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2 A PERSPECTIVA DE MICHEL BALINT: MÚLTIPLOS ASPECTOS DA

2.6 A FALHA BÁSICA

Balint observou duas dimensões diversas no trabalho analítico. Uma delas tem na interpretação em palavras um instrumento eficaz. O paciente se comunica usando as palavras, compondo um discurso verbal sobre o qual incide a interpretação em palavras do analista. O paciente pode ou não encontrar sentido na interpretação, prosseguindo no trabalho analítico. Na pior das hipóteses, o paciente pode não encontrar nenhum sentido na interpretação, descartando-a. Nesse nível, entretanto, uma interpretação permanece sempre uma interpretação - uma sentença em palavras com algum sentido. Balint refere-se a essa dimensão do trabalho analítico como nível edípico.

Em sua experiência clínica, entretanto, observou em alguns casos, uma súbita mudança na atmosfera analítica. As interpretações do analista não são mais entendidas pelo paciente como interpretações. São experimentadas como ataque, demanda, insinuação, grosseria, insulto injustificados, injustiça, completa desconsideração, ou ainda como algo muito prazeroso e gratificante, confortante ou até mesmo excitante. Algumas palavras tornam-se imensamente importantes e poderosas, sendo que ao seu significado convencional "adulto" aderem-se poderes desproporcionais. Outras perdem seu sentido ou nem são consideradas. Não só as palavras, mas gestos casuais do analista podem assumir uma importância decisiva no processo analítico. Além disso, o paciente parece captar o que se passa com o analista, demonstrando saber cada vez mais a respeito dele. Balint chega a afirmar que esse aumento de sensibilidade pode parecer proveniente de um talento misterioso do paciente, dando a impressão de fenômenos de telepatia ou clarividência (BALINT, 1955). Porém, ainda que as percepções do paciente sejam, em geral, corretas e verdadeiras, são sempre entendidas como algo que lhe diz respeito. O paciente percebe os mais íntimos sentimentos do analista entendendo, entretanto, que esses sentimentos foram gerados por ele, ou a ele se referem.

Se o analista não consegue compreender a situação do paciente, este não se zanga, nem lhe faz críticas, como seria esperado no nível edípico, mas sente-se vazio, numa sensação de morte. Tudo é aceito, sem muita resistência, mas não produz mudança na sensação do paciente de uma “falha” dentro de si. Balint propõem nomear essa dimensão do trabalho analítico de área da “falha básica”. Justamente porque contempla

uma sensação de uma falha dentro de si, descrita por muitos desses pacientes . Refere-se, também, ao uso do termo “falha” em geologia, significando súbita irregularidade numa estrutura total, imperceptível, que, diante de pressão ou força pode levar a ruptura, alterando profundamente a estrutura total. Já o adjetivo “básica” tenta contemplar a qualidade de elementar, simples e primitivo desse nível. Afirma tratar-se de eventos da área da psicologia bi-pessoal, anterior ao nível da triangulação edípica, com estrutura de conflito. É interessante a atenção que Balint dá a necessidade de nomear esse nível a partir de suas características próprias, evitando nomeá-lo como nível pré-edípico, pré-verbal ou pré-reflexivo. Isso indica sua compreensão da falha básica não apenas como um nível do desenvolvimento anterior ao nível edípico. Acredita que ela possa coexistir com o nível edípico, deixando em aberto a possibilidade de existência de períodos nos quais a mente conheça apenas um dos dois níveis.

A falha básica poderia ser equacionada à perda do amor primário, ajudando-nos a compreender a necessidade da regressão como instrumento do trabalho analítico. Para Balint, em muitos casos, os padrões de relação objetal compulsivos do paciente não adaptados à realidade originam-se como reação à falha básica. Nesses casos "as interpretações terão um poder incomparavelmente menor, pois não existe, no sentido estrito, um conflito ou complexo para resolver, e na área da falha básica as palavras são instrumentos não muito confiáveis" (Balint, 1968, pág. 152). Então, outros agentes terapêuticos devem ser considerados. Na opinião do autor, é importante ajudar o paciente a desenvolver uma relação primitiva na situação analítica. Essa relação deve corresponder ao padrão compulsivo do paciente, devendo ser mantida até que ele possa descobrir novas possibilidades de relação objetal. Essa descoberta depende da inativação da falha básica, pela sua cicatrização. Isso é possível pela regressão do paciente à situação de origem de seus padrões compulsivos. Essa regressão permitirá ao paciente experimentar formas anteriores a tais padrões, possibilitando um recomeço. O novo começo, assim, seria alcançado a partir da regressão do paciente a uma forma de relação primária, em que o analista funcionaria como uma substância a ser investido pelo amor primário do paciente. Segundo Balint, o analista deve funcionar como provedor de tempo e meio. Um aspecto importante é que o analista, como uma substância, não tem obrigação de compensar as privações precoces do paciente, fornecendo-lhe mais cuidado, amor e afeto do que o

ambiente lhe ofereceu originalmente. "O que o analista deve fornecer - e, se possível, durante apenas as sessões regulares - é suficiente tempo livre de tentações extrínsecas, estímulos e exigências, inclusive as originárias do próprio analista"(Balint, 1968, pág. 165). Nesse sentido, poderíamos dizer que o analista deve fornecer ao paciente a possibilidade de exercer a modalidade do pré-prazer. Isso permitiria ao paciente descobrir o seu próprio caminho para o mundo dos objetos, livre de pressões excessiva de forças externas a ele.

Nesse regresso à falha básica, para que um novo começo seja possível, o paciente precisa da compreensão do analista. Compreensão que, nesse nível do trabalho analítico, não precisa ser dada ao paciente na forma de interpretação, mas sim na propiciação de uma atmosfera adequada, livre de estimulações excessivas e digna de confiança.

3 DONALD WINNICOTT - REGRESSÃO À DEPENDÊNCIA E A SUBSTÂNCIA