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João Gilberto Noll e a estética do não-eu

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Academic year: 2021

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DIEGO GOMES DO VALLE

JOÃO GILBERTO NOLL E A ESTÉTICA DO NÃO-EU

CAMPINAS,

2014

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iii

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

DIEGO GOMES DO VALLE

JOÃO GILBERTO NOLL E A ESTÉTICA DO NÃO-EU

Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutor em Teoria e História Literária, na área de Teoria e Crítica Literária.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Eugênia da Gama Alves Boaventura

Dias.

CAMPINAS,

2014

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Haroldo Batista da Silva - CRB 5470

Valle, Diego Gomes do,

V242j ValJoão Gilberto Noll e a estética do não-eu / Diego Gomes do Valle. – Campinas, SP : [s.n.], 2014.

ValOrientador: Maria Eugênia da Gama Alves Boaventura Dias.

ValTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

Val1. Noll, João Gilberto, 1946 Crítica e interpretação. 2. Ficção brasileira -História e crítica. 3. Literatura brasileira - Séc. XX. 4. Ontologia. I. Boaventura, Maria Eugênia,1947-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: João Gilberto Noll and the aesthetic of non-me Palavras-chave em inglês:

Noll, João Gilberto, 1946- - Criticism and interpretation Brazilian fiction - History and criticism

Brazilian literature - 20th century Ontology

Área de concentração: Teoria e Crítica Literária Titulação: Doutor em Teoria e História Literária Banca examinadora:

Maria Eugênia da Gama Alves Boaventura Dias [Orientador] Jefferson Agostini Mello

Ariovaldo José Vidal Antônia Torreão Herrera Silvana Oliveira

Data de defesa: 17-12-2014

Programa de Pós-Graduação: Teoria e História Literária

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)

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RESUMO

Esta tese tem como objeto a obra romanesca de João Gilberto Noll, que é composta de doze romances publicados até o presente momento. A ideia que alimentou nosso ímpeto inicial foi surpreender na heterogeneidade dos diversos romances uma certa unidade que poderia ser o princípio estruturante dos romances de Noll. Correndo o risco de sermos demasiado sistemáticos, empreendemos tal trabalho. Divide-se esta tese em dois momentos distintos e complementares, a saber: primeiramente traçamos, um tanto quanto abstratamente, o que há de constante, o traço comum entre os doze heróis (que, em certo sentido, são o mesmo) que falam nos romances. Destacamos, neste primeiro momento da tese, a importância que a análise temporal teve, fornecendo talvez a chave interpretativa mais importante para se compreender as questões identitárias que os romances em questão evocam. Neste sentido, teóricos como Paul Ricoeur e Jean Pouillon forneceram a base teórica para se estabelecer uma visão substancial do fazer narrativo no tempo. Na segunda parte, cada romance é compulsado de maneira a concretizar os corolários produzidos na primeira parte da tese. Buscamos evitar o périplo teleológico, no qual estaria dado já no início o fim em direção ao qual conduziríamos nossa exposição. Sendo assim, a hipótese que se transformou em tese sustenta que todos estes romances são, na sua essência mesma, dramas identitários nos quais seus heróis deliberadamente buscam o não-ser, aquilo que não são, mas que anelam profunda e angustiadamente. Não se trata de uma carência de ser, mas de uma busca consciente pelos limites do eu diante do não-eu. As análises de cada romance nos permitiram demonstrar sobejamente que esta hipótese se confirma tout court e nos conduzem a reflexões que são de teor filosófico - uma vez que dizem respeito aos nossos dramas existenciais -, às quais buscamos encontrar respectivos filósofos para nos auxiliar.

Palavras-chave: João Gilberto Noll; Literatura brasileira contemporânea; Não-ser; Narrador; Ontologia.

ABSTRACT

This thesis focuses on the novelistic work by João Gilberto Noll, which comprises twelve published novels until the present moment. The idea that nurtured our initial impetus was to come upon, at the diversity of the various novels, a certain unit that could be the structuring principle of the novels by Noll. At the risk of being too systematic, we undertake such work. This thesis is divided into two distinct and complementary moments, namely: first we trace, somewhat abstractly, what is constant, the common

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viii

thread among the twelve heroes (which, in a sense, are the same) who speak in the novels. In this first moment of the thesis, we emphasize, the importance of the temporal analysis, perhaps providing the most important interpretative key to understand the identity issues that the novels in question evoke. In this sense, theorists such as Paul Ricoeur and Jean Pouillon provided the theoretical basis for establishing a substantial vision of the narrative in time. In the second part, each novel is examined in order to achieve the corollaries produced in the first part of the thesis. We seek to avoid the teleological periplus, in which the end would be already given at the beginning of the way of our exposition. Thus, the hypothesis that turned into thesis argues that all these novels are, in their essence, identity dramas in which their heroes deliberately seek the non-being, what they are not, but what they wish to be deep and anxiously. It is not a lack of being, but it is a percipient search for the limits of the self before the not-self. The analysis of each novel allowed us to widely demonstrate that this hypothesis is confirmed tout court and they lead us to philosophical reflections - once they are related to our existential dramas - to which we seek to find respective philosophers to help us. Keywords: João Gilberto Noll; Contemporary Brazilian Literature; Non-being; Narrator; Ontology.

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ix

SUMÁRIO

DA HIPÓTESE À TESE: UMA SÍNTESE INTRODUTÓRIA

... 1

CAPÍTULO I – PARA UMA ESTÉTICA DO NÃO-EU ... 9

1. A configuração do herói ... 10

2. Perdendo a identidade ... 23

3. O homem, a narrativa e o Niilismo ... 33

4. O espaço ... 42

5. O sexo que deslimita ... 47

6. Os espelhos ... 51

7. Os tempos ... 55

7.1 O passado ... 59

7.2 O presente ... 62

7.3 A hipótese ... 65

CAPÍTULO II – O NÃO-EU NOS ROMANCES ... 71

Parte I Pais e espelhos miméticos ... 72

1. Rastros do verão ... 73

2. O quieto animal da esquina ... 79

3. Anjo das ondas ... 89

Parte II Máscaras do eu ... 101

4. Bandoleiros ... 102

5. Hotel Atlântico ... 112

6. Harmada ... 121

Parte III Em busca de fusão ... 134

(10)

x 8. Berkeley em Bellagio ... 153 9. Lorde ... 162 10. Solidão continental ... 171 Parte IV Andróginos ... 182 11. A céu aberto ... 183 12. Acenos e afagos ... 194 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 207 REFERÊNCIAS ... 211

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xi

Aos meus pais e irmãos, que só me fizeram bem. À minha esposa e filho, que só me fazem.

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(13)

xiii

AGRADECIMENTOS

À minha orientadora: Professora Maria Eugênia, que acreditou desde o início em mim, dando-me esta oportunidade fundamental em minha vida profissional e intelectual. Tenho orgulho ter sido orientado por tão distinto ser humano. Obrigado, Professora!

Aos professores Jefferson Agostini e Ariovaldo Vidal, que estiveram também na Banca de Qualificação e, com extrema boa vontade, contribuíram significativamente neste momento final do doutorado. À professora Antônia Herrera, que, gentilmente e com muita antecedência, se dispôs a participar desta banca; também àquela que me acompanha desde a graduação com estímulos, auxílios e boas conversas: professora Silvana Oliveira.

À CAPES, pela fundamental bolsa concedida.

Aos funcionários do IEL: Miguel, Rose e, especialmente, Cláudio, o sujeito mais solícito que já conheci.

Aos amigos: Jonas, Mikuska, Lincoln, Zé, Wladimir, Rafael e Júlio; todos contribuíram de maneira afetiva e intelectual.

Aos familiares, sempre interessados no meu bem, mesmo achando que ainda posso endoidecer nisso aqui.

À minha cunhada, Jamila, e aos meus sogros, Dalva e Jamil, por tudo que me auxiliaram nestes quatro anos.

Ao meu filho, Filippo, e à minha esposa, Janaina, que suportaram bravamente este mal-humorado doutorando. Amo vocês dois!

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(15)

xv

O que sei, o que é certo, o que não posso negar, o que não posso recusar, eis o que interessa. Posso negar tudo desta parte de mim que vive de nostalgias incertas, menos esse desejo de unidade, esse apetite de resolver, essa exigência de clareza de coesão. Posso refutar tudo neste mundo que me rodeia, que me fere e me transporta, salvo o caos, o acaso-rei e a divina equivalência que nasce da anarquia. Não sei se este mundo tem um sentido que o ultrapassa. Mas sei que não conheço este sentido e que por ora me é impossível conhecê-lo. O que significa para mim significação fora da minha condição? Eu só posso compreender em termos humanos. O que eu toco, o que me resiste, eis o que compreendo. E estas duas certezas, meu apetite pelo absoluto e pela unidade e a irredutibilidade deste mundo a um princípio racional e razoável, sei que também não posso conciliá-las. Que outra verdade poderia reconhecer sem mentir, sem apresentar uma esperança que não tenho e que não significa nada nos limites de minha condição?

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1. DA HIPÓTESE À TESE: UMA SÍNTESE INTRODUTÓRIA

“Porque en el principio de la literatura está el mito, y asimismo en el fin”.

Jorge Luis Borges, Parábola de Cervantes y de Quijote.

O que se dará de agora em diante será a construção de um mito1, o qual nasceu

e tomou corpo paulatinamente dentro da consciência de quem escreve estas linhas. Ora, quando se delimita uma linha investigativa, escolhe-se o princípio narrativo, “mítico”, que se desenvolverá ulteriormente. No nosso caso, o mito em torno do qual nossa pesquisa se debruçará é a busca do não-eu existente no conjunto romanesco do escritor gaúcho João Gilberto Noll. Nosso esforço consistirá em atacar este leitmotiv por todos os lados, até que o mito ganhe contornos de conhecimento.

Pretendemos dar continuidade às nossas pesquisas, iniciadas em nosso mestrado, sobre João Gilberto Noll. Uma resposta sumária para este intento seria: ampliar e diversificar o referencial teórico, contemplar o conjunto da obra de Noll tendo como “guia” não um teórico ou uma teoria, mas a própria narrativa do romancista, os problemas que ela apresenta nos níveis micro (cada obra isoladamente) e macro (o conjunto das obras). O que visamos não é a uma aplicação mecânica de conceitos ao conjunto da obra de Noll; o propósito é encontrar nos teóricos da narrativa teorizações elucidativas das relações entre narrativa, herói, tempo/espaço, leitor etc.

À primeira vista, a narrativa do romancista gaúcho se apresenta de maneira muito singular: seus narradores são sempre vozes de difícil compreensão, pois o passado, o presente e o futuro surgem não como ordem da narrativa, mas como caminhos da consciência, fomentados ou não pelos elementos externos a ela. Por isso,

as teorizações de Paul Ricoeur e outros mais serão de fundamental importância. 2

A dinâmica do narrador com o tempo e com a experiência relatada são as chaves que utilizaremos para compreender o conjunto da obra de Noll, pois cremos que, ao se

1

Tal como Northrop Frye entende este termo: “Para mim mito quer dizer então e antes de tudo mythos, enredo, narrativa, ou, de modo geral, a ordenação de palavras numa sequência” (2004, p.57). A ordenação que faremos nesta tese é a própria construção de um Noll que é nosso, é fruto de nosso contato com suas obras.

2

Referimo-nos, especialmente, aos livros de Ricoeur: Tempo e Narrativa (2010a, 2010b, 2010c) e também de Benedito Nunes (1973, 1988) e Jean Pouillon (1974).

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entender a lógica de tal relação, perceberemos as consequências ulteriores, os desdobramentos desta voz rarefeita e angustiante que fala nos romances de Noll. Karl Erik SchØllhammer, por exemplo, percebe a reincidência da ênfase no presente,

enquanto possibilidade temporal, em grande parte da geração atual de escritores3,

porém, interessa-nos não só o presente em Noll, mas toda a fruição temporal, pois é precisamente esta relação que evidenciará a tônica existencial do herói.

Preliminarmente, podemos apontar que há uma certa unidade de conteúdo no conjunto romanesco de Noll, mas, por outro lado, há também uma progressiva modificação no modo de narrar, que está ligada à maior ou menor ênfase na experiência do presente (relação direta com seu corpo, com a realidade concreta e com o outro), com o passado (esquecimento, rememoração) e com as possibilidades

abstratas (espécie de desprezo pelo real).

Estes três tempos existirão, adiantando o que desenvolveremos posteriormente, somente enquanto possibilitarem a perda da identidade. Aclaremos: o passado se torna um esquecimento forçoso, necessário para se apagar aquilo que envergonha ou poderia determinar o narrador. O presente se torna o momento em que a consciência e o corpo são tão intimamente percebidos que se torna impossível encontrar algo que identifique os limites do próprio e do outro; há somente a fruição do aqui/agora. O futuro se torna uma possibilidade vaga, onírica muitas vezes, de identidade; logo, uma identidade fluida, incerta, múltipla.

O ato de narrar, em Noll, consiste muito mais em relatar a experiência do real daquele sujeito (o narrador), do que relatar esta experiência a alguém. Não há o compromisso tradicional com o leitor, há, sim, com o próprio narrador: “eu desfaço a obra e vocês a refazem – o melhor possível” (RICOEUR, 2010b, p.42). Daí advém a ausência de trama romanesca na obra de Noll: em todo o conjunto da obra do romancista gaúcho temos uma latente falta de enredo que seja suficiente, em que haja causalidades e efeitos evidentes. A expectativa de “ordem narrativa” é frustrada a todo o momento. A propósito do projeto estético do Nouveau Roman, a estudiosa Zilia

3 Em Ficção brasileira contemporânea, diz o crítico: “Assim, a insistência do presente temporal em vários escritores

da geração mais recente, há certamente uma preocupação pela criação de sua própria presença, tanto no sentido temporal mais superficial de tornar-se ‘ficção do momento’ quanto no sentido mais enfático de impor sua presença performativa” (2009, p.13).

(19)

Schmidt, em seu artigo Aspectos do Novo Romance, resume o que podemos apontar ao “projeto” de Noll: “É nesta perspectiva que o romance se quer um espelho de seus próprios princípios narrativos, diante do qual o leitor é coagido a encontrar, sozinho, as regras do jogo e, deste modo, impelido a participar da produção do texto, numa atividade altamente consciente” (SCHMIDT, 1979, p.149).

Nosso trabalho, assim, parte de uma observação geral do conjunto romanesco de Noll tendo em vista o que singulariza, o que dá o tom a esta voz; por outro lado, cada romance comporta uma construção que não pode ser reduzida totalmente às observações genéricas que citamos anteriormente. Este será nosso objeto, objeto em movimento, que só existe nesta fluidez dialética, que pode nos escapar pelo vão dos dedos, mas que tentaremos captar.

Talvez uma explanação dos motivos que guiaram nosso ímpeto inicial possa não só aclarar, mas preparar o leitor desta tese para seus desdobramentos. Em nossa

dissertação de mestrado4, expusemos algumas premissas que pretendemos

desenvolver nesta tese. Podemos citar alguns pontos consolidados em tal trabalho, tais como: o narrador visto de dentro, por meio do conceito de exotopia de Mikhail Bakhtin, nos possibilitou compreender a voz rarefeita (com excedente de visão assumidamente limitado), o que resulta em uma desidealização total das relações. Esta relação entre autor-criador e seu herói será o nosso ponto de partida para compreender tudo quanto a narrativa nos propor.

Também podemos elencar outros temas que abordamos em nossa dissertação e que merecem aprofundamento: agora no plano do conteúdo, o sexo, enquanto relação mais material possível com o outro nas obras de Noll, é a consequência de uma relação desidealizada, oriunda de um excedente de visão que não é capaz de proporcionar um conhecimento profundo do outro; o prosaísmo das relações (a desidealização, a ausência de hierarquias entre os sujeitos); a realidade material do homem explorada até o seu limite; o corpo enquanto produtor de sentido ao invés de exclusivamente receptáculo de fluidos externos (o corpo grotesco se converte na estética mais adequada para esta representação). Em suma, um sujeito que,

4

João Gilberto Noll e o apelo prosaico. Dissertação defendida em 2010, na Universidade Federal do Paraná. (Ver bibliografia).

(20)

desprovido de qualquer sublimação, se vê somente com seu corpo e sua consciência, com a pura materialidade. Sendo assim, leva esta condição até às últimas consequências, as quais desencadearão, nos romances mais recentes, em uma idealização que poderemos chamar de “platônica”. O movimento grotesco, que vemos em evolução na obra do escritor gaúcho, de materialização/desmaterialização surge nas últimas (até o momento) obras de Noll como possibilidade de transcendência desta condição estritamente materialista. Todas estas características específicas superam a mera condição de estilo e se confluem tornando-se coerentemente a forma mais adequada para se representar o corpo grotesco e o sujeito prosaico, como

denominamos em nossa dissertação. Este processo de

materialização/desmaterialização deverá aparecer, neste trabalho, como resultado das modificações na e da narrativa de Noll.

Logicamente, a obra de Noll não trata somente desta representação, mas partindo da análise da criação do sujeito que fala nos romances em questão, ou seja, o centro do círculo hermenêutico, chegaremos aos aspectos característicos da superfície das obras do romancista gaúcho, que são determinados desde dentro, na própria relação do autor implicado com seu herói.

Demos apenas exemplos preliminares de como este sujeito, em Noll, busca sempre um esfacelamento da própria identidade. Tudo quanto possa identificar minimamente o narrador a algo que o determine de alguma forma é colocado de lado, em prol de uma afirmação do não-eu, daquilo que o dissolva no outro e no nada. O estudo da obra de João Gilberto Noll nos permitirá, na escrita da tese, precisar, ampliar e aprofundar nossas percepções tão só mencionadas por ora.

Como já adiantamos, nossa base teórica se conformará a partir do que a própria narrativa de Noll apresente como desafio de compreensão. Encontramos, assim, na narratologia, auxiliada por ilações filosóficas, uma linha exegética adequada para nossos fins: elucidar narrativas que são cada vez menos narradas, como na fórmula de Adorno: “não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração” (2008, p.55).

“O tempo existe na coisa narrada” (2010a, p.26), diz Ricoeur; o narrador de Noll utiliza esta máxima para determinar, desde dentro, a própria existência da coisa. Isto é,

(21)

o mundo narrado é o mundo que o narrador visualiza em sua consciência, antes de tudo, pois, depois, o mundo visualizado é o que pode surgir na narração. Também o mundo das possibilidades é levado até às últimas consequências, o simulacro se converte em referente de um novo real, por mais contraditório que pareça. Perceber a relação com o tempo no conjunto da obra de Noll é perceber a própria relação com a realidade, que progressivamente vai mudando internamente, afinal, “no romance há sempre um relógio” (1969, p.22), diz E. M. Forster. Também o estudioso Jean Pouillon, em seu O tempo no romance, estabelece assim a relação direta que há entre ser e tempo nos romances: “os personagens são vistos no tempo, mas este é mais do que o lugar dos mesmos: descrever esse tempo é revelar os personagens” (POUILLON, 1974, p.23).

Desta maneira, temos, obviamente, três tempos possíveis na representação do sujeito dos romances de Noll: o tempo rememorado, o tempo da experiência e o tempo da probabilidade (a análise de todas as obras de Noll demonstrará a progressão e a inter-relação destes três tempos). O que define, muitas vezes, em qual tempo a narração se encontra é a entonação do discurso. No entanto, como sabemos, a entonação só é percebida por um terceiro, ela não vem explícita no texto, logo, o leitor é o encarregado de reconstruir estes tons temporais que dão vida às coisas narradas, pois, como diz Paul Ricoeur: “O texto é um conjunto de instruções que o leitor individual ou o público executam de modo passivo ou criativo. O texto só se torna obra na interação entre texto e receptor” (RICOEUR, 2010a, p.132).

Há uma manipulação do tempo por parte do narrador, que fica justificada quando analisamos a própria criação deste personagem. Estamos nos referindo ao modo como se relaciona o autor-criador (implicado) e o herói. É esta relação do narrador com o tempo e com as coisas do mundo que se define desde dentro e não o contrário. Trata-se de um momento importante para que analiTrata-semos, pois pensamos que Trata-seja a resposta romanesca às perguntas que Alfredo Bosi (1988) levanta num interessante ensaio sobre interpretação:

Como falar, metapoeticamente, de uma formação que é lírica? Como falar, metanarrativamente, de uma formação simbólica que é romanesca? Como falar, metadramaticamente, de uma formação simbólica que é trágica? Estas são as perguntas a que a interpretação do texto precisa responder, não uma vez por

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todas, pois o risco de um a priori normativo seria grave, mas cada vez que o enigma do símbolo se propõe ao Édipo chamado a decifrá-lo (p.285).

Se Bakhtin considera que na análise romanesca é fundamental a reflexão sobre “o homem que fala e seu discurso” (1998), para analisarmos a voz deste narrador problemático, que é o de Noll, faremos uso do conceito bakhtiniano de exotopia - fundamental para a compreensão deste teórico - o qual trata da relação entre o autor-criador e seu herói. No nosso trabalho de mestrado este conceito já se mostrou útil ao detectarmos que o modo de se ver de dentro o herói afeta de maneira significativa toda a ação romanesca.

Motivo de reflexão aprofundada em cada romance do autor gaúcho será este narrador que não está disposto a narrar uma história, mas de vivê-la, experienciá-la. Um narrador que implode sua onisciência, em especial, ao utilizar o esquecimento, as lacunas, como elementos da narração. Neste sentido, o narrador de Noll não o é nos moldes tradicionais. Ele é muito mais uma voz que testemunha o seu organismo psicofísico, é a consciência da consciência. Esta voz, num primeiro nível, descreve a realidade concreta vista por seus olhos, depois, descreve a consciência que assimila esta realidade, e, por fim, relata o movimento da consciência que rememora algo a partir daquela primeira contemplação da realidade.

Ora, a narrativa de Noll vai se tornando cada vez mais realista, não na representação do real, mas na vivência do real, o que não deixa de ser um modo experimental de se representar o sujeito. Para fundamentarmos esta afirmação, será necessário que reflitamos profundamente sobre a relação do homem com o tempo e com sua experiência. Logicamente que não é uma vivência, no sentido restrito do termo, pois há um texto e não sujeitos diante do leitor, no entanto, quanto mais se aproxima do que a consciência efetivamente realiza no processo da experiência, nos aproximamos da linguagem simbólica, da ausência de discursos para a entrada do símbolo. Deparamo-nos com a fronteira do humano, com a incapacidade de se narrar alguns fatos e sentimentos humanos.

O conjunto da obra de Noll ao qual nos referimos é composto de doze romances cronologicamente dispostos: A fúria do corpo (1981), Bandoleiros (1985), Rastros do

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(1993), A céu aberto (1996), Berkeley em Bellagio (2002), Lorde (2004), Acenos e

afagos (2008), Anjo das Ondas (2010) e Solidão Continental (2012).

O argentino Borges, para tratar dos maiores escritores e livros5, apropria-se da

imagem criada por R. W. Emerson, segundo a qual os grandes escritores se encontram em uma sala, e que precisamos acessá-la para que dialoguemos com eles. Da nossa parte, imaginamos que são várias as salas e que os grandes nomes estão irmanados de acordo com suas afinidades, suas dúvidas existenciais. Em uma mesma sala estarão junto a Noll escritores como Albert Camus, Samuel Beckett, Julio Cortázar, Clarice Lispector, Franz Kafka entre outros. Há um ambiente comum entre estes espíritos, um céu sufocante os comporta. Deste modo, “dialogar” com estes outros nomes será um modo de visualizar os problemas de Noll por óticas comuns. Afinal, como diz René Girard: “os romances se esclarecem uns aos outros” (GIRARD, 2009, p.70).

Cabe acrescentar que esta tese será apresentada conforme ela nos foi concebida virtualmente, ou seja, de cima para baixo, da abstração do conjunto da obra em direção à concreção das obras dispostas em quatro grupos: Pais e espelhos

miméticos, Máscaras do eu, Em busca de fusão e Andróginos. Contudo, da

esquematização programática adequada à execução bem-fadada, há um esforço de atenção, um empreendimento rigoroso, que não está imune a falhas. Entre a hipótese e a tese há um espaço significativo destinado à demonstração, à evidenciação, ou, como dissemos no início, à construção do mito. Esperamos que sejamos capazes de por em luz meridiana o que se oculta, por ora, em pensamentos mais profundos.

Eis o que se seguirá.

5

Em El libro, palestra dada à Universidad de Belgrano, Argentina, transcrita em Borges Oral de suas Obras

(24)
(25)

CAPÍTULO I

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1. A configuração do herói

“Quantos véus, que escondem a face do ser mais próprio,

que parecia perfeitamente familiar, não precisamos, do mesmo modo, levantar, véus depositados nele pelas

casualidades de nossas reações, de nosso

relacionamento com ele e pelas situações da vida, para ver-lhe o rosto em sua verdade e seu todo”

Mikhail Bakhtin, Estética da criação verbal, pp.26-7.

Como adiantamos na introdução deste trabalho, interessa-nos, para pensarmos na configuração do herói de Noll, uma relação profícua e complexa desenvolvida por Mikhail Bakhtin em seu livro Estética da Criação Verbal (2003), no famoso capítulo “O

autor e o herói”.6 As teorizações do pensador russo nos servirão para compreender

todas nossas ulteriores observações e, em especial, a questão do não-eu. No ensaio já citado de Alfredo Bosi, conclui o crítico brasileiro dizendo que: “Refazer a experiência simbólica do outro cavando-a no cerne de um pensamento que é teu e é meu, por isso universal, eis a exigência mais rigorosa da interpretação” (BOSI, 1988, p.287). Eis o que buscaremos a partir de agora.

A relação entre autor e herói de que trataremos é a visão ativa que temos do herói percebido como um todo (se é que esse todo é possível em Noll) pelo autor implicado nesta equação estética - enquanto única fonte de energia produtora das formas contidas no texto. Jean Pouillon diz que a própria compreensão romanesca não pode prescindir de uma reflexão autor-herói:

É duplo o problema da compreensão romanesca: de um lado, qual será a posição do autor com relação aos seus personagens? Por outro lado, qual será a natureza daquilo que essa compreensão chega a alcançar? Essas duas questões não podem ser isoladas, visto como a posição adotada por quem se dispõe a

6

É imprescindível que, desde o início, deixemos claro que o “autor” de que Bakhtin trata é o autor-criador, não havendo qualquer relação com o homem-autor. Bakhtin esclarece que “o autor nada tem que dizer sobre o

processo de seu ato criador, ele está por inteiro no produto criado, e só pode nos remeter à sua obra; e é, de fato,

apenas nela que vamos procurá-lo” (2003, p.27) (grifos nossos). Isto porque o autor não viveu a obra, ele viveu o herói. Obviamente que o homem-autor se torna relevante nesta equação na medida em que o elemento biográfico é mais ou menos importante ao princípio produtor de formas da obra em questão. À guisa de justificativa, adiantamos que citaremos sobejamente o homem-autor João Gilberto Noll, em entrevistas e depoimentos, com o intuito tão somente de ilustração, sem impor autoridade superior a este em detrimento de outros estudiosos do autor-criador Noll.

(27)

compreender é comandada por aquilo que ele se dispõe a compreender (POUILLON, 1976, pp.52-3).

Quando se analisa o conjunto romanesco de Noll, é possível falar em “herói”, no singular, porque, com algumas ponderações, percebe-se que a voz que fala em todos os romances de Noll é a mesma. Noll já assumiu por diversas vezes que esta voz que fala é o mesmo “sujeito” dentro de si:

Não programo, mas anos atrás me dei conta que é sempre o mesmo protagonista. Sempre o mesmo. Não há sequência explícita. Em um livro pode ser escritor, em outro ator – amo o trabalho dos atores, essa possibilidade de ser outro, em meus livros trabalho muito com essa ideia, esse desejo de ser outro (NOLL, 2009).7

É “o princípio criador existente na relação do autor com o herói” (BAKHTIN, 2003, p.29) que buscaremos evidenciar neste primeiro momento, pois se trata do que

sustentamos nesta tese como sendo o princípio do não-eu, do não-ser, do meon8. É por

meio deste princípio que o herói de Noll é construído, em que pese a ideia demasiadamente concreta que este verbo evoca.

Recorremos a este ensaio de Bakhtin porque ele pauta cada elemento formal e conteudístico que é determinado anteriormente pelo princípio existente em determinada obra. E como seria de outra forma, uma vez que o princípio de qualquer ente é o que antecede, em todos os aspectos, a qualquer ser ou criação do homem?

Nesta relação entre autor implicado e herói, Bakhtin, um tanto quanto prescritivo, determina o alcance da visão de cada um: “O autor sabe e vê mais que ele (o herói), não só na direção do olhar de seu herói, mas também nas outras direções, inacessíveis ao próprio herói; é esta precisamente a postura que um autor deve assumir a respeito de um herói” (BAKHTIN, 2003, p.34) (grifo nosso). Salientamos o acento normativo do verbo “dever” aplicado pelo russo, pois nos romances de Noll não encontramos, em

função do próprio princípio criador presente, tal onisciência do autor9. E aqui vale a

pena citar o próprio João Gilberto Noll dizendo sobre esse processo:

7

Entrevista dada, em língua espanhola, ao Centro de literatura aplicada de Madrid. (Será sempre tradução nossa).

8 Do negativo grego mé on ; meon: o que não é ser. Cf. Dicionário de filosofia, de Nicola Abbagnano,

2012.

9

É bem verdade que Bakhtin está pensando em descrever o processo de uma objetivação estética, de maneira que quanto mais exotópica a relação entre autor e herói for, mais objetivamente o herói se mostrará ao autor.

(28)

Realmente eu procuro me afastar desse aspecto programático... Eu trabalho muito com o inconsciente. Minha maneira de escrever é extremamente compulsiva. Eu nunca sei onde vou chegar, não faço questão de saber. Inclusive, eu parto de manchas, imagens muito rarefeitas, percebe? (NOLL, 1990, p.289)10. Bakhtin esclarece que a visão do herói deve ser inacabada, incompleta, rarefeita, para permitir que haja narrativa, pois do contrário “se eu mesmo sou um ser acabado e se o acontecimento é algo acabado, não posso viver nem agir; para viver, devo estar

inacabado, aberto para mim mesmo” (2003, p.33) 11. Ora, é aí que Noll encontra o

“impossível” e faz com que o autor viva no inacabamento também, convertendo a própria narrativa numa extensão, limitada e rarefeita, proporcionada pelo herói. Estamos em absoluta contingência; sem previsão de nada, apenas visão. A personagem G.H., uma das influências mais perceptíveis na obra de Noll, no mesmo tom dirá: “Mas por que não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade” (LISPECTOR, 2009, p.11).

Fica claro que Bakhtin busca evidenciar que este distanciamento (ou não) do autor implicado com seu herói é o que define toda a posterior relação do herói com o mundo e com o outro. Este distanciamento, chamado por Bakhtin de exotopia, nem sempre ocorre, e novas possibilidades representativas são vislumbradas. O pensador russo elenca três casos possíveis para a posição do autor diante do herói.

Interessa-nos para os fins desta tese aprofundar sobre o caso em que o “autor fica sob o domínio do herói”, pois em Noll ocorre precisamente isto. Só temos acesso ao que os sentidos e a consciência do herói presenciam. Exemplos ilustrativos ocorrem nos romances Hotel Atlântico (2004a) e Acenos e afagos (2008), nos quais os heróis-narradores morrem. Obviamente, o leitor não tem acesso a mais nada após isso, e os romances acabam no momento fatídico, pois “o herói não fica voltado para nós, só o vivemos de dentro dele” (BAKHTIN, 2003, p.39). A morte é um evento para o outro,

10Em Depoimento prestado no Instituto de Estudos da Linguagem – IEL – UNICAMP. Este material se encontra todo

reunido na valiosa e pioneira dissertação de Maria Flávia Magalhães: João Gilberto Noll: um escritor em trânsito (1993). Quando citarmos esses depoimentos, a data e paginação serão referentes a esta dissertação.

11Essa característica é apontada em Kafka, com termos muito semelhantes, pelo estudioso Gunther Anders: “o

próprio Kafka não dá pela situação em que eles estão e mal parece saber mais que suas próprias criaturas – um traço extremamente estranho: pois é normal que o autor, diante de suas criaturas, desempenhe a onisciência e a providência” (ANDERS, 1969, pp.54-5).

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não para um eu; logo, o autor de Noll, subordinado ao narrador solipsista, não consegue vislumbrar um mundo possível pós-morte. Albert Camus, em seu Mito de

Sísifo, reflete sobre a questão nos seguintes termos: “Na realidade, não há experiência

da morte. Em sentido próprio, só é experiência aquilo que foi vivido e levado à consciência. Aqui, pode-se no máximo falar da experiência da morte alheia” (CAMUS, 2005, p.29). Como, em Noll, o alheio só é visto pelo eu que narra, não há experiência da morte em seus romances.

Neste caso, em que o narrador de Noll se insere, temos algumas características, citadas por Bakhtin, que notadamente se dão nos romances em análise:

O fundo não é trabalhado, não é visto distintamente pelo autor-contemplador e nos é dado de modo hipotético, incerto, de dentro do herói, do mesmo modo que nos é dado o da nossa própria vida. Às vezes, esse fundo está totalmente ausente: fora do herói e de sua consciência, nenhum elemento está estabilizado (BAKHTIN, 2003, p.39).

É por meio deste princípio gerador que os romances de Noll podem ser tão inconstantes narrativamente. O espaço e o tempo, bem como todo o conteúdo da narrativa, não estão presos a nenhuma lógica extrínseca, mas à ilogicidade não causal de um narrador que procura a todo o momento negar a si mesmo. David Treece, no Prefácio aos Romances e contos reunidos de Noll, indica precisamente esta ilogicidade narrativa vinculando-a à questão identitária por nós analisada: “Não se procura nem se encontrará uma id-entidade estável, essencialista, alicerçada em raízes biográficas que vão se desenvolvendo organicamente por etapas logicamente encadeadas” (TREECE, 1997, p.12). O herói dos romances de Noll ocupa um lugar único, no qual as ações são produzidas com todas as limitações que uma unitopicidade proporciona. É este efeito

que garante a primazia total da voz do herói.12 A verossimilhança romanesca, em Noll,

é a verossimilhança do discurso interior do personagem sobre a realidade e sobre si. Tudo está subordinado ao olhar dele.

12 Benedito Nunes (1973), em célebre estudo sobre Clarice Lispector, sobre as principais características da

romancista - que em muito parecem com as de João Gilberto Noll - diz que certos processos romanescos da autora: “sintonizam com o modo de apreensão artística da realidade na ficção moderna, cujo centro mimético é a consciência individual enquanto corrente de estados ou de vivências” (NUNES, 1973, p.XIX).

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Jean Pouillon, em seu já citado O tempo no romance, teoriza sobre este tipo de relação entre autor e seu herói como “A visão ‘com’”. Trata-se precisamente do mesmo caso que Bakhtin teoriza em seu estudo que ora compulsamos:

Na verdade, estar “com” um personagem é, como vimos, não ter necessidade de descrevê-lo pessoalmente; é fazer-nos ver à sua maneira o mundo em que ele vive, as ações por ele empreendidas; é contar a sua história sem precisar deter-se para analisá-la (POUILLON, 1974, p.128).

O desdobramento óbvio é que vemos a tudo e a todos a partir, com este único personagem. Claro está que este ponto de vista só pode conservar uma extrema parcialidade da realidade e do outro; só sabemos o que é o mundo e o outro através do herói. Ao lado deste truísmo, surge uma observação muito pertinente ao caso de Noll: “Temos aí uma única e mesma característica: já que não nos defasamos com relação a ele (ao herói), não é a ele que vemos e sim aos outros ‘com’ ele” (POUILLON, 1974, p.55). Os heróis de Noll sempre veem sem serem vistos, são sempre homens ocupados demais com suas existências, e que não querem ou não conseguem suportar um olhar acabado sobre si. É sintomático que entre todos os romances de Noll somente em dois,

Berkeley em Bellagio e Anjo das ondas, haja narradores em terceira pessoa; ainda mais

curioso é o fato de que tais narradores alternem com a primeira pessoa constantemente, como se verá quando das respectivas análises.

Jean Pouillon está preocupado em estudar as possibilidades de penetração na consciência de outrem, por isso aponta que este modo de se conceber o outro apresenta-o “numa espécie de sonho” (POUILLON, 1974, p.56). Um sonho que pode aparentar realidade, mas que seguirá com a consistência onírica:

Com isto, não se está portanto pedindo ao romancista que nos apresente hipoteticamente os personagens, mas sim que os apresente como aparições que serão precisadas e penetradas na medida em que ele o desejar, mas que permanecerão sempre como ‘aparições’ para um ‘eu’ (POUILLON, 1974, p.56). No caso específico de Noll, estas precisão e penetração não ocorrerão; ficar-se-á na aparição para um eu. Não à toa, no romance A céu aberto há o “Teatro da Aparição”, que coloca em ação precisamente esta ideia de indefinição identitária.

Se o fato de uma só consciência (a do narrador) ser a voz que fala nos romances de Noll causa uma inerente limitação da objetividade, uma imperfeição, um

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inacabamento, por outro lado, esta condição possibilita a infinita subjetividade de tal consciência. Não há limites para o mundo abstrato, pelo contrário, “minha vivência engloba qualquer fronteira, qualquer corporalidade, ampliando-me mais além de qualquer delimitação, e minha consciência elimina o poder de convicção plástica da minha imagem” (BAKHTIN, 2003, p.59). Ou seja, ao mundo que se apresenta à frente deste herói não lhe é atribuída coerência ou esforço para mais bem representá-lo, mas, sim, busca-se nele um meio a mais para a consciência se ampliar.

Como esta voz fala de si para si, não há necessidade de eufemismos, uma vez que

é acima de tudo de dentro de si mesmo que nunca se tem ‘dodói’, mas se tem ‘dor’. Só posso empregar uma forma hipocorística com referência ao outro, expressando com isso a relação – real ou desejada – desse outro comigo (BAKHTIN, 2003, p.68).

Isto explica, em parte, a rispidez e a crueza da linguagem em muitos momentos deste herói de Noll: “Sou, para comigo, profundamente frio, até em meu instinto de conservação” (BAKHTIN, 2003, p.68).

O russo segue nas ponderações sobre as relações possíveis e necessárias entre eu-outro. No trecho que se segue, podemos perceber e fazer algumas considerações sobre o nosso objeto de estudo:

Essa vida, assim reconstituída na imaginação, será animada pelas imagens finitas e indeléveis dos outros que nela figurarão com toda a sua exterioridade visível, pelos rostos dos que me são próximos, da minha família e mesmo daqueles com quem cruzei ocasionalmente na vida; mas entre elas, não encontrarei minha própria imagem exterior, entre todos esses rostos únicos

faltará meu rosto; o que corresponderá ao meu eu serão as recordações – a

vivência reconstituída, puramente interior de minhas alegrias, de meus sofrimentos, de meus arrependimentos, de meus desejos (...) (BAKHTIN, 2003, pp.77-8) (grifos nossos).

Fica claro que o solipsista, como são os heróis de Noll, terá uma imagem de si que é ao mesmo tempo fragmentada e fragmentária, encontrando uma ancoragem somente no que conserva em sua memória. Mas, como já observamos e desenvolveremos mais adiante, os heróis de Noll fazem questão de esquecer voluntariamente seu passado. Sendo assim, o que resta é uma percepção imediata de si. Este fato proporciona desdobramentos importantes e fulcrais no todo narrativo.

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São estes os traços que definem a perspectiva por meio da qual o herói de Noll visualiza o mundo e o outro. Esta perspectiva é a mais adequada para se representar um herói que deseja e busca a perda de sua própria identidade. Afirmamos isso com certeza apodítica, pois se contrapormos as outras possibilidades de relação entre autor-herói propostas por Bakhtin, veremos que há uma coadunação essencial entre a forma e o conteúdo dos romances de Noll. Façamos esta contraposição para que resulte claro: primeiramente, se o autor possuísse um excedente de visão externo sobre o herói, i.e., se ele conseguisse contemplar o herói à sua frente e o pudesse dar uma definição, mesmo que sem a mirada interna (da consciência), daria a identidade que o herói tanto busca perder. Doravante, veríamos todos os movimentos do herói com o enquadramento espacial, com as fisionomias angustiantes deste personagem, enfim, aquilo que só podemos inferir hipoteticamente sobre o herói que efetivamente encontramos em Noll.

A outra possibilidade seria a de o herói ser o autor, ou seja, temos uma voz que relata acontecimentos já ocorridos, e aí está a diferença fundamental: consigo mesmo.

Tal como Riobaldo ou Brás Cubas (e, com algumas ponderações, Paul Morel13), que

sabem o que narrarão, este herói narra fatos que necessitam de uma identidade bem estabelecida para que suas ações e palavras possam ressoar com algum grau de sentido peculiar.

É assim que confirmamos nossa posição de que para um herói que deseja e busca ser um não-ser (como é o de Noll) a relação difusa entre um autor que está sob o domínio de um herói é a que pode proporcionar um tal grau de indefinição sobre a voz

que fala nos romances.14

Após tecermos estas considerações sobre o modo como esta voz se estabelece diante do outro e do mundo, podemos partir para as análises subsequentes já munidos de subsídios para entender como é possível chegarmos ao fim de cada romance de

13Personagem emblemático de O caso Morel, de Rubem Fonseca. 14

Citamos, novamente, Benedito Nunes ao descrever as protagonistas de Clarice, que, com outros termos, dá a mesma ideia do que acabamos de expor sobre Noll: “O papel da protagonista, tanto em Perto do Coração Selvagem como em O Lustre, excede a função de um primeiro agente, que apenas conduz ou centraliza a ação. Ela é origem e o limite da perspectiva mimética, o eixo através do qual se articula o ponto de vista que condiciona a forma do romance como narrativa monocêntrica, isto é, como narrativa desenvolvida em torno de um centro privilegiado que o próprio narrador ocupa” (NUNES, 1973, p.13).

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Noll sem possuir uma imagem, sem encontrarmos uma causalidade inicial e impossibilitados de imaginar um epílogo. Para contrapormos ao que encontramos em Noll, citamos Milan Kundera, que resume a causalidade representada nos romances clássicos assim:

Da matéria estranha e caótica da vida, os antigos romances tentaram abstrair o fio de uma límpida racionalidade; em sua óptica, o motivo racionalmente tangível faz nascer o ato, esse provoca um outro. A aventura é o encadeamento, luminosidade causal, dos atos (KUNDERA, 2009, p.60).

Paul Ricoeur, analisando as principais cisões que o romance moderno proporcionou à noção de intriga aristotélica, localiza na tragédia elisabetana um momento crucial para a reanálise desta luminosidade causal:

Essa transição do Apocalipse para a tragédia elisabetana abre caminho para expormos uma parte da cultura e da literatura contemporânea em que a Crise substitui o Fim, em que a Crise se tornou transição sem fim. A impossibilidade de concluir torna-se assim o sintoma da infirmação do próprio paradigma. É no romance contemporâneo que percebemos melhor a junção dos dois temas: declínio dos paradigmas e, portanto, fim da ficção – e a impossibilidade de concluir o poema e, portanto, ruína do fim (RICOEUR, 2010b, p.41).

É nesta ruína do fim que se insere a narrativa de Noll. Particularmente elucidativo, neste sentido, é o famoso ensaio de Theodor Adorno (2003): “Posição do narrador do romance contemporâneo”, publicado originariamente em 1954, o qual reflete agudamente sobre muitas questões que iluminam a configuração do herói que demos há pouco.

Adorno, marxista frankfurtiano que é, analisa os fenômenos culturais a partir do prisma do que chama de “indústria cultural”, isto é, pelos mecanismos que envolvem o

processo de criação e consumo dos bens culturais15 em tempos de predomínio

capitalista. O pensador alemão, no ensaio citado, está detectando na literatura os desdobramentos de uma cisão fundamental que a história vem verificando: o mundo não se apresenta mais de maneira segura e clara ao espectador. A história da filosofia dos últimos séculos demonstra o amadurecimento gradual desta constatação que levou o sujeito a duvidar de si e daquilo que seu aparelho sensitivo lhe apresenta. Num outro

15

São muitos os trabalhos que analisam a obra de Noll desde esta perspectiva. A maior referência segue sendo

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ensaio, Adorno reflete sobre a “ingenuidade épica” não mais possível no mundo do romance, ou no mundo (que é o nosso) em que o romance impera. Também Lukács havia marcado muito bem esta diferença em sua Teoria do Romance.

Adorno começa descrevendo a situação paradoxal do narrador desta época, em que o ceticismo sobre o olhar que vê o mundo é maximamente presenciado, mas que, ainda assim, deve narrar algo: “Ela (a posição do narrador) se caracteriza, hoje, por um paradoxo: não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração”

(ADORNO, 2003, p.55)16. Mesmo em romances desbravadores e experimentais como

UIisses, de Joyce, e Rayuela, de Cortázar, em que o elemento simbólico desafia a

linguagem discursiva, a narração ainda é necessária. Em Noll, indubitavelmente há este

drama. Quando o escritor gaúcho diz que “busca o impossível na literatura”17, ele está

tratando precisamente deste dilema. David Treece, percebendo esta característica em Noll, localiza o escritor gaúcho em uma tradição de ruptura com certa linha romanesca, predominante no romance de 1930:

Ao incorporar dessa forma na estrutura da narrativa a própria dinâmica do real que ele quer ver superada, para deixar vislumbrar dialeticamente a sua possível negação, Noll se coloca numa tendência literária contrária à tradição hegemônica da década de 30. Esta tomava por pressuposto a realização da identidade-sujeito num ponto culminante do movimento narrativo, ou via sua recuperação genealógica nas origens históricas, ou através da sua formação crescente conforme ia se projetando num futuro, por vezes utópico e cada vez mais próximo (TREECE, 1997, p.12).

Treece toca na relação fundamental entre narrativa e identidade, em como a impossibilidade daquela afeta esta. Consequentemente, ao afirmar que nesta época não se pode narrar, Adorno não está sendo ingênuo, muito pelo contrário, está diagnosticando que os moldes narrativos, presos a qualquer tipo de ideal de objetividade, não se sustentam numa época como a nossa em que não só a noção de

objeto, mas, principalmente, a de sujeito vem sendo rediscutida e ponderada. O mundo

objetivamente captado era o mundo que fazia sentido; o mundo de que trata Adorno, e que podemos analogar a Noll, não o faz mais. É precisamente este drama que G.H.

16 No plano existencial, a protagonista Winnie, da peça Dias felizes, de Samuel Beckett, reflete sobre esta

impossibilidade que precisa ser enfrentada: “Não posso fazer mais nada. (Pausa) Dizer mais nada. (Pausa) Mas preciso continuar. (Pausa) Problema aqui. (Pausa)”. (BECKETT, 2010, p.61).

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sente tão agudamente: “Não tenho uma palavra a dizer. Por que não me calo, então? Mas se eu não forçar a palavra a mudez me engolfará para sempre em ondas”

(LISPECTOR, 2009, p.18).18

Benedito Nunes, afetado pela leitura deste texto de Adorno, aponta estas mesmas características naquela grande influência de Noll:

É sob este aspecto que a obra de Clarice Lispector, assim lida globalmente, se reveste de uma importância exemplar – e consequentemente de um valor indiscutível – como paradigma do esvaziamento que se produziu na ficção contemporânea. Temendo cair na ‘mentira’ da narração, o ficcionista dos nossos dias, que passou a desconfiar de si mesmo, e que procura opor às significações objetivadas do fluxo da linguagem, também esvaziou o próprio objeto da ficção (NUNES, 1973, pp.153-4).

Serão recorrentes as menções à escritora brasileira nesta tese. Contudo, devemos advertir o leitor que se há pontos de encontro dialógicos propostos por nós, também há diferenças sutis mas fundamentais entre ambos. Por exemplo, a questão identitária proposta por Clarice muitas vezes encontra em certo misticismo (influência evidente da mística cristã) a diluição do eu no geral, no Absoluto – o que em Noll muito raramente se vislumbra, e mesmo assim sem a agudeza de Clarice. Em Clarice, também temos uma “moldura” para que as diluições do eu ocorram, ao passo que em Noll a diluição se inicia in limine. Um trabalho comparativo entre ambos seria profícuo, mas, de nossa parte, ficaremos com a mirada ensaística tão só aproximativa destes dois centros miméticos que resultam em duas cosmovisões.

Trata-se da famosa questão da representação tão vastamente investigada no

último século19. Pensando nisso, o filósofo alemão prescreve que “o romance precisaria

se concentrar naquilo de que não é possível dar conta por meio do relato” (ADORNO, 2003, p.56). De certa forma, o que encontramos nos romances de Noll é justamente este intento. Esta revolta contra a linguagem - feita, paradoxalmente, através da linguagem - impõe ao narrador uma postura de contemplação de um mundo que não é ingênuo, mas sabidamente, conscienciosamente parcial. A experiência do real não está

18

Em diversas vezes, Noll assume a marca indelével deixada por Clarice: “Eu tinha vinte e poucos anos quando A

paixão segundo G.H. foi lançado. E esse livro foi definitivo e definidor para mim. Então pensei: se ela fez isso, por

que eu não posso tentar fazer também um romance abstrato?” (2013, p.10). Entrevista concedida ao Jornal

Candido.

19

Neste sentido, a tese de Pascoal Farinaccio, A questão da representação e o romance brasileiro contemporâneo (2004), foi-nos aclaradora.

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mais sob o domínio pleno de certa figura autoral ou do narrador, pois, se assim estivesse, soaria demasiadamente anacrônica para os nossos dias. Sendo assim, a configuração do herói, que expusemos nas últimas páginas, converge com a discussão proposta por Adorno.

Com tom um tanto quanto prescritivo, Adorno toca na questão deste novo realismo que se vislumbra:

Se o romance quiser permanecer fiel à sua herança realista e dizer como realmente as coisas são, então ele precisa renunciar a um realismo que, na medida em que reproduz a fachada, apenas a auxilia na produção do engodo (2003, p.57).

Eis a diferença entre reproduzir a fachada e ser consciente de que o existente é uma fachada, logo, parte-se desta constatação e narra-se despreocupadamente se a narração é somente fachada ou fantasia decorrente da fachada.

Em seguida, o filósofo alemão faz uma sugestiva observação que merece nota: “Na transcendência estética reflete-se o desencantamento do mundo” (ADORNO, 2003, p.58). Ou seja, é inversamente proporcional a relação entre transcendência estética e desencantamento. Se pensarmos na relação eu-outro em todos os romances de Noll, chegaremos à conclusão de que essa relação está intimamente presente. O sexo é o meio pelo qual a transcendência ocorre; os limites do eu e do outro são implodidos durante a relação sexual. Em alguns romances de Noll (A céu aberto e Acenos e afagos talvez sejam os principais exemplos), inclusive chega-se ao ponto de haver uma desmaterialização do herói. As formas deste narrador são transformadas em outras, dando a ideia de que não interessam as leis físicas, ou outras, deste mundo de desencanto, de fachada.

Finalizando o ensaio, Adorno diz que “o sujeito literário, quando se declara livre das convenções da representação do objeto, reconhece ao mesmo tempo a própria impotência, a supremacia do mundo das coisas, que reaparece em meio ao monólogo” (2003, p.62). O que é a narrativa de Noll senão uma afirmação desta impotência? Por tudo que expusemos no início deste item, podemos afirmar que a voz que fala nos romances de Noll é configurada com vistas àquilo que é limitadamente possível, em todos os sentidos.

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Neste momento, é fundamental que façamos algumas considerações sobre o romance moderno (ao qual Adorno dedica sua atenção), historicamente tomado, e suas

marcas distintivas com relação ao m trágico aristotélico - definido como “imitação

de uma ação” pelo iminente crítico Paul Ricoeur - predominante até o período moderno com uma interpretação estreitada.

Para tais considerações, seguiremos o périplo proposto pelo filósofo francês no segundo volume de seu Tempo e Narrativa (2010b). Ao compreendermos aquelas marcas às quais fizemos alusão, preparamos o leitor para a obra de Noll, uma vez que nela encontramos exemplos perfeitos do que ora exporemos.

Ricoeur começa dizendo que a

composição da intriga (m ) foi definida, no plano mais formal, como um dinamismo integrador que tira uma história una e completa de uma diversidade de incidentes, ou seja, transforma essa diversidade em uma história una e completa (RICOEUR, 2010b, p.12).

Sendo assim, a influência desta concepção de intriga afeta o olhar do romancista para o objeto a ser representado, tornando-o uno, coerente, coeso, acabado.

No entanto, o gênero romance é avesso ao acabado, ao coeso: “O romance moderno, efetivamente, anuncia-se desde o nascimento como o gênero proteiforme por excelência” (RICOEUR, 2010b, p.13). Foi ele, por muito tempo, “um canteiro de experimentações no domínio da composição e da expressão do tempo” (RICOEUR, 2010b, p.13). Não há nenhum gênero que tenha se demonstrado tão aberto à entrada dos demais gêneros à sua própria composição, à orquestração de vozes dos personagens e do mundo que o abarca. O romancista e crítico literário E. M. Forster usa uma imagem muito móvel para simbolizar esse gênero: “é uma das áreas mais úmidas da literatura – irrigada por uma centena de riachos, degenerando-se ocasionalmente num pântano” (FORSTER, 1969, p.3).

Sendo o romance proteiforme, há um processo evolutivo mais ou menos detectável. Ricoeur aponta três desenvolvimentos do romance que eclipsaram a noção de intriga, com o intuito de negá-la. Para negar a intriga, o caráter do personagem foi expandido, aprofundado. Primeiramente, influenciado pelo romance picaresco, os altos feitos, os contornos épicos do herói foram substituídos por uma atmosfera comum, prosaica. Em segundo lugar, o caráter se aprofunda ainda mais com o gênero do

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bildungsroman, o romance de formação. Neste gênero, a ênfase recai sobre a tensão

entre “complexidade social e complexidade psicológica” (RICOEUR, 2010b, p.15), isto é, o caráter do personagem central é onde se dão os conflitos dramáticos. Num terceiro momento, o fluxo de consciência, que Virginia Woolf e James Joyce muito bem ilustraram, marca a definitiva e irretornável complexificação da consciência do personagem central. O eu se subdividiu em extratos cada vez mais antagônicos, a consciência começa a ser substituída pela ou acrescentada à inconsciência. Aquele eu que narrava de maneira segura, pretensamente objetiva, passa a estabelecer a dúvida sobre seu próprio narrar. Pergunta Ricoeur: “Pode-se ainda falar de intriga, quando a exploração dos abismos da consciência parece revelar a impotência da própria linguagem em se reunir e tomar forma?” (RICOEUR, 2010b, p.16). As observações de Adorno sobre o narrador moderno, analisadas ainda há pouco, ecoam exatamente neste panorama de revolução composicional no qual o romance moderno se insere. O sujeito que antes narrava com segurança, agora, começa a duvidar do material e da forma verbais que davam corpo à narrativa.

Por mais que com estas tentativas de negação da intriga o romance tenha se desenvolvido enormemente, o princípio que subjaz no conceito de intriga aristotélico se mantém, evoluído, mas ainda é o mesmo: “Nesse sentido, o romance moderno nos ensina a expandir a noção de ação imitada (ou representada)” (RICOEUR, 2010b, p.17). Tais movimentos do romance resultaram em um deslocamento da ênfase da ação: do mundo físico para o mundo psicológico. Assim, o conceito de ação se tornou cada vez mais sutil e complexo. É também sobre toda esta reflexão que Joyce compôs seu Ulisses colocando Bloom no papel de um Ulisses refigurado, romanceado, isento da “ingenuidade épica”, no dizer de Adorno.

São “epopeias negativas”, na linguagem adorneana, romances em que este narrador atua “são testemunhas de uma condição na qual o indivíduo liquida a si

mesmo, convergindo com a situação pré-individual no modo como esta um dia pareceu

endossar o mundo pleno de sentido” (ADORNO, 2003, p.62) (grifos nossos). São com esses grifos que entramos no próximo item.

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2. Perdendo a identidade

“Mas como adulto terei a coragem infantil de me perder?

perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando”.

Clarice Lispector, A paixão segundo G.H., p.11.

É fundamental que dediquemos algumas páginas a um prolegômeno que dê conta do queremos dizer com a expressão que deu título à presente tese. Comecemos por definir nosso impulso inicial e posteriormente sua respectiva conceituação.

Num trabalho desta monta, foi necessário estabelecer uma contemplação de todos os romances e encontrar o nexo, o logos analogante, aquilo que há de “nolleano” (se nos é permitida tal adjetivação) enquanto estrutura essencial de cada romance. O que buscaremos é a demonstração de que tal logos analogante é a perda da identidade do sujeito que fala em cada romance; uma busca incessante por negar a identidade deste herói.

Cumpre observar que a questão identitária de que nos ocupamos não é totalmente inédita, uma vez que alguns estudiosos também perceberam este esfacelamento do eu na obra de Noll. Contudo, nenhum estudo localizou neste não-eu o princípio, a causa a partir da qual os demais elementos da narrativa são entendidos. Tais trabalhos, normalmente, apontam a questão da perda identitária de maneira lateral, não sistematicamente como fazemos, tampouco buscando compreender o fenômeno desde o ponto de vista ontológico, que, como se verá, foi o que nos interessou. Dentre os críticos que reconhecem e descrevem o esvaziamento dos heróis de Noll, citaremos dois à guisa de exemplo: David Treece, no Prefácio dos Romances e contos reunidos (1997), e Edu Teruki Otsuka, em Marcas da catástrofe: experiência urbana e indústria

cultural em Rubem Fonseca, João Gilberto Noll e Chico Buarque (2001).

Treece, no Prefácio supracitado, começa indicando a dimensão utópica do intento de Noll, ao buscar colocar seus heróis sempre esperneando-se diante de um

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mundo que busca reificá-lo. No entanto, o que vemos em Noll, segundo Treece, é que o intento dos heróis nem sempre se cumpre:

vai-se logo de encontro à prisão das palavras e das máscaras culturais, ao esvaziamento e à padronização da linguagem e das identidades massificadas, cujo efeito, em Bandoleiros ou Hotel Atlântico por exemplo, é a sensação de ficarmos eternamente representando papéis gastos e postiços tirados de uma novela de segunda (TREECE, 1997, p.9).

Se por um lado alguns heróis de Noll, de fato, exemplificam esta massificação identitária que os dilui (Bandoleiros, Hotel Atlântico e Harmada são amostras evidentes), por outro, o fato de estes heróis escolherem se massificar, terem a clara consciência dos papéis aviltantes e, por vezes, “pastelões” que encenam, é a evidência de que há alguma liberdade interna neles, algo que nenhum regime econômico consegue determinar totalmente. Treece e Otsuka, de quem trataremos a seguir, salientam a passividade do herói diante da mercantilização das relações interpessoais e simbólicas; de nossa parte, buscamos evidenciar a atividade dos protagonistas neste mundo representado que, indubitavelmente, é influenciado pelas questões apontadas por ambos os estudiosos, mas, e aqui se encontra nossa tese, não se resume a elas.

Edu Teruki Osuka (2001), desde um ponto de vista marxista inclinado para a Escola de Frankfurt, analisa o romance de Noll em perspectiva com a indústria cultural, mostrando como, em consonância com o que ocorria no mundo (e acentuado pelos meios repressivos impingidos pela Ditadura brasileira), a vida na metrópole afeta o

modo de e o que se narra nos três romances citados no título do livro. No que concerne

à análise da obra de Noll, Otsuka toca em praticamente todas as questões que desenvolvemos em nossa tese: a estética fragmentária, a sensação de estrangeiridade dos heróis de Noll, a ausência de sentido existencial, a forte presença do presente como tempo da narrativa etc. Contudo, gostaríamos de comentar a respeito do nosso mote, do ponto nevrálgico de nossa tese, e que é fruto de elucubrações também de Otsuka. Se o analista igualmente percebe a questão do não-eu nos romances de Noll, centrando sua exegese sobre Rastros do verão, a perspectiva desde a qual sua interpretação ilumina o romance não se parece com a nossa.

Teruki, como foi dito há pouco, observa praticamente todos os elementos que elencamos em páginas anteriores e a seguir em nossa tese, mas convém assinalar as

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diferentes hipóteses que se colocam como causas para tais fenômenos. O estudioso aponta a “centralidade do consumo como intermediário nas relações entre os personagens” (OTSUKA, 2001, p.126), uma vez que os personagens são reificados e só podem estabelecer trocas de mercadorias, ao invés de verdadeiras relações humanas. Otsuka vê nesta alienação produzida pela indústria cultural a causa, o princípio gerador das formas que encontramos em Rastros do verão (e, por extensão, à obra de Noll publicada até aquele momento):

O esvaziamento da interioridade faz com que o personagem torne-se estranho a si mesmo. Não só os objetos – estranhos e sem vida – tornam-se coisas desprovidas de sentido humano, mas também os próprios seres humanos, incluindo o protagonista, parecem desumanizados: simples coisas mortas movendo-se num cenário morto (OTSUKA, 2001, p.112).

O herói esvaziado (leia-se: que sofre o esvaziamento vindo desde fora) contempla a ausência de sentido, obliterando sua própria humanidade; torna-se “coisa entre coisas”. Otsuka prossegue apontando a relação temporal que se dá a partir do esvaziamento oriundo da reificação:

As imagens (de abandono) remetem à perda da identidade, à ausência de laços estáveis com um passado ou uma origem. O sentimento de não-pertencimento que observamos no narrador é uma sentimento generalizado e sugere a perda da noção de comunidade. Sem passado e com o prenúncio de futuro frustrante que parecem impossibilitados de mudar, os personagens vivem um eterno presente, que experimentam como sendo vazio, inóspito e opressivo (OTSUKA, 2001, p.118).

Se compreendemos corretamente o estudioso, Otsuka inverte a ordem da relação entre tempo e sentido existencial. Segundo ele, os personagens vivem no eterno presente e por isso, ou posteriormente pelo menos, experimentam o vazio, o vácuo existencial. De nossa parte, entendemos, e o item A configuração do herói discorre precisamente sobre isto, que é a ausência de sentido, este nada latente, que determina a ação no tempo do herói. É ele quem escolhe viver no presente mediante um niilismo incontinente. Sendo assim, só podemos concordar em partes com esta afirmação que se segue: “O vazio de Porto Alegre espelha o vazio do próprio narrador, que não tem lembranças do passado e não encontra na cidade traços de sua origem, o que indica a perda de identidade. Rastros é o registro da desertificação do Eu e do mundo” (OTSUKA, 2001, p.121). A própria expressão “eu esvaziado” pressupõe que

Referências

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