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Facebook, linha do tempo e autobiografia: hibridização e fragmentação na vitrine

CAPÍTULO II “Olhe-me: a autobiografia sou eu!” (?)

2.5 Facebook, linha do tempo e autobiografia: hibridização e fragmentação na vitrine

essencialmente o de leitora. Pensar nas possibilidades autobiográficas promovidas pela internet e, especificamente, nas funcionalidades fornecidas pelo Facebook, é também a tentativa de reconstituir narrativas implícitas que se dão pelos conteúdos discursivos elencados pelos sujeitos na composição de suas linhas do tempo. Os traços autobiográficos se organizam de modo a criar pistas identificatórias de uma autoconstrução individual. É justamente sobre essas pistas e marcas que o estilo da linha do tempo se configurará como obra do indivíduo. Nela, incorpora-se uma “diversidade interna em detrimento de uma unidade global do campo” (ARFUCH, 2010, p. 57), uma vez que as autobiografias, de maneira geral e apesar de certos traços compartilhados, não mantêm entre si os mesmos modelos. Então, torna-se necessário ler cuidadosamente os registros apresentados nas linhas do tempo para perceber o que neles existe de auto/biográfico.

Dois artigos, em particular, vão ao encontro da temática desta tese: o texto de Lima et al (2015), intitulado “Facebook – um novo espaço autobiográfico?”, em que os autores têm por objetivo investigar como as perspectivas autobiográfica e biográfica se configuram na rede social, e o texto de Fanaya (2012), “Eu, Você e Nós Todos: as múltiplas versões do “eu” nos ambientes existenciais das RSIs”, em que a autora discute especificamente o eu autobiográfico no Facebook. Para tal discussão, ela lança mão da elaboração conceitual do eu autobiográfico dada pelo neurocientista António Damásio:

As autobiografias são compostas por recordações pessoais, a totalidade das nossas experiências, incluindo as experiências dos planos que fizemos para o futuro, sejam eles precisos ou vagos. O eu autobiográfico é uma autobiografia feita consciente. Faz uso de toda a história que memorizamos, tanto recente

como remota. Estão incluídas nessa história as experiências sociais das quais fizemos parte, ou das quais gostaríamos de ter feito parte, bem como as recordações que descrevem as nossas mais refinadas experiências emocionais, nomeadamente as que possam ser classificadas de espirituais (DAMÁSIO, 2010, p. 263).

Para a autora, o Facebook deu um grande passo em direção à organização temporal e espacial de registros individuais e coletivos – compostos por múltiplas linguagens –, o que comprovaria o fato de as redes sociais digitais estarem caminhando para fornecer ambientes apropriados à visibilidade de versões autobiográficas do “eu”, às quais outros indivíduos podem ter acesso visual e imediato, “inclusive colaborando na sua construção” (FANAYA, 2012, p. 29). Dentro dessa colaboração, destaca-se a participação e a conjugação de atores/mediadores humanos e não humanos para a construção de versões do “eu” que emergem das redes sociais, isto é, a realização coletiva que constrói esse ambiente existencial, como quer a autora, que é o Facebook. Essas versões não seriam “necessariamente falsas, mas sim reconfiguradas/recriadas em perfis transitórios, como verdadeiras versões traduzidas dele próprio” (FANAYA, 2012, p. 27), por meio do agrupamento de conteúdos discursivos diversos, como textos, fotos, vídeos, hiperlinks, desenhos etc.:

O modelo de rede social que o Facebook oferece parece adequado a dar visibilidade às narrativas autobiográficas de seus usuários mais assíduos. Essas narrativas são versões de identidades moventes, que vão se configurando, não como fruto de ações totalmente intencionais e/ou deliberadas e objetivas dos usuários, mas sim a partir das complexas negociações invisíveis entre os agentes humanos (usuários, seus amigos, os amigos dos amigos, os técnicos que criam as funcionalidades e aplicativos para a rede, etc.) e não humanos (hardware, software e aplicativos). Elas vão se configurando aos poucos, emergindo das inúmeras instâncias de mediação e dos inúmeros arranjos semióticos à medida que o tempo passa e as publicações e compartilhamentos se avolumam (FANAYA, 2012, p.123).

Lima et al (2015), por sua vez, propõem-se a verificar em sua investigação até que ponto as perspectivas autobiográfica e biográfica se configuram no Facebook e em que medida a postagem de diversos fragmentos textuais narram a história de um indivíduo. Para isso, uma série de questionamentos norteadores, que se assemelham demasiadamente às nossas indagações, são levantados:

Quais textos são postados? O que foi escolhido e o que foi excluído desse perfil? O autor trava um pacto de leitura com o leitor? Se levarmos em consideração que os textos postados nessa rede social são textos produzidos pelo próprio autor do perfil e de autores diversos, como configuraremos esses espaços virtuais? Autobiográficos e biográficos? Quem escreve a página virtual é o próprio autor do perfil ou múltiplos autores? Com as redes sociais, surge um novo modelo de autobiografia e de biógrafo? (LIMA et al, 2015, p.282).

Embora o artigo dos autores não se aprofunde nas questões que levanta em seu resumo, uma vez que um único perfil é analisado, é importante destacá-lo como precursor, tal qual o artigo de Fanaya (2012), do levantamento seminal do que é em parte hipótese e em parte pressuposto fundamental desta pesquisa: as postagens das linhas do tempo revelam alguns procedimentos, estruturas e convenções que podem ser consideradas formas de um fazer auto/biográfico, a partir da curadoria digital.

O texto de Lima et al (2015) é particularmente importante por fundamentar a operação de leitura de um perfil do Facebook como sendo uma narrativa, baseando-se tanto na semiótica peirceana como na concepção de rizoma de Deleuze e Guattari (2004), além de tocar no conceito de hipertexto. Cabe dizer que a análise do perfil mencionado no artigo se dá pela consideração de todas as suas partes, por assim dizer, e não somente da linha do tempo:

Muitas reflexões contemporâneas permitem-nos enxergar os diversos gêneros textuais postados em uma rede social como um texto, ou melhor, como uma narrativa. Tempos atrás, um compósito cheio de cacos, fragmentos e pedaços de textos não era lido como uma narrativa. As histórias não se faziam com “retalhos” de diferentes gêneros textuais produzidos por diversos autores. Geralmente, somente as palavras que percorriam linearmente as folhas de papel e que preenchiam as páginas escritas por um único autor eram consideradas uma narrativa (LIMA ET AL, 2015, p. 286).

A partir dessas considerações sobre novas formas de narrativa, a leitura das linhas do tempo é viabilizada não só como reconstituição do universo de conteúdos com os quais entra em contato o indivíduo que constrói sua página pessoal, mas também como um modo de se narrar, de modo associativo. Este modo associativo vai se estabelecendo nas entrelinhas da composição da linha do tempo do usuário da rede social, em um percurso auto/biográfico, que só pode assim ser entendido pela repetição de preferências, pensamentos, desejos, interesses, sentimentos, críticas, posicionamentos e gostos que nela aparecem. Trata-se de verdadeiras pistas e índices de alguém que ali se apresenta e se re(a)presenta.

Além disso, faz-se importante ponderar que os termos delimitadores das diferenças entre autobiográfico e biográfico, ao menos no caso de uma rede social como o Facebook, parecem ser bastante contingentes e transitórios, uma vez que os conteúdos discursivos podem ser fruto tanto da produção do próprio “autor” do perfil como de outras fontes e “autores”. Esse é um apontamento um tanto quanto relevante, quando se trata do aspecto da curadoria digital engendrada pela linha do tempo, porque

estamos lidando com lugares híbridos, que abarcam textos diversos, móveis, oriundos dos mais distantes e próximos espaços, produzidos pelo próprio autor do perfil, por um amigo ou por uma pessoa desconhecida. Estamos lidando com espaços intervalares, que são autobiográficos e também biográficos, que narram a história de vida do autor da página, mas narram também muitas

outras histórias de muitas outras vidas. Espaços que são escritos e narrados pelo administrador do perfil, mas que são escritos e narrados também por tantas outras pessoas (LIMA ET AL, 2015, p. 291).

O sentido de uma fronteira dentro do auto/biográfico de uma rede social – que assim como permite o trânsito, também demarca limites – exposto pelos autores, poderia ser estendida também para a linha do tempo. Isso se deve ao fato de que, no interior de uma proposta de leitura que tende mais ao auto/biográfico, considera-se que as operações de seleção (e de exclusão) daquilo que será compartilhado no perfil, por parte de seu possuinte, caracterizam autoridade e independência de escolha dos conteúdos discursivos que compõem essa página virtual, focalizando a vida do autor do perfil e, portanto, delineando “a tendência autobiográfica do Facebook” (LIMA et al, 2015, p. 292). No entanto, se consideramos que a biografia é fruto da narração da vida de um indivíduo por outro, seria permitido considerar que os fragmentos dos quais se apropria o autor do perfil para a elaboração momentânea de sua linha tempo fariam parte de uma constituição biográfica, com a participação indireta de tantos outros. É por essas razões que optamos pela grafia auto/biográfico na abordagem da linha do tempo do Facebook como forma integrante desse horizonte midiatizado que propicia as curadorias digitais de si.