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Perdendo a identidade

CAPÍTULO I – PARA UMA

2. Perdendo a identidade

“Mas como adulto terei a coragem infantil de me perder? perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando”.

Clarice Lispector, A paixão segundo G.H., p.11.

É fundamental que dediquemos algumas páginas a um prolegômeno que dê conta do queremos dizer com a expressão que deu título à presente tese. Comecemos por definir nosso impulso inicial e posteriormente sua respectiva conceituação.

Num trabalho desta monta, foi necessário estabelecer uma contemplação de todos os romances e encontrar o nexo, o logos analogante, aquilo que há de “nolleano” (se nos é permitida tal adjetivação) enquanto estrutura essencial de cada romance. O que buscaremos é a demonstração de que tal logos analogante é a perda da identidade do sujeito que fala em cada romance; uma busca incessante por negar a identidade deste herói.

Cumpre observar que a questão identitária de que nos ocupamos não é totalmente inédita, uma vez que alguns estudiosos também perceberam este esfacelamento do eu na obra de Noll. Contudo, nenhum estudo localizou neste não-eu o princípio, a causa a partir da qual os demais elementos da narrativa são entendidos. Tais trabalhos, normalmente, apontam a questão da perda identitária de maneira lateral, não sistematicamente como fazemos, tampouco buscando compreender o fenômeno desde o ponto de vista ontológico, que, como se verá, foi o que nos interessou. Dentre os críticos que reconhecem e descrevem o esvaziamento dos heróis de Noll, citaremos dois à guisa de exemplo: David Treece, no Prefácio dos Romances e contos reunidos (1997), e Edu Teruki Otsuka, em Marcas da catástrofe: experiência urbana e indústria

cultural em Rubem Fonseca, João Gilberto Noll e Chico Buarque (2001).

Treece, no Prefácio supracitado, começa indicando a dimensão utópica do intento de Noll, ao buscar colocar seus heróis sempre esperneando-se diante de um

mundo que busca reificá-lo. No entanto, o que vemos em Noll, segundo Treece, é que o intento dos heróis nem sempre se cumpre:

vai-se logo de encontro à prisão das palavras e das máscaras culturais, ao esvaziamento e à padronização da linguagem e das identidades massificadas, cujo efeito, em Bandoleiros ou Hotel Atlântico por exemplo, é a sensação de ficarmos eternamente representando papéis gastos e postiços tirados de uma novela de segunda (TREECE, 1997, p.9).

Se por um lado alguns heróis de Noll, de fato, exemplificam esta massificação identitária que os dilui (Bandoleiros, Hotel Atlântico e Harmada são amostras evidentes), por outro, o fato de estes heróis escolherem se massificar, terem a clara consciência dos papéis aviltantes e, por vezes, “pastelões” que encenam, é a evidência de que há alguma liberdade interna neles, algo que nenhum regime econômico consegue determinar totalmente. Treece e Otsuka, de quem trataremos a seguir, salientam a passividade do herói diante da mercantilização das relações interpessoais e simbólicas; de nossa parte, buscamos evidenciar a atividade dos protagonistas neste mundo representado que, indubitavelmente, é influenciado pelas questões apontadas por ambos os estudiosos, mas, e aqui se encontra nossa tese, não se resume a elas.

Edu Teruki Osuka (2001), desde um ponto de vista marxista inclinado para a Escola de Frankfurt, analisa o romance de Noll em perspectiva com a indústria cultural, mostrando como, em consonância com o que ocorria no mundo (e acentuado pelos meios repressivos impingidos pela Ditadura brasileira), a vida na metrópole afeta o

modo de e o que se narra nos três romances citados no título do livro. No que concerne

à análise da obra de Noll, Otsuka toca em praticamente todas as questões que desenvolvemos em nossa tese: a estética fragmentária, a sensação de estrangeiridade dos heróis de Noll, a ausência de sentido existencial, a forte presença do presente como tempo da narrativa etc. Contudo, gostaríamos de comentar a respeito do nosso mote, do ponto nevrálgico de nossa tese, e que é fruto de elucubrações também de Otsuka. Se o analista igualmente percebe a questão do não-eu nos romances de Noll, centrando sua exegese sobre Rastros do verão, a perspectiva desde a qual sua interpretação ilumina o romance não se parece com a nossa.

Teruki, como foi dito há pouco, observa praticamente todos os elementos que elencamos em páginas anteriores e a seguir em nossa tese, mas convém assinalar as

diferentes hipóteses que se colocam como causas para tais fenômenos. O estudioso aponta a “centralidade do consumo como intermediário nas relações entre os personagens” (OTSUKA, 2001, p.126), uma vez que os personagens são reificados e só podem estabelecer trocas de mercadorias, ao invés de verdadeiras relações humanas. Otsuka vê nesta alienação produzida pela indústria cultural a causa, o princípio gerador das formas que encontramos em Rastros do verão (e, por extensão, à obra de Noll publicada até aquele momento):

O esvaziamento da interioridade faz com que o personagem torne-se estranho a si mesmo. Não só os objetos – estranhos e sem vida – tornam-se coisas desprovidas de sentido humano, mas também os próprios seres humanos, incluindo o protagonista, parecem desumanizados: simples coisas mortas movendo-se num cenário morto (OTSUKA, 2001, p.112).

O herói esvaziado (leia-se: que sofre o esvaziamento vindo desde fora) contempla a ausência de sentido, obliterando sua própria humanidade; torna-se “coisa entre coisas”. Otsuka prossegue apontando a relação temporal que se dá a partir do esvaziamento oriundo da reificação:

As imagens (de abandono) remetem à perda da identidade, à ausência de laços estáveis com um passado ou uma origem. O sentimento de não-pertencimento que observamos no narrador é uma sentimento generalizado e sugere a perda da noção de comunidade. Sem passado e com o prenúncio de futuro frustrante que parecem impossibilitados de mudar, os personagens vivem um eterno presente, que experimentam como sendo vazio, inóspito e opressivo (OTSUKA, 2001, p.118).

Se compreendemos corretamente o estudioso, Otsuka inverte a ordem da relação entre tempo e sentido existencial. Segundo ele, os personagens vivem no eterno presente e por isso, ou posteriormente pelo menos, experimentam o vazio, o vácuo existencial. De nossa parte, entendemos, e o item A configuração do herói discorre precisamente sobre isto, que é a ausência de sentido, este nada latente, que determina a ação no tempo do herói. É ele quem escolhe viver no presente mediante um niilismo incontinente. Sendo assim, só podemos concordar em partes com esta afirmação que se segue: “O vazio de Porto Alegre espelha o vazio do próprio narrador, que não tem lembranças do passado e não encontra na cidade traços de sua origem, o que indica a perda de identidade. Rastros é o registro da desertificação do Eu e do mundo” (OTSUKA, 2001, p.121). A própria expressão “eu esvaziado” pressupõe que

alguém ou algo esvaziou aquele sujeito, ou, em termos marxistas, reificou o homem. É inerente a este processo certa passividade do sujeito a que olhamos, uma certa resignação que não combina com a arbitrariedade do herói de Noll. Em nossa análise, defendemos, em contrapartida (ou complementando talvez) ao ponto de vista de Otsuka, que o herói é afetado, mas não determinado pelas inegáveis conjunturas opressoras da indústria cultural. Parece-nos, também que Jefferson Agostini Mello se aproxima de nosso olhar sobre a obra de Noll quando diz que:

Assim, ao negar tanto as instituições quanto a noção de experiência, Noll aposta no indivíduo, não no indivíduo narcisista, como quereriam os apólogos da sociedade de consumo, mas naquele que, em conflito com as práticas e discursos hegemônicos, debate-se, luta por espaços/tempos para agir, dizer [...]: a cidade desocupada, a viagem, a quase-morte, as vísceras do Outro, o sonho, os rituais, pontos de fuga em que não apenas o sujeito pode minimamente ser como também se rebelar socialmente através da linguagem. A provisoriedade e o interstício, literariamente construídos, não são apenas efeitos de uma realidade social opressora, mas, sobretudo, vislumbres de transformação da subjetividade, em abertura para o inusitado (grifo nosso) (MELLO, 2014, p.17).

Sendo assim, o drama que buscamos evidenciar nesta tese é anterior às vicissitudes da indústria cultural, que, sem dúvidas, tem sua influência nos vários níveis possíveis de composição romanesca. Trata-se de um drama ontológico o que analisamos, e por isso, abarca os demais que se seguem, incluindo os de origem social ou econômica. Os dramas existenciais são uma constante do ser humano, mas, certamente, a nossa época se encontra em uma conjuntura histórica na qual os fatores socioeconômicos, tão bem apontados por Otsuka e outros, favorecem o niilismo representado em Noll e na geração de escritores de desde o início do século XX para cá. Sendo assim, consideramos que a análise da indústria cultural coloca em luz meridiana não a causa, mas um elemento importante que favorece a atuação dos heróis de Noll. Buscamos sustentar que a ausência de sentido existencial é que causa o esfacelamento do eu, pois o herói age desde dentro para que o nada continue, para que não exista possibilidade de se construir um eu unificado, por mais que tal tarefa fosse

ideal demais20.

20

Já vimos que a relação do autor criador com seu herói favorece este intento. Veremos a seguir como se dá esta ação do herói para manter-se no nihil: ele age no tempo, no espaço, no conteúdo que merece ser narrado etc.

Desta maneira, buscamos o elemento mais recorrente da obra de Noll, aquilo

que estaria nos heróis de Noll em quaisquer situações21, (o que não nos impede de

olhar para a história literária, buscando colocar Noll na genealogia niilista da literatura e das ideias). Tanto é assim, que do primeiro ao último romance publicado pelo escritor gaúcho encontramos exemplos de nossa tese, ao passo que a ênfase da influência da indústria cultural, parece-nos, vai se amainando nos últimos romances de Noll. Entendemos que antes de ser alguma coisa (um consumidor, um homossexual, um ator, um escritor, um marginal), o herói é; no entanto, não é possível ser no vácuo, sem ser alguma coisa, estar em relação. Sendo assim, cremos que o estático e o contingente se complementam, ao invés de se excluírem. Só se é internamente em relação ao que está fora. E o romance é “uma meditação sobre a existência através de personagens imaginários” (KUNDERA, 2009, p.81). Os heróis de Noll meditam, colocam em ação o “niilista perfeito”, como chamará Nietzsche.

Poderia o leitor objetar que negar a identidade é ainda uma modalidade identitária. De fato; no entanto, o que salientamos é justamente esta contradição inerente de alguém que é móvel, fluido e que, contudo, algo de si ainda persiste, pois o

vir-a-ser não anula o ser22, é somente um acidente daquilo que é substancial23, como

diria Aristóteles. A angústia dos personagens de Noll advém, em grande medida, desta constatação: por mais que se busque anular o certa pretensão identitária, sempre resta algo que liga, que permanece, que subjaz intermitentemente. Uma personagem irmanada aos heróis de Noll, G.H., demonstra um ímpeto muito semelhante a este:

Toda a parte mais inatingível de minha alma e que não me pertence – é aquela que toca na minha fronteira com o que já não é eu, e à qual me dou. Toda a minha ânsia tem sido esta proximidade inultrapassável e excessivamente próxima. Sou mais aquilo que em mim não é (LISPECTOR, 2009, p.123).

21

Perspectiva que certamente limita nosso trabalho, que comete certa violência a este mundo absolutamente móvel de Noll, mas que marca nossa posição nos estudos do escritor gaúcho e que certamente corresponde a certa realidade verificável na obra romanesca do escritor.

22

O filósofo Mário Ferreira dos Santos, em uma nota de rodapé de sua Filosofia concreta, diz sobre a polêmica do ser e não-ser de Heráclito e Parmênides: “Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, mas o rio não deixa de ser rio” (SANTOS, 2009, p.82).

23

O narrador de A fúria do corpo dirá em determinado momento: “então canso-me de tentar saber quem sou, pois o razoável sei: eu sou” (NOLL, 1989, p.214). Fica claro que alguma coisa há.

Há sempre um elemento de inescapável frustração nesta busca. A existência desse herói, assim sendo, resume-se a negar (e as maneiras de negação serão evidenciadas) qualquer resquício de realidade que possa dar a ele um traço identitário predominante. Em um dos depoimentos dados ao IEL, Noll diz:

Uma experiência corpo a corpo com a história. Então eu queria ter essa paciência de ficar ouvindo. De ficar ouvindo. E esquecer um pouco desse ‘eu’. Não é esquecer um pouco desse ‘eu’; é que eu acho que houve uma ultrapassagem, mesmo. Esse ‘eu’ está mais integrado. Esse ‘eu’ já está mais inserido nesse ventre aí do real (NOLL, 1993, p.306).

Essa negação que afirma, ou a afirmação que, necessariamente, nega, não é facilmente assimilável, mas buscaremos evidenciá-la. Por vezes, para a compreensão de um objeto, a contraposição se torna um modo mais claro de exposição de uma ideia; assim procederemos. O gênero romanesco, ou melhor, a narrativa de uma maneira geral, em sua ampla maioria, é composta de identidades construídas que se relacionam, discutem temas importantes, proporcionam situações inusitadas ou não, etc. Pensemos num herói típico (não necessariamente heroico), como Ulisses, Raskólnikov, Brás Cubas, Leopold Bloom, Dedalus. O enredo e os diálogos se dão de tal maneira que em cada momento captamos uma nota identitária do herói. Aos poucos, o leitor vai transformando aquela massa informe em algo concreto. A dinâmica do leitor é idêntica à que ocorre na realidade: buscamos nos assenhorar daquele eu que se nos apresenta, captando no presente e no passado (aquilo que nos é dito sobre ele) notas identitárias que possam nos fornecer elementos para certa finalização, apesar de termos consciência da relatividade de tal acabamento identitário. Jean Pouillon torna claro este ímpeto para deslindar o eu do outro:

Para tanto, esforçamo-nos por datar sua existência exclusivamente a partir do momento em que a compreendemos: damo-nos conta, porém, perfeitamente, de que isto não basta pois, muito embora ela só exista para nós a partir desse momento, nós sabemos que ela já existia antes. Vamos então procurar compreender o seu passado, esse passado de que não participamos. Tentaremos, em suma, remontar à fonte dessa existência (POUILLON, 1974, p.51).

Não é necessário robustecer nossos argumentos para tornar evidente que o herói romanesco, historicamente presenciado, necessita de uma identidade estável para poder agir coerentemente (ou não), para que as palavras dele e dos outros

personagens possam ressoar e desvelar entonações sutis. Bakhtin resume este esforço identitário assim:

O herói revelará muitos disfarces, máscaras aleatórias, gestos falsos, atos inesperados que dependem das reações emotivo-volitivas do autor; este terá de abrir um caminho através do caos dessas reações para desembocar em sua autêntica postura de valores e para que o rosto da personagem se estabilize, por fim, em um todo necessário (BAKHTIN, 2003, p.26).

Em Noll, se dá justamente o contrário do que Pouillon e Bakhtin teorizam. A massa informe do início, no momento final de cada romance, segue sendo informe, ou mesmo proteiforme, mais ainda incompleta, imperfeita. E o que é mais importante: há um esforço deste herói para que assim seja. Em consonância com o que acabamos de dizer, o personagem Paul Morel, em uma de suas várias notas que interrompem a narrativa de O caso Morel, de Rubem Fonseca, diz o seguinte:

A trama e a sequência tradicionais não têm mais significação... o escritor tende a uma consciência mais aguda de si mesmo no ato de criar. O exterior torna-se menor e o escritor afasta-se da realidade objetiva, afasta-se da história, da trama, do caráter definido, até que a percepção subjetiva do narrador é o único fato garantido na ficção (FONSECA, 1973, p.91).

Noll, como Morel, preocupa-se em retratar seus heróis verticalmente, em direção ao mais profundo, em detrimento de uma horizontalidade progressiva, cumulativa. Por isso, é preferível (e mesmo aconselhável) analisar os romances do escritor gaúcho percebendo as repetições de motes, ao invés de se buscar uma progressão teleológica,

com um fim que “amarrará” todo o périplo24. Northrop Frye, aristotélico que é, resume

esta expectativa teleológica nos seguintes termos:

A conclusão não é simplesmente a última página ou a última frase proferida, mas o “reconhecimento” que, particularmente numa obra de ficção, traz o fim para junto do começo e estica a linha reta da resposta em forma de uma parábola. Um prazer puro e completo da resposta participante é o fim visado por todos os escritores que se consideram primordialmente anfitriões, e alguns deles ignoram, resistem e se julgam ofendidos pela operação crítica que se preocupa com o mesmo objetivo (FRYE, 1973, p.33).

24

Daniel de Oliveira Gomes, no excelente ensaio: Noll: mãos sujas, diz que: “Captar os fragmentos válidos [em Noll] é extremamente necessário somente para ajudar a rematerializar uma idéia já perdida de narrativa, ao modo clássico, em que o perfil do escritor vinha a ser o de um sujeito de mãos limpas, um perfil moral, ‘vestido’. Quer dizer, tal jogo de montar vale para aproximar este ‘caos’ proposital daquilo que cada leitor pode entender como ‘uma história’, no sentido canônico” (OLIVEIRA, 2007, p.95).

Noll não é um escritor anfitrião, como o que citou Frye. Pelo contrário, seus heróis mais vivenciam a ação do que a narram. Há uma ênfase na intensidade da experiência e não na unidade tão esperada e procurada pelo leitor. Frye observa que esta é uma das características da literatura moderna: “A ficção tende cada vez mais a abolir o enredo teleológico que mantém o leitor imaginando ‘como ele vai terminar’” (FRYE, 1973, p.27). Miguel Sanches Neto, a propósito da publicação dos Romances e

Contos reunidos, analisando as características principais de Noll – a saber, a errância

dos personagens, a ausência de causalidades, a ênfase no presente, o sexo sem amarras sociais etc – atribui, emprestando de Carpeaux a conceituação, a certa visão

apocalíptica do mundo, própria da velhice literária (não necessariamente cronológica):

“Em outras palavras, o estilo da velhice funda-se numa visão apocalíptica do mundo, enquanto o estilo da juventude seria marcado por uma confiança no real e no poder humano de construção – o que levaria o autor à clareza de quem quer pertencer a seu tempo” (1998, s/p). O resultado seria uma literatura não muito indicada a todo leitor (esta entidade abstrata e genérica), mas aos seus pares leitores e aos estudiosos da academia (aliás, o que vem sendo sobejamente feito há anos).

Paul Ricoeur, concordando com Frye, ao analisar esta característica do romance moderno (que analogamos a Noll), aclara o lugar e a função deste leitor:

Para que a obra ainda capte o interesse do leitor, é preciso que a dissolução da intriga seja entendida como um sinal dirigido ao leitor para cooperar com a obra, para ele mesmo fazer a intriga. É preciso esperar alguma ordem para se decepcionar por não encontrá-la; e essa decepção só gera satisfação se o leitor, tomando o lugar do autor, faz a obra que o autor empenhou-se em desfazer (RICOEUR, 2010b, p.42).

Todas as ações e reflexões, em Noll, são intencionalmente atos desfigurantes, negações de si mesmo. Contudo, através de quais meios estes narradores dos romances de Noll realizam tal desfiguração? Podemos citar genericamente, por ora - correndo o risco de sermos demasiado prolépticos - alguns meios: o nome quase sempre oculto, o passado nunca revelado dos heróis, o espaço sempre passageiro, o tempo nunca coerente, a recorrência da teatralidade diante do outro, a imersão no outro, a sexualidade fluida, a irreverência diante de qualquer relação e hierarquia, a busca pela contradição de si em prol de uma negação de qualquer causalidade. É

irreverente no sentido de não-reverência; referimo-nos a relações do tipo: Pai-filho, Deus-homem, entre irmãos, Pátria-cidadão etc. A esse respeito, uma grande influência do jovem Noll foi Herbert Marcuse, que, em seu Eros e civilização, exprime esta irreverência enquanto revolta do sujeito: “É revolta contra os falsos pais, falsos professores e falsos heróis, solidariedade com todos os infelizes da Terra: existirá alguma ligação orgânica entre as duas facetas do protesto?” (MARCUSE, 1975, p.16).

Cada item desta lista será negado constantemente nos romances do escritor gaúcho, mas esperamos que tenha ficado claro que trata-se de valorar o não-eu, para que o eu se dissolva.

“O meu nome não” (NOLL, 1989, p.9), assim, a obra romanesca de João Gilberto Noll começa. O romance A fúria do corpo inicia-se com esta sintomática negação, a qual remete ao principal atributo do ser para designar o eu (- Quem sou eu? - Sou

fulano de tal). O nome é um acidente do ser (em oposição à essência, na conceituação

aristotélica), o atributo mais determinante da identidade do sujeito: é ele que nos identifica diante do outro e do mundo. É bem verdade que interiormente, de si para si, o nome não representa grande determinação, pois, de uma parte, o eu para o outro é um

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