendo assim, passamos pelas metáforas estridentes e barrocas até chegar a mais desidealizada relação sexual, na qual os dois não se lembram de seus nomes, pois se deslimitam através do sexo.

Eis então que se dá o primeiro encontro especular. É este objeto, como dissemos na primeira parte desta tese, não um encontro consigo mesmo, mas um encontro com aquele que o outro vê, não coincidindo com a ideia vaga que o herói tem de si para si. Sabemos, logo em seguida, que já o tempo é outro: sua companhia “se extraviou como tantas vezes e como tantas vezes reapareceu” (NOLL, 1989, p.11); é o presente, sem formulações hipotéticas do que houve neste ínterim, onde se centra a atenção do herói. Isso ocorre porque o passado quer ser ocultado, quer ser esquecido também, pois há “muito mais dores a demonstrar que júbilos” (NOLL, 1989, p.12). No entanto, este “anonimato vil” é a esperança de que algo renovador surgirá entre os dois.

É neste momento que ele olha momentaneamente ao passado, mas para se convencer de que o anonimato vil é um respiradouro de que não dispunha há um tempo: “não, não, se retorno aqui ao passado não é para me dar circunstâncias distinguíveis dos demais, não, não trago aqui cidades e ruas da infância, nomes não” (NOLL, 1989, p.12). Esta rememoração indica algumas notas sobre este herói: ele teve educação religiosa, que o oprimiu, que lhe deixou marcas profundas em seu corpo pecador. Interessante perceber que, por mais que o esquecimento voluntário ainda seja a tônica, a rememoração é assumida pelo narrador como forma de vida:

Hoje, nesse momento em que percebo que lembrar é assegurar de alguma forma a vida, embora não deva, não queira, lembrar não, compreendo enfim que vale a pena ter vindo até aqui e que estar vivo é uma espécie de rebelião contra essa sina de se ir puxando a vida como quem puxa a corrente inesgotável de uma força que nos excede, rebelião contra essa sina de se ir vivendo como quem puxa o fantasma que nos extenua sem que saibamos que déspota é esse que nos quer assim consumidos (NOLL, 1989, p.13).

Percebemos claramente que a rememoração é permitida enquanto meio de se confrontar a angústia anterior com a ideia de que permanecer em si mesmo - isto é, resguardar uma identidade - possuía sentido enquanto havia, para ele, a possibilidade da eternidade. Uma vez perdida esta convicção, não há motivos para que se carregue um ser (“essa ruína de nós mesmos”) que não coincide, em absoluto, com o presente.

Mais adiante, no meio do romance, o herói dirá: “O passado não existe. Muito menos o futuro. Temos apenas esse momento entre nós” (NOLL, 1989, p.137).

Desprovidos de identidades pregressas, o narrador, novamente se utilizando da linguagem ritualística do Cristianismo, batiza sua companheira num gesto emblemático e redentor “de outros aflitos”, de que é possível, mesmo que momentaneamente, haver alguma coincidência entre o que se é interna e externamente, que é possível se questionar (e desafiar) quem e o que nos outorgam identidade desde fora.

Afrodite é o nome dela. No panteão grego, ela simboliza as formas irreprimíveis

da fecundidade, não nos frutos, mas no desejo76, ou seja, é símbolo do gozo como fim

e não como meio. Batizar a posteriori, e não a priori, é ter a oportunidade de conformar algumas notas essenciais (em que pese a instabilidade de tais notas) do sujeito ao nome dado; neste caso, devemos levar em consideração o símbolo que evoca tal nominação.

É Afrodite uma exceção entre as figuras femininas na obra de Noll, pois recebe um tratamento, senão idealizante nos moldes tradicionais, pelo menos é ela mais do que um estrito meio de prazer, como vemos em outros muitos romances do escritor gaúcho. É o narrador um “guardião da beleza de Afrodite”. É guardião porque só a ele é dado este “Éden”, esta experiência incomunicável: “então, privado de qualquer comunicação, me ajoelho diante de Afrodite e descubro que não há mais a dizer” (NOLL, 1989, p.17).

Em seguida, Afrodite é acometida por um tiro no calcanhar e entra em convulsão. O narrador, evocando o destino hipotético como que em oração, converte o membro em pé sadio. Não fica claro, e isso é intencional, o que houve ali: se milagre do Evangelista ou algo do gênero. O que há é um momento de insanidade, que se confirmará mais adiante. No entanto, por termos somente o ponto de vista da consciência do narrador, somos obrigados a reconstruir a situação desde fora, em um esforço de alteridade, para perceber na incongruência da narrativa a ínfima coerência. Enquanto o narrador diz sobre o evento do tiro no pé de sua “Cinderela”, um outro mendigo entra em cena, por meio de uma história-confissão, na qual há uma reflexão que é criada, obviamente, pelo

76 Vide definição do Dicionário de símbolos, de Chevalier e Gheerbrant (2009): “Afrodite exprimirá a perversão

sexual, pois o ato de fecundação só é buscado em função da primazia do gozo a que a natureza o vincula. Assim, a necessidade natural se exerce perversamente” (p.14).

próprio narrador, espécie de alter ego. Afirmamos isso porque o tema, bem como a entonação, são do narrador. Eis um exemplo: “Sou um desterrado pois não? Sou um asceta exposto ao riso alheio, isso sim quem sou” (NOLL, 1989, p.21). Após repreender seu alter ego, o narrador percebe que é consigo que ele fala, tratava-se de uma “imagem fantasma”.

É neste momento, após esta alucinação, que o narrador revela que está à procura de sua musa Afrodite. Uma procura que simboliza o desejo erótico, no sentido etimológico de Eros. É o desejo que na voz infantil se manifesta num “bá”, esta interjeição que significará para o narrador a sua própria e infinita carência diante do mundo: “Bá seria o som, a sílaba que tudo abriria, bá chegaria até o último esconderijo de alguém, bá o meu condão, meu abre-te-sésamo, afrouxaria as presilhas de Afrodite à penugem de meu bá” (NOLL, 1989, p.22).

Esta Afrodite existe num presente de consciência, uma rememoração que tem a força de reviver, no sentido mais profundo do verbo. Com ela, o narrador consegue se deslimitar pelo sexo e alcançar um novo eu através do corpo de sua musa: “eu enfrentava mais uma curva e me perdia mais uma vez ao teu encontro. E cada encontro nos lembrava que o único roteiro é o corpo. O corpo” (NOLL, 1989, p.24).

Aos poucos, esta técnica de “revivescência” se torna predominante na narração. Este é um meio de fazer da rememoração, daquilo e de quem não está mais presente, de alguma maneira mais realista, pois, em nossa consciência, quando rememoramos, revivemos presentificando, apesar de estarmos em um outro plano. Esta técnica se assemelha muito a algumas técnicas de penetração de consciência no cinema. Trazendo para o mote de nosso trabalho, este é um modo de se substituir o presente- real pelo presente-rememorado, isto é, deixar de ser o eu-real para ser um eu- rememorado, em que pese o fato de essa rememoração poder ser modificada, acrescida ou mesmo distorcida pelo estado insano de quem, no presente, rememora.

Novamente, o sexo que deslimita, em sua linguagem disfêmica, conduz o herói a rememorar um coito que contém em si a potencialidade de anular todo o eu que não coincide com sua natureza sexual:

Eu gostava daquele sangue, imprimiria nele a minha sede que ficava vermelha, vermelha era a minha sede, e meu pau subia e nisso estava a minha dignidade,

não a minha dignidade de macho ou qualquer coisa que significasse minha cidadania há muito aviltada pela Cidade que me fora dada, não era macho nem fêmea nem cadela nem galo, eu era meu pau subindo, eu era a natureza que quando menos se espera se revela como um cão faminto diante de uma posta de carne (NOLL, 1989, p.26).

As metáforas animalescas intencionalmente anulam aquilo que há de humano, de cidadão, num plano axiológico; pois o rebaixam a um plano de puro desejo irrefreado, de domínio mínimo daquilo que o corpo, sempre ele, anela. Trechos como este vão como que retirando camadas de pressuposições identitárias que nós, leitores, imputamos a qualquer personagem literário. Esta voz que fala no romance de Noll precisa, a cada romance, reiterar esta sua verdade, pois necessita se desvincular de tudo que é “eu” construído desde fora.

O narrador segue rememorando como se fora o presente diante de si, tal como na estratégia cinematográfica já aludida. A novidade agora é que o herói, por vezes, se dirige diretamente a Afrodite, interrompendo a narração da rememoração e encenando o próprio ato. Obviamente, trata-se de um processo insano, passional, pois há a inconstância temporal de acordo com a instabilidade do real-dentro-de-si. A instabilidade da narração surge quando o enredo da rememoração (ou sonho) é o ato sexual. Por mais que haja uma busca de fusão entre os dois corpos, a descrição é minuciosa e sem qualquer eufemismo, pois é uma consciência falando de si para si. É quando termina o ato que ambos retornam às prisões do eu: “Nos separamos. No escuro agora mais escuro o silêncio se propaga. Há uma membrana entre você e eu, agora. Ainda” (NOLL, 1989, p.31).

Em seguida, novamente a temática do eu vinculado ao passado, ao outro-que-

me-determina, ao nome:

Alguém tropeça no meu sono e eu grito o nome não digo. Nome não. Não adianta retalhar meus nervos, me inquirir, interrogar, nem mesmo torturar. Nome não. Quando criança me ensinaram assim: nome, idade, endereço, escola, cor preferida. (...) sou todos, e quando me se espera, ninguém. Meu nome não. (...) Não tenho cor. Sou incolor como uma posta de nada e morro agora neste instante se você vier (NOLL, 1989, p.31).

Entre uma narração e outra sobre Afrodite, o narrador esbarra em lembranças de violência policial, de misérias pessoais, mas sempre retorna ao mote, que é sua amada. É ela que não deseja ver agora, que está num hospital planejando fuga com outro

paciente, um menino índio que será admirado pelo narrador. Os espaços são fluidos, como apontamos na primeira parte deste trabalho, pois obedecem aos descaminhos da consciência operante. Neste hospital, um doente insano como que se apossa da consciência do narrador e, em profusão, despeja uma série de narrações descabidas e intermitentes. O efeito causado é de estranhamento no leitor, pois um personagem casual acaba dominando por algumas páginas toda a primazia narrativa.

Outro exemplo desta mesma espécie ocorre na continuação, quando o herói conta sobre um velho que definha em um leito à frente. Quando pensamos, enquanto leitores, que a descrição do velho ficará nos aspectos mais superficiais, surpreendemo- nos com a acuidade e profundidade dos detalhes. Desde as minúcias mais escatológicas até a interpretação do comportamento do genro do velho. O narrador abre mão de sua experiência para experienciar o outro, nada mais comum àquele que deseja ser o não-eu.

Silviano Santiago, no ensaio O narrador pós-moderno, aponta esta característica marcante de certa literatura feita contemporaneamente:

O narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador. Ele narra a ação enquanto espetáculo a que assiste (literalmente ou não) da platéia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na biblioteca; ele não enquanto atuante (SANTIAGO, 1989, p.39).

É exatamente o caso aqui, pois temos a exata definição da voz que fala neste

No documento João Gilberto Noll e a estética do não-eu (páginas 151-200)

Documentos relacionados