• Nenhum resultado encontrado

Uma proposta de análise: ler as linhas do tempo como “textos” auto/biográficos

CAPÍTULO III Aspectos metodológicos da pesquisa

3.6 Uma proposta de análise: ler as linhas do tempo como “textos” auto/biográficos

observado ou gerado a partir de sua coleta, é fundamental que eles sejam interpretados à luz das reflexões anunciadas nos capítulos teóricos, em uma análise que dialogue diretamente com a

87 Leonor Arfuch lembra que Philippe Lejeune fez algo parecido com estudantes do ensino médio da França a

respeito da prática de manter um diário pessoal, cujas respostas foram publicadas na revista Magazine Littéraire, traçando o que ela chamou de “verdadeira cartografia do imaginário esperável” (ARFUCH, 2010 [2008], p.146), ao indicar que se tratava de um instrumento que servia a propósitos como fixar o presente, deixar marca, guiar a vida, expressar-se, classificar-se, ler o diário para os filhos, suportar a solidão, acalmar a ansiedade, além de ser um espaço para a manifestação da “vida interior”.

teoria. Desse modo, nesta seção, busca-se discutir mais detidamente alguns pontos considerados importantes para a apreciação que será apresentada no Capítulo IV.

Antes da intervenção do pesquisador, as narrativas de vida existem apenas em estado virtual, isto é, não estão devidamente materializadas e explicitadas em suas minúcias passíveis de percepção, para serem, em seguida, apresentadas. É necessário compreender que os elementos de informação presentes nas linhas do tempo são “peças de um quebra-cabeça a ser reconstituído, como se existisse um modelo virtual ideal (uma ordem) do qual esses elementos seriam os indícios dispersos e misturados” (LEJEUNE, 2014 [2008], p. 185). Dentro dessa perspectiva, é tarefa metodológica desta investigação a proposição de uma leitura das linhas do tempo dos perfis dos informantes que seja capaz de evidenciar os processos de reconstituição de uma suposta narrativa de vida construída a partir de suas publicações.

Toma-se, aqui, o conjunto de conteúdos discursivos publicados nas linhas do tempo analisadas como um discurso. Entendendo a própria leitura como método de investigação, a primeira preocupação que se impõe e se faz digna de explicitação é a orientação que seguirá essa leitura. Baseando-me, a princípio, nas estratégias expostas por Philippe Lejeune a respeito do trabalho do autobiógrafo, procurarei situar o exame das linhas do tempo em eixos de coordenadas, a fim de constituir uma indexação que sirva de apoio para montar uma narrativa fragmentada de cada um dos perfis na análise. A proposição desses eixos se sustenta na assertiva de que “o discurso da memória é um labirinto” (LEJEUNE, 2014 [2008], p.187).

O primeiro desses eixos é o eixo cronológico. Embora a nomenclatura da linha do tempo nos remeta a uma descrição, visualização ou registro de eventos e personagens organizados de acordo com sua ocorrência em ordem cronológica e ela se exiba formalmente dessa maneira no Facebook, é preciso compreender que o procedimento natural da memória, que inclui a perspectiva que um indivíduo tem de sua própria vida, não é unitário; ele inclui lacunas e defasagens. Analogamente, a linha do tempo também demonstra sua semelhança com o discurso da memória, em termos de fragmentação e dispersão. O segundo eixo de orientação da leitura, por sua vez, é o eixo temático. Neste eixo se evocam as experiências de trabalho, da vida familiar, do cotidiano, de visão de mundo, de mentalidade, de opinião pessoal etc., circunscritas nas publicações e associadas ao indivíduo possuinte de um perfil e produtor de uma linha do tempo.

Apesar de esses dois eixos guiarem a emissão e a recepção do discurso das linhas do tempo, eles não são suficientes para captar seu sentido. Como explicita Philippe Lejeune:

Eles definem o espaço no qual vai se inscrever uma figura e não as leis de construção dessa figura. Pode ocorrer que narrativas de vida não “funcionem”,

permaneçam em estado de coleção de informações, classificáveis cronológica e tematicamente (portanto eventualmente exploráveis, no âmbito de uma enquete, tendo como objeto séries de modelos), mas desprovidas, à primeira vista, de uma forma ou de uma significação global (LEJEUNE, 2014 [2008], p.188).

Construir uma significação global para a coleção de informações classificáveis cronológica e tematicamente se constitui como uma das etapas analíticas das linhas do tempo, conforme apostamos nesta pesquisa. Todo ser que se pensa como sujeito tem mais ou menos como base uma “ideologia (auto)biográfica” (LEJEUNE, 2014 [2008], p. 188). Quando tal ideologia se estabelecer mais para menos do que para mais, estaremos diante de algo que dificilmente se configurará como uma narrativa. De acordo com os dois eixos mencionados, cronológico e temático, averiguaremos o que diz respeito ao implícito, às associações e derivações passíveis de interpretação. A ordem de valores, a organização no plano temporal e as relações estabelecidas em uma linha do tempo pessoal no Facebook podem indicar uma estruturação ligada a marcações na vida de cada usuário, a acontecimentos individuais e, inclusive, a mudanças sociais e externas. A partir desse tipo de indicação, é possível definir um trabalho de análise mais fecundo, que dê conta de reconstituir os elementos representativos de formas de vida observáveis no discurso dos participantes da pesquisa (LEJEUNE, 2014 [2008], p.189).

Visto que partimos da hipótese de que podemos perceber as linhas do tempo como construções auto/biográficas, é importante que uma série delas sejam analisadas. Uma das limitações metodológicas desta investigação é a impossibilidade de dar atenção sistemática a tudo o que diz respeito a um único indivíduo, ao conjunto de sua experiência e exposição pessoal na rede social, quando se trata das publicações de sua linha do tempo, desde sua primeira postagem até sua última. Considerando essa limitação, faz-se necessário o enriquecimento dado à análise por meio da leitura de algumas linhas do tempo, pertencentes a diferentes indivíduos e da escolha de publicações feitas nelas que possam ilustrar nossos argumentos. Desse modo, pretendemos assumir a posição de que “cada vida é relativizada e posta em perspectiva pelas outras” (LEJEUNE, 2014 [2008], p. 215). Mais detalhada e detidamente, como já foi explicitado, serão analisadas cinco linhas do tempo de indivíduos que aceitaram participar da pesquisa, voluntariamente.

Em resumo, trata-se de um exercício de leitura analítica e interpretativa das linhas do tempo, que coloca em evidência a instância da recepção88. Baseada em Paul Ricoeur, Arfuch

88 Sabemos que a interação na rede social estudada e, por conseguinte, a recepção, dá-se por meio de comentários,

afirma que o olhar hermenêutico é incumbido de articular o mundo do texto e o mundo do leitor, uma vez que a posição enunciativa do espaço biográfico leva em consideração sempre e, por outra parte, um “você”.

A modelização que opera no relato só ganhará forma no ato da leitura, como conjunção possível de ambos os mundos, mas o transcende em direção a outros contextos possíveis, entre eles o horizonte da “ação afetiva”. É que a leitura implica um momento de envio, no qual se torna uma provocação “a ser e atuar de outra maneira”. Assim, a prática do relato não somente fará viver diante de nós as transformações de suas personagens, mas também mobilizará uma experiência do pensamento pelo qual “nos exercitamos em habitar outros mundos estrangeiros a nós” (ARFUCH, 2010 [2002], p. 121).

Além disso, Arfuch, em sua análise das entrevistas, utiliza a expressão “vida a várias vozes” para tratar de um pressuposto de toda narração autobiográfica. Da mesma maneira que a autora acredita que em seu objeto de investigação tal pressuposição se dá explicitamente, observamos o mesmo desígnio nas linhas do tempo, como iremos tratar de apontar em nossa análise, tendo em vista sua natureza dialógica e a consideração de que aprendemos a viver por meio do contato com o relato da experiência alheia (ARFUCH, 2010 [2002], p. 185).

Ademais, Arfuch (2010 [2002]) nos alerta sobre a consideração de que não existe uma única metodologia privilegiada de análise:

Como acontece com outros gêneros e discursos, o tipo de material textual, o

corpus construído e o objetivo a alcançar impõem – ou sugerem – a forma e os caminhos de análise. O que talvez seja possível definir a priori seja aquilo que não deveria se fazer no trabalho com os relatos de vida produzidos em entrevistas: assumir sem precauções, à maneira da “mão de Deus”, o privilégio de aplanar, reduzir, elidir, glosar, cortar a palavra. Ainda que todo uso da citação, do fragmento, do enunciado faça dizer, e toda interpretação seja arbitrária, há graus dessa manipulação. A outra questão, já aludida, é a de considerar uma história como emblemática e autossuficiente para retratar todo o universo. Isso implicaria o risco de estereotipar no “caso” a multiplicidade do social. O relativo esgotamento da história de vida e sua substituição pelos relatos cruzados produzidos em entrevistas dão conta desse limite. Também não parece recomendável exercitar uma leitura translativa de imediata conclusividade, pela qual os casos se tornem simplesmente provas para uma demonstração (ARFUCH, 2010 [2002], p. 267; grifos da autora).

Podemos adaptar o que assevera a autora a respeito das entrevistas para o caso das linhas do tempo, que constituem um material textual bastante diverso e multifacetado. Apesar das bases teóricas às quais nos referenciamos, certamente nosso objeto de estudo impõe percursos de análise que vão se desenhando no decorrer de um processo, sem que seja completamente possível capturar o que nos aportarão as considerações finais a respeito dele.

estudar o desenvolvimento desses processos no Facebook, o que seria certamente objeto de apreciação para outro(s) trabalho(s). Por isso, destacamos o protagonismo do “mundo do leitor” / “da leitura”, como aquele que desejamos habitar em nossa análise.

Em suma, nossos procedimentos e protocolos de análise são realizados com base em interpretações feitas à luz das teorias apresentadas nos Capítulos I e II. Assim, colocamo-nos ao lado dos dizeres arfuchianos que asseveram: “Não renunciar ao dom da leitura é crucial como atitude diante de um corpus. Atitude literária por natureza, mas que às vezes se esquece nas ciências sociais, sob a pressão da grade, do marcador, do dado, da urgência classificatória” (ARFUCH, 2010 [2002], p. 278). Nesse sentido, será tomado o devido cuidado – cuidado este que é ao mesmo tempo um desafio – para que se mantenha uma distância crítica na corporificação analítica. O objetivo de nossa proposta é, portanto, confrontar significados que sejam passíveis de ser empiricamente demonstrados e apontados com base em marcos teóricos anteriormente explicitados, ao evitar e prescindir de uma imposição exterior e arbitrária (ARFUCH, 2010 [2002], p. 266).