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2 A PERSPECTIVA DE MICHEL BALINT: MÚLTIPLOS ASPECTOS DA

2.3 ORGANIZAÇÕES PRÉ-GENITAIS DA LIBIDO

"A descoberta de um objeto é na verdade uma redescoberta" Freud (1905)

A diferenciação das formas de viver o instinto na infância e na vida adulta traz novos elementos para a compreensão da economia libidinal em funcionamento nas formas de relação entre os indivíduos. Porém, Balint (1935) acredita que o desenvolvimento dos objetivos sexuais não deve ser confundido com o desenvolvimento das relações de objeto sexuais. Afirma que na teoria freudiana tais desenvolvimentos são descritos como paralelos, carregando implicitamente a idéia de que a natureza biológica

do instinto dominante em cada fase do desenvolvimento, cuja gratificação é a mais importante por causar o maior prazer, determina a forma das relações de objeto da criança. Esse paralelo pode ser observado pelo uso coloquial dos termos oral, anal, genital, para se falar da primazia de componentes de instintos, mas também para falar de formas de relação, ou seja, de amor oral, anal, etc. Desse modo, o carro chefe do desenvolvimento infantil seria a mudança dos objetivos instintuais determinados pelo primado das zonas erógenas, ou seja, o aspecto biológico. Balint afirma que o motivo dessa sucessão nunca foi tratado seriamente pela teoria. Por isso, acha importante pontuar que a relação da criança com seu objeto de amor não emerge espontaneamente de bases biológicas, mas é determinada pela sua história individual.

Aponta que a teoria da organização pré-genital é baseada em poucos instintos componentes ligados às zonas erógenas, sendo que outros componentes instintivos não tem suas mudanças ao longo do desenvolvimento contempladas ou são considerados como derivados necessariamente desses componentes, como é o caso do sadismo e da ambivalência, por exemplo. Sobre a existência de estágios preliminares da relação de objeto - o auto-erotismo e o narcisismo - Balint afirma que são hipóteses levantadas a partir da analise das neuroses, pelos tipo de relações de objetos construídas por pessoas incapazes do amor genital ou amor ativo. Assim, a teoria das organizações pré-genitais da libido, surgindo da análise de adultos neuróticos, não estaria baseada na situação infantil original. Seria necessário, portanto, distinguir a situação infantil original, na qual a criança vivia antes do trauma, daquela que se manifesta mais tarde clinicamente na neurose do adulto. Balint entende que tais situações podem ser análogas ou mesmo idênticas, mas não o são necessariamente.

A análise de crianças tem mostrado o quão cedo uma neurose pode ocorrer, mesmo nas fases pré-genitais. Tem mostrado também que a neurose infantil não é menos complexa que a dos adultos. Balint afirma que isso mostra que as relações de objeto das crianças se assemelham em muitos aspectos às dos adultos. Pensa que nenhum analista de crianças daria por encerrado um tratamento se a criança apresentasse características de relações objetais pré-genitais tais como "sadismo anal", por exemplo. Entende que mesmo numa criança tais características não podem ser consideradas como componentes naturais de uma fase do desenvolvimento mental, devendo ser analisadas, entendidas,

interpretadas e resolvidas.

Balint observou que sempre que uma atividade auto-erótica aparece em análise, seja adulta ou infantil, está longe de ser percebida como uma atividade sem objeto, sendo entendida e tratada como um remanescente de amor objetal certamente desapontador. Acredita que a observação de crianças saudáveis confirma sua hipótese. Existe na criança desejos de ternura que cumprem um importante papel. Esses desejos são sempre dirigidos a objetos. Também o ódio e a agressividade podem sempre ser referidos a algum evento anterior, tendo explicação na história individual da criança. O auto-erotismo, que praticado veementemente e não de maneira livre e de brincadeira, aparece como uma expressão de defesa, de amarga independência conquistada, revelando sempre uma forma de consolo relativa à perda do objeto. Mesmo Freud afirma que o erotismo oral, o clássico exemplo de auto-erotismo, originalmente existe como uma relação objetal:

Muitos componentes instintivos, tais como o sadismo, possuem um objeto

desde o começo. Outros, mais diretamente conectados com determinadas zonas

erógenas no corpo, apenas tem um objeto no começo, enquanto ainda estejam dependentes de funções não sexuais, abrindo mão dele assim que se tornam independentes. (...) O impulso oral se torna auto-erótico. Mais tarde, o desenvolvimento tem, dizendo de forma mais concisa quanto possível, dois objetivos: primeiro, renunciar ao auto-erotismo, abrir mão novamente do objeto encontrado no próprio corpo da criança, novamente na troca por um objeto externo... (FREUD apud BALINT, 1935. p.59, tradução minha).

Balint acredita que a relação de objeto é primária. Entende que deve ser levado a sério o que foi descrito por Ferenczi em Thalassa: que a relação objetal predomina nos estratos mais profundos da mente. Acredita que essa relação primordial pode ser observada em análise, ainda que seja difícil de ser descrita em palavras. Nas fases de novo começo, a natureza dessa relação de objeto primordial é expressa de maneira relativamente clara. A pessoa em questão não ama, mas deseja ser amada. Este desejo passivo é certamente sexual, libidinoso. O objetivo desses desejos, entretanto, não correspondem ao que se entende por sexual, mas à ternura, ao que Freud chamou de instinto inibido em sua finalidade. A não gratificação provoca reações passionais veementes, mas sua gratificação produz apenas uma sensação de bem-estar calmo e tranqüilo. Nesse momento, Balint se refere à confusão de línguas descrita por Ferenczi como explicando tal diferença. Confunde-se a forma de manifestação com o objetivo do instinto: assim espera-se que o que foi veementemente desejado provocará um prazer

veemente ou orgasmo. Balint reconheceu que desejos veementes demonstrados nos períodos de novo começo devem ser considerados normais. Aponta, entretanto, uma diferenciação entre desejos e demandas instintivas. Demandas instintivas veementes devem ser consideradas sinal de perigo. Delinearemos tal diferenciação mais a frente, quando tratarmos das diferenças entre regressão maligna e benigna.

O autor acredita que sadismo, agressividade, maldade não são impulsos primários, mas tem seus antecedentes: "É o sofrimento que torna alguém mal"(BALINT, 1935, pág.62, tradução minha). Afirma que as características polimorfo perversas e narcísicas são puramente descrições que dizem respeito a esfera dos instintos. Mas libidinalmente a criança é completamente dependente do cuidado do mundo externo, sem o qual ela simplesmente morreria. Esta é a tendência primária: devo ser amado sempre, em todo lugar, de toda maneira, em meu corpo todo, todo meu ser – sem nenhuma crítica, sem o menor esforço de minha parte – esta é a intenção final de todo esforço erótico. Dessa forma, entende que as fases do desenvolvimento das relações de objeto tem um viés cultural e não biológico (exceto a relação oral que é observada de forma universal). Acredita que se as crianças fossem cuidadas com mais atenção e sinceridade elas não teriam que passar pelas complicadas formas descritas como relações objetais pré-genitais. Entendendo o narcisismo e o amor objetal ativo como formas secundárias de relação objetal, as formas do amor pré-genital ganham outro sentido. Não podem mais ser explicadas biologicamente, mas devem ser consideradas artefatos, sendo a sociedade, os indivíduos que educam, responsáveis por eles. O amor genital é produto da civilização e portanto deve ser aprendido, muitas vezes dolorosamente. Cabe ressaltar a diferença entre amor genital e gratificação genital. A pessoa pode ser capaz de gratificação genital e incapaz de amar, assim como pessoas podem amar mesmo tendo saído da possibilidade da gratificação genital, na velhice por exemplo.

Para Balint, portanto, o desenvolvimento das relações de objeto tem sido entendidas como concomitantes ao desenvolvimento instintivo, seguindo uma linha predeterminada biologicamente. Sua visão, entretanto, é que esses dois desenvolvimentos são, ainda que interligados, diferentes processos. As diferentes relações de objeto não se sucedem de acordo com condições biológicas, mas devem ser concebidas como reações às influências atuais do mundo de objetos – acima de tudo, dos métodos de educação.

Essa visão sublinha a importância do ambiente na constituição das relações de objeto.