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3 DONALD WINNICOTT REGRESSÃO À DEPENDÊNCIA E A

3.1 UM CASO CLÍNICO

“Ela se sentia completamente insatisfeita, como se buscasse encontrar a si

mesma, sem nenhum sucesso” (WINNICOTT, 1949, pág. 249). À regressão da paciente a um certo estágio muito primitivo segue-se “um movimento em direção a uma nova existência como uma pessoa real que se sente real” (opus cit., pág.252).

Os dois trechos citados pertencem respectivamente ao início e ao fim de uma ilustração clínica de Winnicott presente no artigo “Mind and its relation to the psyche-soma”. Temos dois momentos: o primeiro, em que há uma sensação de desencontro de si, na impossibilidade de uma vida real; o segundo, em que encontramos uma pessoa real que se sente real. O que possibilitou tal modificação?

No artigo encontramos a descrição da regressão vivida pela paciente, como a jornada do falso self em busca do self verdadeiro. Foi necessário que a paciente pudesse nascer novamente, várias vezes, para atingir o ponto de não conhecimento, o vazio a partir do qual pudesse começar sua vida real. Segundo Winnicott “a paciente alcançou, aos 47 anos, o estado no qual o funcionamento fisiológico em geral constitui o viver. A elaboração psíquica deste pôde fluir” (WINNICOTT, 1949, pág.251, tradução minha). A esta afirmação segue-se uma explicação geral: “Esta elaboração psíquica do funcionamento fisiológico é muito diferente do trabalho intelectual que tão facilmente torna-se uma coisa em si e um lugar falso onde a psique pode alojar-se” (opus cit.). Nesse caso encontramos uma pessoa que desenvolveu sua mente descolada do psicossoma. Segundo Winnicott, este funcionamento mental descolado do psicossoma se desenvolve para cumprir a função de um ambiente que não se adaptou às necessidades desse psicossoma, em seu desenvolvimento primitivo. A não adaptação do ambiente às necessidades do bebê impõe diferença em um momento em que ela ainda não há, ou seja, num momento em que a experiência do bebê é de indiferenciação com o meio. Assim, resta ao bebê reagir ao ambiente, antes de diferenciar-se dele. Essas reações introduzem descontinuidades na unidade de ser-com-o-ambiente do bebê. Para lidar com elas, a atividade mental entra em cena, marcando exatamente o que está acontecendo. Esta “catalogação” de acontecimentos constitui funcionamento mental que encobre o psicossoma na sua continuidade de ser que constitui o self.

Podemos pensar que como esse processo se dá antes de uma integração do self - antes que os fragmentos sensíveis do mundo se articulem numa perspectiva de um eu integrado num corpo no tempo e no espaço, dotado de permanência - essas marcas não entram na história. Não podem ser lembradas, elaboradas ou simbolizadas, por que não foram experimentadas. Habitam fora do tempo e de qualquer lugar, constituindo-se em “um fato que se carrega consigo, escondido no inconsciente”(WINNICOTT, 1963, pág.73). Recorrendo a este outro artigo de Winnicott de 1963 “O Medo do Colapso” entendemos que neste contexto especial

(...)o inconsciente quer dizer que a integração do ego não é capaz de abranger algo. O ego é imaturo demais para reunir todos os fenômenos dentro da área da onipotência pessoal.(...)A experiência original da agonia primitiva não pode cair no passado a menos que o ego possa primeiro reuni-la dentro de sua própria e atual experiência temporal e do controle onipotente agora. Em outras palavras, o paciente tem de continuar procurando o detalhe passado que ainda

não foi experienciado, e esta busca assume a forma de uma procura deste

detalhe no futuro (opus cit., grifos do autor).

Considerando o “colapso”, entendemos que há um impedimento para que se atravesse satisfatoriamente as tarefas do desenvolvimento primitivo. Os processos de integração, personalização e realização ficam comprometidos traduzindo-se na experiência de um indivíduo que vive sua vida sem sentido. Sem sentido de unidade de sua experiência fragmentada, sem sentir que vive em seu próprio corpo, sem sentir que o mundo é real. Esta era a experiência da paciente.

Acompanhando a regressão dessa paciente, Winnicott observou que o processo de nascimento era revivido sendo, em cada ocasião, escolhida uma reação importante específica às características externas do processo para a experimentação. Esta é a compreensão do autor acerca das “atuações” (acting out) – uma de suas funções principais é constituir-se em via pela qual o paciente pode ter acesso a essas marcas: “Pelo acting out a paciente se dava conta da parte da realidade psíquica que foi difícil de incorporar naquele momento, mas a que a paciente precisou estar atenta de maneira tão aguda” (WINNICOTT, 1949, p.249, tradução minha). É atualmente que essas marcas podem se tornar experiência e ganhar destino. Isso é apontado em “O Medo do Colapso”:

O paciente precisa “lembrar” isto, mas não é possível lembrar algo que ainda não aconteceu, e esta coisa do passado não aconteceu ainda, porque o paciente

não estava lá para que ela lhe acontecesse. A única maneira de “lembrar”, nesse caso, é o paciente experienciar esta coisa passada pela primeira vez no presente, ou seja, na transferência. Esta coisa passada e futura torna-se então uma questão do aqui e agora, e é experienciada pelo paciente pela primeira vez. É este o equivalente do lembrar, e tal desfecho constitui o equivalente do levantamento da repressão que ocorre na análise do paciente psiconeurótico (análise freudiana clássica) (WINNICOTT, 1963, p.74).

Nesse sentido, podemos compreender a importância da dimensão da experiência não-verbal no trabalho clínico com pacientes desse tipo, para o autor. Atuar significa uma ação dramática que pode dar notícias à paciente de uma realidade psíquica necessária para ancorar marcas vividas em experiências reais. Para nos debruçarmos nesse processo, citarei um trecho que imagino ser importante para essa reflexão, pois nele Winnicott lista algumas formas de acting out significantes ao processo da paciente:

As mudanças na respiração são revisitadas, nos mais finos detalhes. As compressões passando pelo corpo são revividas e então relembradas. O nascimento do fantasiado interior do útero da mãe, que era uma pessoa depressiva, não relaxada.

A transição da não alimentação para alimentação no seio e depois para a mamadeira.

O mesmo, com a adição de que a paciente tinha sugado o polegar no útero e, ao vir ao mundo, tinha que manter o punho em relação ao seio ou mamadeira, fazendo assim a continuidade entre relacionamento objetal dentro e fora. A experiência intensa de pressão na cabeça e também o horror da liberação dessa pressão; fase durante a qual, a menos que sua cabeça fosse sustentada, ela não poderia ter suportado a realização.

Nesta análise, muito ainda não foi entendido sobre as funções da bexiga afetada pelo processo de nascimento.

A mudança da pressão ao redor (que pertence ao estado intra-uterino) à pressão de baixo (que pertence ao estado extra-uterino). Pressão, se não excessiva, significa amor. Após o nascimento, portanto, ela era amada apenas pelo lado de baixo, e a menos que virada periodicamente ficava confusa.(WINNICOTT, 1949, p.249/250, tradução minha)

Nessa passagem temos a dimensão de como a experiência corporal vai sendo elaborada constituindo sentidos. É interessante observar como os sentidos vão nascendo na experiência corporal e podemos, então, começar a vislumbrar o sentido da afirmação que o autor faz no início do mesmo artigo: “a palavra psique aqui significa a elaboração

imaginativa de partes, sentimentos e funções somáticas, ou seja, da vivência física” (opus cit., p.244, grifos do autor). Afirma também que apesar dessa elaboração imaginativa

depender do funcionamento saudável do cérebro ela não é sentida pelo indivíduo como estando localizada no cérebro ou em qualquer lugar. Os aspectos psíquicos e somáticos

da pessoa em crescimento vão compondo gradualmente um processo de mútua inter-relação que constitui o psicossoma. “Num estágio posterior o corpo vivo, com seus limites, com um interior e um exterior, é sentido pelo indivíduo constituir o cerne para o self imaginativo” (WINNICOTT, 1949, pág. 244, tradução minha).

No caso da paciente em discussão, sentir-se como situada em sua cabeça traduzia a equação do falso self e de sua mente. Este aspecto conduziu-a, no processo de realização, a pior fase. Winnicott descreve as ansiedades da paciente de ter a cabeça esmagada. Explica que enquanto a paciente se identificava com o falso self a ansiedade do esmagamento era controlada, mas ao longo do processo significou risco de suicídio, caso fosse atuada fora da transferência. Mas o processo continuou, sendo que a paciente existia ao esmagar pedras ou o que tivesse presente na sala de análise, disso decorrendo a “destruição” de sua cabeça (incluindo mente e falso self) que perdeu significado para a paciente como parte do self.

Essa destruição da mente significou o estado de aceitação do não conhecimento, produzindo uma experiência de tremendo alívio. O saber foi transformado em saber do analista que consistia em “comportar-se de forma confiável em adaptação ativa às necessidades da paciente” (opus cit., pág.250). A paciente ao “perder a cabeça”, no sentido de abandonar a ilusão de um aparato psíquico separado de seu corpo como um todo, ganhou acesso a seu esquema corporal em sua solidez e realidade. Com isso a análise viveu uma fase temporária em que a respiração de seu corpo era tudo. Ela pôde aceitar a condição de não saber, porque o analista a sustentou, mantendo a continuidade por sua própria respiração (do analista). Winnicott afirma que de sua parte o processo vigorou por ele poder ver e ouvir seu ventre movendo enquanto ela respirava, anunciando que ela estava viva. Como já dissemos no início, a paciente pôde então se mover na direção de uma nova existência como um indivíduo real que se sente real, estando preparada para localizar a psique em qualquer parte do corpo onde haja vida.

Acompanhamos o processo de nascimento da paciente no setting analítico, a partir de uma regressão a estágios primitivos de seu desenvolvimento. Nesse caso, o processo de regressão da paciente foi o meio pelo qual o trabalho analítico se realizou. A compreensão do analista acerca das atuações da paciente, permitiu que essas ações funcionassem como instauradoras de experiência, no lugar de reações a falhas

traumáticas. Para entender melhor esse processo, vamos procurar destrinchar as concepções do autor sobre o fenômeno da regressão.