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M ETAFÍSICA Q1, 1046 A 19 – 29: O P RINCÍPIO M ÚLTIPLO DO S ER

APESAR DA UNIDADE DO SEU SENTIDO.

Assim, é manifesto que, de certo modo, são uma só a capaci- dade de fazer e a de padecer (pois algo é “suscetível de” ou “capaz de” porque ele próprio possui capacidade de padecer, ou porque outra coisa possui capacidade de padecer sob sua ação), mas, de outro modo são diversas. De fato, umas está no paciente (pois o paciente padece, isto é, algo padece sob a ação de outro, por possuir um certo princípio, e porque tam- bém a matéria é um certo princípio: aquilo que é gorduroso é combustível, ao passo que aquilo que cede de tal e tal modo é quebrável, e semelhantemente nos demais casos), ao passo que a outra está no agente, por exemplo, o quente (que está naquilo que esquenta) e a arte de construir casa (que está no construtor da casa). Por isso, uma mesma coisa sob o aspecto em que é naturalmente coesa, não padece por ação dela mes- ma, pois nesse aspecto, ela é uma só e não outra. (Q,1, 1046 a 19 - 29)30

30 “Está claro, por consiguiente, que en cierto sentido es una misma la potencia de hacer y la de padecer una acción (pues una cosa es potente por tener ella misma la potencia de recibir una acción, o bien porque la tiene otro para recibirla de ella), pero en otro sentido son distintas. Una, en efecto, está en el paciente (pues el paciente padece la acción, y uno padece la de uno y otro la de otro, por tener cierto principio, y por ser también la materia cierto principio; así, lo grasiento es combustible, y lo que cede de tal o cual modo, rompible, y lo mismo en las demás cosas), y la otra, en el agente; por ejemplo, el calor y el arte de construir: el primero, en lo que calienta, y el segundo, en el constructor. Por eso, en cuanto unidad natural, ningún ser padece la acción de sí mismo, ya que es uno solo y no otro.”

Antes foi afirmado que Aristóteles se refere a uma cisão no âmbi- to da força Isso porque se há movimento ou mudança sempre há por princípio dois âmbitos: um a partir do qual ocorre a mudança e um em vista de que algo muda. Mas não só isso. Para acontecer uma mudança é necessário, para Aristóteles, que exista uma força que aja sobre algo outro que não ela mesma. Mas esse algo que pode receber a ação de uma

força não é algo totalmente aleatório. A força para construir a casa é

aplicada aos tijolos e outros materiais e não a pedras brutas, ouro ou números31. Onde há uma força que age há uma força que padece. Há, como visto, uma duplicidade no princípio.

Todavia, essa duplicidade é apenas em certo sentido. Como bem nota Ross, “o poder ativo e o poder passivo são, assim, os aspectos complementares de um fato singular” (ROSS: 1981, p. 241). Onde há uma força que age é imprescindível que exista uma força que padeça. O calor não esquenta nada se não há algo que possa ser aquecido e o construtor nada constrói se não há algo que se lhe dê para a construção. Nesse sentido, a força é apenas uma só.

Para Heidegger, o fenômeno que Aristóteles está intuindo aqui é o que ele mais tarde procurará elucidar com a diferença entre o ôntico e o ontológico. Força ou potência em sentido essencial é o que se dá na relação como a própria relação. Onde há uma força simplesmente dada, seja de padecer ou de agir, há sempre outra força, de agir ou padecer, que se dá como contraposição. Onde há uma força há sempre uma relação. Essa relação é o que Heidegger chama de sentido ontológico, o

ser-força.

Por outro lado, se a força

for compreendida de tal modo que se tenha em mente cada

vez uma ou a outra das duas forças inerentes ao ser-força, en-

tendida como esta força singular dada por si [... nesse caso a força] possui um significado ôntico; não se refere ao ser- força como ser, mas tem em mente um ente determinado, este ente, que é o ponto de partida para um fazer, ou então este ente, que é ponto de partida para um sofrer (HEIDEGGER: 2007, p. 144).

31 Reale afirma que o “significado passivo de potência tem desdobramentos que levam

diretamente ao segundo significado de potência, que é justamente o de matéria” (REALE: 2001, p. 455). A matéria é sempre a matéria para alguma coisa, e nesse sentido, a matéria é sempre potência passiva para uma potência ativa. É em relação à noção de potência que a matéria tem sempre sentido. A matéria não é algo esperando determinação. Ela sempre é compreendida a partir de alguma ocupação cotidiana, como diria Heidegger.

O sentido essencial ou ontológico da força só se faz visível quan- do existem entes em que a força está acontecendo. Todavia, esses entes que se mostram afetados pela força só são esses entes como tais porque estão dentro dessa relação e a relação ou força não se confunde com os próprios entes em questão.

Essa posição se justifica porque um ente, para Heidegger, nunca é apenas um ente simplesmente presente, dado para uma mera percepção. Um ente é algo que se dá para uma ocupação, tem sempre diante de si uma proposta e carrega uma história. Assim, algo nunca é simplesmente algo, mas algo para algo e como algo. O bronze nunca é só um material, mas é já um material para construir a estátua. O tijolo não é só um tijolo, mas é o tijolo da construção. Aquele homem que vem vindo não é só um corpo biológico, mas aquele que me gerou ou o construtor daquela casa. O sentido de um ente não é dado nele mesmo, como uma determinação simplesmente perceptível, como sua cor, seu tamanho, seu formato. O sentido de um ente é expresso nesse “em vista de que”. Isso é o mesmo que dizer que uma força de agir só existe num ente porque existe noutro a força de padecer, ambas configurando momentos de um todo articula- do: a força em sentido único, essencial, ontológico. Um ente só é o que é, só tem um sentido ôntico porque está inserido num horizonte ontoló- gico.

A última frase da passagem é obscura. Aristóteles continua a ar- gumentação e traz um dado novo: como unidade natural, uma força não pode ter em si as duas forças, a de agir e a de padecer. O que o filósofo quer dizer com isso? Reale e Ross afirmam que uma coisa que se consti- tui como uma unidade orgânica não pode ter ambos princípios, de ação e sofrimento, porque nela não há distinção dessas forças mesmas (Cf.: ROSS: 1981, p. 240) e que, portanto, isso que se constitui como uma unidade natural só poderá padecer ou agir por força de outros (Cf.: REALE: 2001, p. 455-6). Mas não fica claro o que quer dizer unidade natural ou orgânica. Aristóteles está falando de um tipo específico de ente ou de uma perspectiva específica de todo ente?

Para Heidegger, é ao segundo caso que Aristóteles se refere aqui. Antes de simplesmente diferenciar lingüisticamente os dois sentidos de potência ou força, enquanto ela é um princípio e enquanto ela é dois princípios, o filósofo antigo está falando da imbricação íntima (e por isso orgânica) desses dois modos de ser força. Então, não é uma catego- ria de entes que não pode ter essa ou aquela força ao mesmo tempo, mas antes, todo ente, quando tomado em sua relação de forças se mostra ora

enquanto possuidor de uma força passiva, ora possuidor de uma força ativa e nunca ao mesmo tempo. Aristóteles demonstra que o ser mesmo

da força acontece sempre nessa ambigüidade. Ontologicamente, o ser da

força se mantém nessa dualidade em que, num sentido, é um princípio

único e, noutro sentido, é duplo. Em outras palavras, para Heidegger, Aristóteles nota que uma força ou potência aponta sempre para uma mútua relação (Cf.: HEIDEGGER: 2007, p. 116).