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4.2 “O ESPÍRITO PAULISTA, PREVIDENTE, GENEROSO E NOBRE”

4.3. FACETAS DO FEDERALISMO PAULISTA

A crítica formulada por Fernando de Azevedo (1963, p. 622) às forças federalistas, foi fundamentada em seu livro “A cultura brasileira”, especialmente na parte terceira “A transmissão da cultura”, no capítulo III, intitulado: “a descentralização e a dualidade de sistemas”. Azevedo dimensiona o desenvolvimento dos sistemas de ensino no Brasil a partir do projeto político republicano, disputado no campo do Estado. Também considera determinante o modelo de reorganização da estrutura social e política, imposto pelas forças federalistas paulistas ao Estado republicano. Este debate apóia-se nos termos da oposição centralização versus descentralização e, sobretudo, na crítica às correntes políticas paulistas que saíram vitoriosas com a Proclamação da República.

A idéia em marcha, da unidade de direção do ensino ou, ao menos, da interferência do Governo central na educação primária e secundária, foi paralisada, no seu desenvolvimento, pela vitória obtida, com a mudança do regime, pelas reivindicações autonomistas, de que São Paulo se tornara, por força de sua expansão econômica, um dos principais focos de irradiação (AZEVEDO, 1963, p. 610).

Segundo essa visão, a vitória do princípio federalista que favorecera apenas o próspero Estado de São Paulo trazendo, em contrapartida, o aprofundamento dos problemas sociais, definiria, nos primeiros anos da república, um cenário político desfavorável à profunda reorganização dos sistemas de ensino, que a sociedade brasileira demandava:

Com a descentralização imposta pela vitória das idéias federalistas; com a desorganização econômica resultante da abolição do elemento servil, e com as lutas que se seguiram para a consolidação do novo regime, transferiram ao primeiro plano as questões essenciais de ordem política e financeira, a educação e a cultura, que só se expandiram nas mais importantes regiões econômicas do país, como São Paulo, puderam seguir, sem transformações profundas, as linhas de seu desenvolvimento tradicional, predeterminadas na vida colonial e no regime do Império (AZEVEDO, 1963, p. 626).

Ressaltando que a vitória federalista significou a permanência do que havia de mais retrógrado no pensamento político e intelectual à época, Azevedo (1963, p. 622), seguindo sua linha de raciocínio, afirma que as iniciativas para a renovação dos sistemas de ensino - dominados pelo espírito excessivamente literário e jurídico -, foram prejudicadas nas reformas

iniciais da república, sobretudo, pela “[...] vitória das tendências centrífugas dos regionalismos e a expansão crescente das autonomias estaduais [...]”, que mantinham a mesma estrutura política e modelo de ensino legados do regime imperial.

Do ponto de vista cultural e pedagógico, a República foi uma revolução que abortou e que, contentando-se com a mudança de regime, não teve o pensamento ou a decisão de realizar uma transformação radical no sistema de ensino, para provocar uma renovação intelectual das elites culturais e políticas, necessárias às novas instituições democráticas (AZEVEDO, 1963, p. 626).

Para Azevedo, os sistemas de ensino secundário e superior continuavam a alimentar as condições culturais e educacionais que reproduziam as desigualdades e os desníveis sociais, reflexo da vitória das forças políticas que defendiam o princípio do federalismo na primeira Constituição Republicana de 1891 e da ausência de iniciativa dessas elites. Com exceção da Reforma Benjamin Constant (de inspiração positivista), primeira reforma deste novo regime a introduzir os estudos científicos, ainda que, com o objetivo de conciliá-los aos estudos literários, nenhuma outra reforma educacional teria buscado alterar as bases deste ensino, ao longo da Primeira República.

Ressaltando a ausência de “política de cultura” por parte do governo republicano, Azevedo esboça o que ficou conhecido como modelo interpretativo azevediano. O autor descreve a situação de estagnação cultural e educacional dos sistemas de ensino, destinados a formar a “elite dominante” desde o império, como resultado da predominância de um modelo de ensino literário, apartado da pesquisa científica e da descentralização do ensino, que afetou, também, os níveis primário e normal expondo-os a inúmeras deficiências ao longo de todo esse período. O atraso imposto por esta situação aprofundava os desníveis culturais e econômicos entre as várias regiões do país e impedia a emergência do novo, dificultando a modernização do ensino e a implantação e efetivação de políticas democráticas e nacionalistas, emanadas do governo central, que o país demandava. No decorrer da Primeira República, até 1930:

[...] em lugar de uma ação única exercida pelo poder central, que orientava a distância toda a política escolar na direção das carreiras liberais sobre a base dos estudos literários, irrompeu, com o regime de descentralização, uma pluralidade de ações regionais, não divergentes, mas concordantes: as ações correspondentes a cada um dos Estados, dominados pela velha mentalidade coimbrã e influindo de perto, na mesma direção, sobre uma grande variedade de núcleos culturais (AZEVEDO, 1963 p. 623).

Em sua versão, que predominou nos meios oficiais, está presente a preocupação em difundir a memória de uma luta redentora em defesa da educação nacional que, em nome do progresso da nação, promoveu a superação da situação de estagnação em que se encontrava o ensino. Neste sentido, reduz a campos distintos e antagônicos os líderes do movimento de renovação educacional e os representantes do ensino tradicional. De um lado, o progresso, a renovação, o moderno e, de outro, a resistência do arcaico, do atraso, da tradição, dos regionalismos. As condições políticas, favoráveis a esse movimento ascensional e inexorável em direção a mudanças modernizadoras e rupturas com as forças tradicionais, dar-se-ia apenas com a Revolução de 1930.

Azevedo costura sua crítica a autonomia dos Estados que se mantinham responsáveis pela organização do ensino primário e da escola de formação de professores, desvinculando-se tanto do “patriciado rural” quanto da “burguesia urbana” e, sobretudo, das “tradições do liberalismo” federalista, a cujos princípios ele se opunha. Na memória que constrói da luta do movimento renovador contra as forças tradicionais, que deviam ser superadas, Azevedo parece não pertencer a nenhum grupo que ele próprio reconheça como elite. Além disso, desaparecem de sua análise a mobilização dos movimentos sociais e a instituição de novos processos educativos, na medida em que prioriza a ação política que emana do Estado para a sociedade. Não podemos esquecer que Azevedo fala a partir do lugar que ocupou, à frente das idéias de renovação, mas, também, como reformador que realizou políticas de reforma da instrução pública. Sua abordagem tornou-se hegemônica até, aproximadamente, a década de 1980 e cristalizou, na memória da educação, a imagem redentora do movimento renovador, atuante desde a década de 1920. Neste sentido, o papel que ele atribui a si mesmo nesse movimento e a oposição que amargou por parte da elite ligada à educação, colocam-nos o desafio de considerar seu campo de influência e de atuação, especialmente em São Paulo, Estado que se tornou o principal foco de irradiação do federalismo e, no qual, este mineiro, um estrangeiro em terras bandeirantes, construiu boa parte de sua carreira no magistério público nas décadas de 1920 a 1940.

Nos vários momentos em que participou do processo de renovação educacional e político paulista, destacou-se como professor da Escola Normal e, posteriormente catedrático da Faculdade de Educação; mas, sobretudo, como Diretor da Instrução Pública. O movimento educacional, por sua vez, manteve-se expressivo e atuante em São Paulo nesta época de contendas e dissensões, e produziu registros de suas estratégias, como que construindo uma outra

memória, questionadora das bases desse pensamento, reafirmando o seu compromisso com a escola e a sociedade paulista.

Schwartzman (1975, p. 120) analisa a situação de São Paulo, citando J. L. Love (1971) e aponta uma aparente marginalidade deste Estado, tanto no contexto político quanto no econômico:

É clássica a interpretação do sistema político da Primeira República em termos do ‘eixo café com leite’, as oligarquias de Minas e São Paulo. De fato, a importância política de São Paulo nunca correspondeu ao que seu crescente peso econômico sugeriria. Apesar do fato de o Partido Republicano Paulista ter apoiado todos os candidatos presidenciais vitoriosos desde 1898, exceto Hermes da Fonseca, o fato é que somente Campos Sales (1898-1902), Rodrigues Alves (1902-1906) e Washington Luís (1926-30) eram daquele Estado. A esta ausência da presidência no período de 1910 a 1926 correspondeu uma participação reduzida nos ministérios, tal como os dados de Love evidenciam.

A política de impostos à importação e à exportação também passava a impressão de que São Paulo sustentava o restante do país, pois,

[...] representava, de fato, um mecanismo de transferência de renda dos Estados exportadores, para aqueles onde a força política podia influenciar na alocação de recursos federais. Esta situação era, sem dúvida, sentida em São Paulo, onde a parábola da locomotiva e seus vinte vagões era corrente (SCHWARTZMAN, 1975, p. 122).

A polêmica em torno da marginalidade do Estado é acentuada pela afirmação do autor: “De fato, a importância política de São Paulo nunca correspondeu ao que seu crescente peso econômico sugeriria” (SCHWARTZMAN, 1975, p. 122).

Funcionando como um pólo financeiro e cultural, São Paulo tornava-se cada vez mais atrativo. Em suas memórias, Azevedo (1971, p. 53) afirma que o que o trouxe a São Paulo, em 1917, cidade “[...] onde fiz quase toda minha carreira no magistério e no jornalismo, como escritor, homem público e reformador da educação” foram as bodas com uma moça paulista, cidade onde constituiu família e onde nasceram três de seus quatro filhos. Mas, ao discorrer sobre as articulações que o levaram a atuar profissionalmente neste Estado, como homem público e jornalista, descreve como se aproximou das pessoas certas para sobreviver, politicamente, no tradicional universo paulista. Assim, em 1918, ainda muito jovem, aos 24 anos, assumiu a cadeira da Disciplina de Latim e Literatura na tradicional Escola Normal da Praça, na ocasião, o mais

jovem professor daquela casa, com o apoio do professor Alarico Silveira que se tornou secretário do Interior de Washington Luís, recém empossado Presidente de Estado. Sobre Alarico, a quem fora apresentado por intermédio de seu amigo José Lannes, afirma ser uma pessoa: “[...] que eu certamente gostaria de ouvir, por ser um homem de grande cultura e erudição, sobretudo nos domínios da língua e da história de S. Paulo”.

Sua experiência profissional como jornalista serviu para que se familiarizasse com os círculos políticos paulistas, mas, também, para tornar-se conhecido entre eles. Iniciou, assim, em 1917, sua carreira no jornal do Partido Republicano Paulista (PRP), Correio Paulistano, experiência que seria “muito útil para o conhecimento dos homens e dos acontecimentos” (AZEVEDO, 1971, p. 63). Nesse, que seria o ponto de encontro preferido dos políticos, à época, travou contato com republicanos históricos, paulistas como Menotti Del Picchia, Carlos de Campos, Fernando Prestes e seu filho Julio Prestes.

Convidado por Julio de Mesquita Filho tornou-se redator do jornal O Estado, de 1923 a 1926. Por intermédio de seu diretor, aproximou-se de outros escritores, intelectuais e políticos paulistas ilustres: Nestor Pestana, Plínio Barreto, Antonio Mendonça, Leo Vaz, Oscar Freire, Rocha Lima, Artur Neiva e Amadeu Amaral. O conhecido inquérito que coordenaria, em 1926, foi o germe da discussão sobre a necessidade de implantação da Universidade de São Paulo, cujo projeto, por ele mesmo elaborado em 1934, foi alvo de disputas políticas intensas. Sobre esse assunto, assim se pronuncia:

Mas desde já preciso lembrar que o grande animador dessa campanha foi Júlio de Mesquita Filho. A criação de uma Universidade de São Paulo era um velho sonho que acalentava desde suas viagens à Europa e ainda não encontrava, entre nós, repercussão favorável. Se é que (o que é exato) não esbarrava numa oposição dissimulada ou aberta das escolas superiores existentes. Júlio de Mesquita Filho e eu, amigos e quase da mesma idade, juntamo-nos no O Estado para travarmos a nossa luta até a vitória final. Partilhava suas idéias que provinham de uma experiência comum, a do convívio mais estreito com a cultura européia: ele, com suas viagens à França, e eu, sem sair do país, pelo contrário, no colégio dos jesuítas e na ordem religiosa, com mestres franceses, italianos e alemães (AZEVEDO, 1971, p. 72).

Compartilhando suas idéias com as de Julio de Mesquita Filho, Azevedo o reconhece como o grande mentor da Universidade de São Paulo. A influência cultural européia que Mesquita Filho havia cultivado afastava-o dos ideais de paulistas conservadores e reacionários

contudo, segundo Azevedo, aproximava-o de suas idéias renovadoras, ainda que, conforme lembra o próprio Azevedo, considere-se sua formação marcadamente católica e sua experiência como seminarista na ordem religiosa dos jesuítas. O inquérito, realizado em 1926, que estimulou este polêmico projeto político, dividiu a intelectualidade paulista e mobilizou as forças conservadoras, de orientação católica, contra as reformas propostas.

Em relação ao embate provocado pelo inquérito, Azevedo (1971, p. 75) afirma tratar-se “a princípio de uma luta entre educadores, que se definia por um conflito de idéias”. Há um esforço, de sua parte, por descrever um cenário absolutamente desfavorável às transformações dos sistemas de ensino, repleto de conspirações que se sucediam, do qual foi o maior alvo e que teve como principal batalha a implantação do sistema de ensino universitário. Um dos focos desta disputa, que demonstra ter atingido o plano pessoal, encontrava-se na Escola Normal da Praça. Dentre os educadores que o hostilizavam de todas as formas, estão os Profºs. Américo de Moura e Firmino de Proença, influentes professores da Escola Normal e Pedro Voss, que dirigiu esta escola em 1924. Esses seguiriam em sua batalha contra o Instituto de Educação e a fundação da USP, delineando pistas, na versão de Fernando de Azevedo, do grupo paulista considerado mais conservador e reacionário, com destacada investida conservadora por ocasião da implantação do Código de Educação, da instalação do Instituto de Educação e da fundação da USP.

Ao se distanciar das propostas da elite que considerava atrasada, Azevedo (1971) buscava legitimar o conjunto de sua obra reformadora. Difundia a imagem do professor estritamente voltado a idéias de renovação educacional e do técnico que mantinha total independência em relação às forças políticas tradicionais, vítima de incompreensões e injustamente perseguido em seus propósitos de reorganização da educação nacional.

Desta forma, assume o cargo de Diretor Geral da Instrução Pública, em São Paulo, em 1933, em meio a contendas e conflitos decorrentes da derrota do Movimento Constitucionalista. Neste período, o movimento conservador, liderado pelos ideólogos do catolicismo, cresceu e intensificou-se a partir das medidas desencadeadas pela Revolução de 1930; atingindo o seu auge com a publicização do Manifesto da Educação Nova, em 1932. De volta a São Paulo, após a reforma educacional que realizou no Distrito Federal, de 1927 a 1930, Azevedo testemunhou a derrota das forças paulistas que sustentavam a revolução constitucionalista e, novamente, contando com o apoio do grupo político ligado ao jornal O Estado de S. Paulo - Armando de

Sales Oliveira (diretor do jornal à época), Meireles Reis, Sampaio Dória e Teodoro Ramos - Azevedo assume a Diretoria Geral da Instrução Pública paulista elaborando o Código de Educação e, conforme ressalta, o primeiro no Brasil.

Um código em que se fizesse tábua rasa de todas as leis e regulamentos escolares preexistentes. Um código que, publicado em volume de papel-arroz, pudesse cada professor levar no bolso, e cada professora, na sua própria bolsa. O que me esforçava por fazer, era substituir um enorme acervo disparatado de leis e regulamentos por uma única lei, de fácil consulta e acessível a todos: o Código de Educação (AZEVEDO, 1971, p. 117).

Pensando em fomentar a formação, em nível superior, dos professores primários, o Código efetivou a separação entre o ginásio e o Curso Normal estabelecendo, por força de lei, que a opção para essa formação profissional ocorreria somente após o cumprimento do curso ginasial completo, em cinco anos, ou seja, quando o aluno estivesse com idades entre 15 ou 16 anos.

Novamente, Azevedo remete seu leitor ao contexto da Escola Normal, de onde emanavam conspirações e resistências às transformações radicais que a nova legislação promoveria na estrutura e nas técnicas de ensino. Manifestações que teve que vencer uma a uma: “velhos inspetores e professores, sobretudo da Escola Normal, retrógrados, que há muito se haviam instalado nos preconceitos e na rotina, como em seus domínios próprios.” Azevedo reconhece que reagiam não sem razão, pois a reforma proposta alterava a rotina, a estrutura e as técnicas, “tradicionais, e já obsoletas” e atingia em cheio a Escola Normal, “[...] pela, audaciosa (segundo eles) ruptura com o passado e o tradicional e pela investida, não menos desabusada, para uma nova ordem de cousas” (AZEVEDO, 1971, p. 117).