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F ORÇAS S EM L ÓGOS E F ORÇAS S EGUNDO O L ÓGOS

Aristóteles inicia Q2 discutindo dois modos como as forças po- dem ser compreendidas:

Dado que alguns princípios desse tipo estão presentes nos i- nanimados, outros, nos animados, isto é, na alma, e na parte da alma que possui razão, é também evidente que, entre as capacidades, algumas hão de ser irracionais, ao passo que ou- tras hão de ser acompanhadas de razão. Por isso, todas as técnicas e conhecimentos produtivos são capacidades, pois são princípios de mudança em outra coisa ou no próprio pro- dutor enquanto ele é outra coisa. (Q, 2, 1046a 35 – 1046b 4) 49

Se força é o princípio do movimento ou mudança, a pergunta é que tipos de forças podem ser encontradas. Aristóteles só tem como responder isso a partir da experiência cotidiana. O filósofo antigo parte da distinção entre animado e inanimado. Há forças que se encontram em entes inanimados e forças que se encontram em entes animados. Estas, como forças da alma, podem ser racionais ou irracionais. Encontra-se assim uma série de forças: 1) as dos entes inanimados: como a do fogo que tem a potência de queimar; e 2) as dos entes animados, que se dividem em a) forças na alma: poder se alimentar; e b) forças racionais: poder produzir algo50. A noção de força, como se pode notar, é bastante extensa, compreende qualquer tipo de movimento, desde movimentos dos entes inanimados até qualquer movimento da alma, inclusive, como

49 “Puesto que en las cosas inanimadas hay tales principios, y otros en las animadas y en el alma, y, del alma, en la parte racional, es evidente que también de entre las potencias unas serán irracionales y otras racionales. Por eso todas las artes y las ciencias productivas son potencias, puesto que son principios productores de cambio que radican en otro o en cuanto es otro.”

50 Reale divide do seguinte modo os tipos de potência: “(1) São potências próprias dos seres

inanimados, por exemplo, a que tem o fogo de queimar, a que tem a madeira de ser queimada, a que tem a pedra de cair ou o ar de subir etc. – (2) São potências próprias dos seres animados e da alma (a) aquelas próprias (a) da alma vegetativa e (b) da alma sensitiva e (b) aquelas próprias da alma racional.”(REALE: 2001, p. 156-7)

assinala Ross (Cf.: 1981, p. 242), as forças das artes (téchnai) e das ciências produtivas.

Aparentemente se teria aqui uma divisão clássica dos modos de ser a partir da definição do homem como animal racional. Isto é, toma- se a totalidade do ente e se a divide em natural e humano, no qual a faculdade racional é algo sobreposto à natureza. Essa divisão leva a compreender a totalidade do ente a partir de dois registros: a natureza, coisa anímica, material, extensa; e a razão, coisa pensante, espiritual, inextensa. Novamente tem-se uma bipartição, como aquela do sujeito- objeto, que não consegue mais encontrar a ligação necessária entre esses dois âmbitos. Se a compreensão do ser é compreensão do ente em sua totalidade, esses dois âmbitos podem ser compreendidos a partir de um sentido mais originário.

Heidegger nota que a divisão entre animal e homem supõe mais do que foi sugerido acima. Não existe uma barreira que separa aquilo que torna o homem homem, isto é, não existe uma linha definida entre a razão e o mundo natural. Para Heidegger, a divisão feita por Aristóteles das forças em irracionais, sem lógos, e racionais, segundo o lógos, não é tão simples se a tomarmos a partir da diferença entre o animal e o homem: como se o primeiro fosse simplesmente desprovido de lógos e o segundo provido de lógos. Isso porque a distinção entre irracional e racional não corresponde à distinção entre inanimado e animado (Cf.: HEIDEGGER: 2007, p. 132). No animal já se encontra algo que não faz dele algo meramente natural. Explica-se: se o que faz o homem diferente de algo meramente natural é a razão, o que não possui essa propriedade seria natural. A razão, assim, é a diferença específica do homem frente aos outros animais. Seguindo esse raciocínio, o homem seria algo de racional e de natural. Já o animal, algo somente natural. Sua naturalida- de, seria, entretanto, a mesma de uma pedra ou de uma planta? Com certeza não. Ora, isso reflete que a distinção entre racional e irracional não corresponde à distinção entre animado e inanimado. Há entre o inanimado e o racional uma região de objetos que não podem ser situa- dos nem em meramente naturais ou inanimados nem simplesmente racionais.

Por isso que Heidegger aponta para a complexidade desse passo aristotélico. A divisão entre entes animados e inanimados e, fundada nessa, a divisão das forças em racionais e irracionais não é tão simples. O que está em jogo nessa divisão?

sem fala (redelos): sem enunciação; com isso tem-se em mente aquele que é sem enunciação naquilo que é e como é; sem enunciação: sem a possibilidade de tomar, de apreender ou dar uma notícia, e só por isso incapaz de tomar conheci- mento de alguma coisa e de estar a par de alguma coisa (HEIDEGGER: 2007, p. 130).

De outro, a força segundo o lógos que é:

algo que, naquilo que é e como é, carrega consigo a enuncia- ção: a possibilidade de tomar conhecimento e dar a conhecer e assim a possibilidade de ir procurar conhecer e apropriar-se desse conhecimento e assim ser conhecimento (HEIDEGGER: 2007, p. 130-1).

Primeiramente, faz notar Heidegger, lógos não pode ser compre- endido simplesmente como razão. Lógos, como estrutura essencial do homem, aponta para o fenômeno da compreensão do ser. Lógos, aqui ainda sumariamente tratado, diz a estrutura existencial do homem segundo a qual algo pode vir à palavra e tornar-se palavra. É a operação pré-predicativa com que o homem articula o mundo. Nas palavras de Heidegger,

lógos é regra, lei, e quiçá não apenas pairando nalgum lugar

por sobre os regrados, mas como aquilo que é o próprio re- portar-se: o acoplamento íntimo e a juntura do ente que está em relação. lógos é a disposição conjuntural, o ajuntamento dos que estão entre si referidos (HEIDEGGER: 2007, p. 129)

Para Heidegger, lógos só pode dizer respeito a algo abstraído da existência, como por exemplo, às regras da lógica ou do conhecimento científico, porque antes diz respeito a um comportamento do homem. Comportamento este que, no habitar o mundo, colhe, recolhe e põe em relação um ente com outro, ambos abertos pela ocupação51. Assim, o

51 A conexão mais íntima entre algo formal, significado na noção de lógos, e o mundo prático

do homem, longe de estar decidida, é ainda algo grave e urgente para o pensamento fenomeno- lógico. Ela aponta para a dificuldade em relacionar os dados formais de pensamento, como, por exemplo, as regras de inferência e os números, com a realidade intuída sensivelmente. Apesar de indicar possíveis soluções, as falas de Heidegger aqui trazidas apenas indicam como acontece essa ligação entre o formal e o vivido. Essas indicações passam pelo postulado de que tais dados formais seriam tão vividos quanto os vividos sensíveis, por exemplo, de tal modo que a compreensão de ser que perpassa ambos está dentro do paradigma do ser enquanto copresença. Todavia, Heidegger aqui não apresenta uma teoria que esgote a discussão entre a conexão entre tais âmbitos.

modo hermenêutico como Heidegger lê essa passagem de Aristóteles vê uma relação precisa entre a força sem lógos e a força segundo o lógos: ambas estão referidas ao lógos, uma afirmativamente e outra negativa- mente. Ambas têm em vista algo como um comportamento ou uma atitude com os entes.

O ser compreendido como ato e força aponta para uma compre- ensão do ser devedora da noção de tempo. O tempo como horizonte do sentido de qualquer ente é que revela a noção de força. Uma ontologia do simplesmente presente, uma ontologia que pense o ser como um ente entre outros e procure a sua presença entre os outros entes não dá, para Heidegger, um esclarecimento suficiente do que está em jogo nas distin- ções Aristotélicas. Todas as forças acabam por dizer respeito ao lógos. Isso significa que o modo de dizer o ser a partir das noções de ato e

força só pode ser compreendido a partir da capacidade de um Dasein de

articular mundo, usar lógos.

Fundamentalmente, o que se mostra aqui é que, para Heidegger, a divisão da força como sem lógos e segundo o lógos não é tão clara como aparenta ser a princípio. Em ambos os casos se tem algo em vista, a saber, o lógos, seja pela afirmação ou pela negação. A questão a ser perseguida, assim, para Heidegger, é qual a relação característica entre

força e lógos (Cf.: HEIDEGGER: 2007, p. 139), que permitirá não

apenas entender as forças segundo o lógos mas também as forças sem

lógos.

3.1.2 METAFÍSICA Q2 1046B 5 24: A RELAÇÃO ENTRE FORÇA E