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NORMALISTAS PAULISTAS – OS NOVOS BANDEIRANTES

2.1 “CONSUMOU-SE NOS ARRAIAIS DA INSTRUÇÃO UM ATO DE LÍDIMA JUSTIÇA”

2.2 NORMALISTAS PAULISTAS – OS NOVOS BANDEIRANTES

Quando nos reportamos ao movimento de ex-alunos, normalistas e professores paulistas, entretanto, dois aspectos merecem uma ressalva. Primeiro, suas iniciativas em defesa da Escola Normal de São Paulo não se originaram a partir do episódio relatado, nem tampouco, restringiram-se à década de 1930 e, segundo, a escola não é o único lugar onde o modelo escolar paulista é cultuado. Outras instâncias sociais e associações de classe corporificaram o mito do modelo escolar paulista, em seus rituais, como a grande imprensa paulista, a Associação Beneficente do Professorado Público do Estado de São Paulo (1902-1919), além de entidades e

intelectuais ligados à Igreja Católica, como a Liga do Professorado Católico, criada em 1919. No âmbito escolar, as estratégias de coesão social, promovidas por meio das atividades pedagógicas realizadas no interior da escola pública, que traduziam programas escolares disciplinadores e a implantação de métodos racionais de ensino, incitaram educadores, políticos e profissionais liberais na direção do projeto da modernidade e disseminaram-se nas escolas, no início do século XX, demarcando a cultura escolar:

Quase litúrgicos, os esforços rituais e cerimoniais desdobram-se durante o nacionalismo da década de 1910. Os grupos escolares são pensados como centros de socialização política e combate ao inimigo interno, objetivando integrar na comunidade nacional, imigrantes e descendentes, através da exaltação das características brasileiras e da geografia e história nacional (MONARCHA, 1999, p.235).

A exemplo da cultura escolar que se desenvolvia nos nascentes grupos escolares, as sucessivas manifestações de alunos, ex-alunos e professores, em defesa desta escola, remontam ao início do século XX. Além disso, são frutos de movimentos que, de certa forma, contribuíram para a consolidação da profissão docente como categoria profissional na sua relação com o Estado promovendo, ao mesmo tempo, o mito do modelo escolar paulista. Este paradoxo foi abordado em estudo sistematizado por Catani (1995b, p. 8) na pesquisa que realizou sobre a Revista do Ensino, uma publicação da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo, no período de 1902-1919:

As informações acerca do grupo de integrantes da Associação faz ressaltar sua origem comum – a Escola Normal – enquanto que o ideal que os congregava era o de poder recuperar para a instrução paulista as luzes do “período áureo”. Concebiam-se como herdeiros de uma tradição que, sem ser antiga, estava, no início do século, ameaçada. A excelência do sistema educacional paulista era, então, o móvel da luta a ser empreendida. Essa luta se fazia ora contra os legisladores, ora contra o próprio Estado, mas, nesse último caso, de modo ambíguo, num discurso que preservava o tom conciliatório dos funcionários para com o empregador.

Refletir sobre o papel da Associação (considerada “a primeira do gênero em São Paulo”) e dos professores que construíram sua identidade profissional em torno das propostas debatidas por esta entidade, nas décadas iniciais da república, como fez Catani, permite-nos problematizar o processo de escolarização no Brasil sob o ponto de vista das condições históricas que originaram

a mobilização dos professores por melhores condições de trabalho e pela conquista de espaço político e de visibilidade à sua causa. Trata-se, também, da origem de um movimento que ganharia novas nuanças, no pós-30, com a consolidação da profissão docente como categoria profissional e o processo de escolarização de práticas sociais, instaurado no final do século XIX.

No contexto em que surge a Associação, em São Paulo, o grupo que se auto-intitulava “normalistas” pode ter se abrigado na Associação e na Escola Normal transformando-as em lugares privilegiados para o cultivo das tradições ameaçadas pelo positivismo, incorporado na Reforma Benjamin Constant, em 1891, a primeira reforma do período inicial do novo regime. Ainda que, segundo Azevedo (1963, p. 617), os princípios teóricos do positivismo tenham penetrado no Brasil antes como uma maneira de pensar do que como método de investigação, tendo acarretado, desta forma, mais armadilhas do que mudanças ao modelo de ensino, até então “predominantemente literário” identificado à mentalidade do império. Desta forma, o mito da escola normal paulista insurgia no meio social como peça fundamental de coesão, inscrita no processo civilizatório e modelo que cabia à escola disseminar. Segundo Catani (1995b), é uma tradição que se coloca antes mesmo de tornar-se antiga e, talvez, tenha contribuído não apenas para a consolidação da profissão docente como categoria profissional como, também, para a escolarização de práticas sociais.

O culto à memória desta escola encontrava eco nas realizações e práticas de educadores que se destacaram nos períodos de implantação e consolidação do modelo escolar paulista. Além disso, outras instituições, incorporadas às atividades escolares, contribuíram para a construção da memória e da auto-imagem positiva do normalista. Denominados “precursores” e “inovadores”, Antonio Caetano de Campos, Gabriel Prestes e Oscar Thompson eram constantemente evocados como exemplos, desde as primeiras décadas do século XX:

Anualmente, um grande contingente de normalistas ingressa no magistério primário. Inquieta com a possibilidade de perder-se a tradição, a pequena elite à frente da hierarquia da Diretoria Geral da Instrução Pública e da cultura normalista procura imprimir continuidade entre o presente e um passado recente e digno de memória (MONARCHA, 1999, p. 240).

Dos três educadores, cujos nomes estão inscritos na memória da fase áurea da educação paulista como os grandes responsáveis pela implantação das primeiras reformas republicanas, o único que não é oriundo deste Estado é, justamente, Antonio Caetano de Campos, reconhecido

como pioneiro (RODRIGUES, 1930). Nascido em uma família pobre, em São João da Barra, Estado do Rio de Janeiro, a 17 de maio de 1844, estudou com dificuldade, contando com o apoio financeiro do Barão de Tautphoeus, que se tornou também seu conselheiro. Formou-se em medicina na capital do Império, em 1867, e iniciou sua carreira em São Paulo, em 1870, aos 26 anos, atendendo em uma clínica particular e em hospitais, como a Beneficência Portuguesa e a Santa Casa de Misericórdia, logo após tentativa frustrada de lecionar na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Instalado em São Paulo, ingressou no Colégio Pestana, dirigido por Rangel Pestana e sua esposa e na Escola Neutralidade, onde lecionou química, física e ciências naturais.

No anseio de perpetuar a memória do grande mestre, ex-alunos, políticos, professores e diretores paulistas publicaram inúmeras biografias, algumas com o evidente propósito de elogiar ou propagar a história de Caetano de Campos. Os discursos proferidos por ocasião das cerimônias em homenagem ao emérito educador, são apresentados em livros, folhetos comemorativos, poliantéias, periódicos, especialmente na década de 1940, quando os rituais comemorativos em torno do ensino normal intensificaram-se.

Dentre os autores que abordam a trajetória de Caetano de Campos, destaco Warde e Gonçalves (2002) que, no verbete publicado no Dicionário de educadores do Brasil, buscam compreender as razões que elevaram seu nome ao patamar de um mito, cultuado por sucessivas gerações. Neste sentido, torna-se pertinente a esta pesquisa a reflexão que trazem a respeito da repercussão que alcançou sua efêmera, mas bem-sucedida carreira no magistério, interrompida precocemente pela morte repentina que o arrebatou aos 47 anos. Segundo as autoras:

Sem dúvida, Antonio Caetano de Campos é um caso peculiar na história da escola paulista e quiçá nacional: um período tão curto à frente da Escola Normal bastou-lhe para uma notoriedade que atravessa mais de um século e que foi, ardorosamente, alimentada por aqueles que com ele conviveram ou imediatamente o sucederam – especialmente seus alunos da primeira turma formada em 1890 pela Escola Normal. Peculiar, também, porque não foi sequer alvo das comuns estratégias adotadas pelos escolanovistas paulistas dos anos 20 – apagamento ou detratação (WARDE; GONÇALVES, 2002, p. 105).

Explicitando algumas hipóteses sobre as razões de sua unanimidade, afirmam que as duas experiências como docente em escolas que adotavam métodos e técnicas progressistas e modernizadoras; além do convívio com a elite intelectual paulista que assumiria, progressivamente, a liderança cultural e política em São Paulo, foram fundamentais tanto para o

aprimoramento de sua visão pedagógica, como para sua inserção entre os influentes políticos republicanos. Desta forma, freqüentou os mesmos círculos dos republicanos paulistas, como Cesário Motta, Rangel Pestana, Prudente de Moraes e Américo Brasiliense, dentre outros, o que culminou com sua indicação em 13 de janeiro de 1890, ao cobiçado cargo de diretor da Escola Normal. O pedido partiu de Rangel Pestana à Prudente de Moraes, então presidente do Estado:

Foi essa convivência de quase duas décadas que potencializou o nome de Caetano de Campos para o cargo de Diretor da Escola Normal. Em virtude dos planos adotados pelo primeiro Governo republicano de São Paulo para a instrução pública, tratava-se do mais importante cargo a ser assumido, pois da Escola Normalseriam irradiadas as demais mudanças projetadas para o ensino paulista (WARDE; GONÇALVES, 2002, p. 105).

As autoras acentuam que a inexistência de registros sobre possíveis contribuições às escolas onde lecionou e sua ausência em discussões sobre questões educacionais, na própria imprensa paulista, à época; sua tímida atuação na concepção da ampla reforma da instrução pública, realizada em 1890, e sua curta permanência de apenas 20 meses na direção da Escola Normal não justificaria a notoriedade que adquiriu entre os educadores paulistas. Rangel Pestana, por sua vez, foi o grande responsável pela inserção das reformas educacionais nos temas de grande interesse da imprensa e da sociedade paulista. Além disso, “foi Rangel Pestana o orientador do Governo do estado para converter a formação do mestre em pedra angular da instrução pública, ponto de partida e centro irradiador da formação de uma nova mentalidade no que tange à educação do povo” (WARDE; GONÇALVES, 2002, p. 107).

A considerar que Caetano de Campos foi o executor da reforma de 1890, não concebida por ele, mas por Rangel Pestana; e que sua morte repentina tenha ocorrido no momento inicial de implantação de mudanças substanciais para a instrução pública, causando grande comoção social: Caetano, enfim, morreu na hora certa e nas condições adequadas para se tornar um herói da causa republicana e da escola pública. Considerando-se as decepções que a República foi crescentemente provocando, Caetano de Campos parece ter sido preservado por ter participado dela em tempos ainda idílicos. Foi o herói adequado para a fabricação de um mito fundador (WARDE; GONÇALVES, 2002, p.106).

No retrospecto que faz do ensino público paulista, em 1930, momento em que participa ativamente das atividades em defesa da escola normal, João Lourenço Rodrigues atribui à

dedicação dos normalistas, grupo do qual fazia parte, o “primeiro surto de entusiasmo” no processo de organização da instrução popular em São Paulo, ocorrido no início do século XX. Atendendo ao chamado do grande mestre Caetano de Campos, João Lourenço constrói a imagem mítica de um redentor:

E elles foram.

E elles souberam honrar a confiança do seu Mestre. Partiram sosinhos, porque não havia ainda, então, os voluntários da nobre cruzada, que só mais tarde foram apparecendo.

Pelejaram sem competidores, quando não havia postos de evidência a conquistar. E o seu enthusiasmo operou milagres!

Relegada até então num plano secundário e obscuro, a classe do professorado público delle emergiu em plena claridade, numa como transfiguração.

De suas fileiras sahiram os Directores das Escolas-Modelo, dos Grupos Escolares, das Escolas Normaes e dos Gymnasios; dellas sahiram Inspectores Districtaes, membros do Conselho Superior, Directores Geraes da Instrucção Publica e até representantes do povo no Congresso. A fama da sua capacidade transpôz as lindes do Estado e de outras unidades da Federação foram solicitados os seus serviços.

E elles foram ainda – novos bandeirantes – levar à juventude de outros Estados os grandes benefícios do ensino reformador (RODRIGUES, 1930, p. 424).

O surto de entusiasmo que arrebatou o magistério paulista (segundo Rodrigues), transformando os normalistas em “os novos bandeirantes” dos anos iniciais da república enraizou métodos e técnicas de ensino e, acima de tudo, um modo de conceber a educação. Monarcha (1999) aponta as instituições sociais que foram incorporadas à cultura escolar, compondo os rituais e as atividades pedagógicas do período e demonstrando o que Burke (1992a, p. 239) chama de diferentes “meios de organização da transmissão da memória”, situada em tempos cronológicos e espaços específicos distintos. São elas: “grêmios normalistas, estandartes, hinos normalistas, jornais estudantis, conferências, discursos de formaturas, comemorações anuais, monografias históricas, poliantéias comemorativas, bustos [...]” (MONARCHA, 1999, p. 240).

Nas décadas posteriores a 1930, o culto ao passado era mantido por meio do fortalecimento destas instituições escolares que orientavam, absorviam e registravam as experiências cívicas e educativas desenvolvidas no recinto escolar, por um lado, e por outro, pela incorporação renovadora de tantas outras, como é o caso da Biblioteca Infantil “Caetano de Campos”, que retomarei adiante, e que foi tema de um amplo debate social nas décadas de 1930 e 1940.

A par das práticas sociais representadas no discurso cívico e nacional, a escola paulista

escola vanguardeira constituiu-se no lugar privilegiado da memória daqueles que por ela

passaram como alunos e/ou professores, supervisores e, porque não dizer, do poder público com as reformas educacionais que deixaram, igualmente, suas marcas e representaram grupos sociais, concepções educacionais, conflitos e tensões próprios deste período de mudanças.

Em 1946, durante o centenário da escola normal, comemorado efusivamente pela sociedade paulista, Almeida Junior registrou, ainda, o percurso da “escola vanguardeira” como o relato de uma epopéia bandeirante, ressalvando sua abrangência nacional,

[...] constitui nestes últimos cinqüenta anos a réplica pedagógica do bandeirismo” [...] “Começou espalhando professores primários dentro do Estado, de cidade em cidade, de bairro em bairro. Continuou a espalhá-los, depois, através de escolas que dela se formaram à sua imagem e semelhança: as normais ‘secundárias’ de São Carlos e de Itapetininga; as dez normais ‘primárias’, de 1911, distribuídas estrategicamente por Oscar Thompson; e, mais tarde, as sete dezenas de outras oficiais e livres, jogadas aos quatro ventos. E não parou por aí. Seus filhos ou seus netos, atravessando a fronteira paulista, foram organizar escolas primárias na Marinha; foram a Santa Catarina, a Mato Grosso, ao Ceará, ao Espírito Santo, a Pernambuco, ao Distrito Federal, a Goiás, ao Rio Grande do Sul, ao território de Ponta Porã. Certas vezes, não tendo ela ido aos estados, os estados vieram a ela. Sem falar no contágio pelas leis e pela literatura. Creio não exagerar dizendo que esse prestígio e essa irradiação contribuíram para a unidade espiritual do país (NOTAS – Escola Caetano de Campos, 15/12/1939).

Percebe-se que Almeida Junior revive as reformas republicanas (fazendo coro com ex- alunos e a intelectualidade paulista), como um momento marcante do centenário da escola normal e, ao atribuir a esta escola o modelo integrador da “unidade espiritual do país”, atualiza os lugares da memória (NORA, 1933) da educação paulista. Destinada a ser escola modelo para a formação de professores, a Escola da Praça, como passou a ser carinhosamente chamada por normalistas e professores a partir de 1894 atendia, em parte, aos anseios educacionais da sociedade, de expansão do ensino básico, público e laico, nos moldes republicanos.

2.3 ASPECTOS ORGANIZATIVOS E RITUALÍSTICOS DA ESCOLA NORMAL NO