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A morte do crítico tem sido erroneamente creditada – e incorri neste equí- voco por anos – ao fortalecimento dos estudos universitários de extração norte-americana2. Pensei sempre a partir da oposição entre o modelo francês,

o dos rodapés mais abertos, e o modelo norte-americano, o da especialização do discurso crítico, com propensão para as discussões fechadas.

Entendo hoje que a crítica mais teórica, mais laboratorial, é efeito de um impasse próprio do processo de multiplicação de textos e produtores culturais que se intensifica a partir da II Guerra Mundial – talvez seja possível tomar este momento como marco da integração planetária, quando todos se senti- ram irmanados pelas disputas de dois grandes blocos de países, e eram infor- mados em “tempo real” pelo rádio. O modelo de rodapé, em que se previa a existência de críticos responsáveis pela leitura de “toda” a produção válida de um determinado momento e/ou lugar, se torna impraticável com o acréscimo desenfreado de novos autores.

O rodapé tinha como base a sismografia crítica, procedimento pertencen- te a um panorama cultural minimamente centralizado, com uma produção que oferecia garantias canônicas, em termos de idiomas (os ditos civiliza- dos) e de produtores (a alta literatura). Este ideal de cultura sofre sucessivos 2 Para um melhor conhecimento deste processo de substituição de modelos críticos, ver o ensaio de João

questionamentos no século XX, que vai agregando outras línguas e outras latitudes ao cânone principal, a ponto de torná-lo um conceito impossível. Ocorre uma explosão de obras principalmente a partir dos anos de 1950, com crescente preocupação em contemplar a multiplicidade de vozes e for- matos textuais.

Não são, portanto, apenas novos atores do campo restrito da literatura que entram em cena, mas também novas modalidades de pensamento que passam a dominar as humanidades: psicologia, filosofia, linguística, comunicação, antro- pologia etc. O mestre da crítica, aquele homem de letras dedicado a compreen- der o fenômeno literário dentro das regras próprias da literatura, e sempre tendo como parâmetro um cânone mais ou menos fixo, ou com uma modificação lenta, se inviabiliza por não dar conta da variedade e da rapidez das ofertas.

Neste horizonte, ganham relevância as especialidades universitárias, com seus pesquisadores atuando, de forma compartimentada ou a partir de rela- ções geralmente entre duas áreas, sobre pequenas parcelas de um todo cada vez mais polifônico.

O próprio consumo de literatura se democratiza com a onda das tradu- ções, determinando um novo perfil de leitor, o do monoglota que pode tran- sitar pela produção mundial, clássica e contemporânea, periférica ou central. Maior número de traduções gera uma demanda de mercado para comentários críticos, surgindo entre nós a figura do resenhista eventual – escritor, jorna- lista ou professor – que comenta de forma isolada obras ou autores de seu agrado. Dessa forma, pode-se afirmar que os estudos universitários e as rese- nhas jornalísticas são decorrência do processo de ampliação do espectro dos produtores culturais, e que foi este movimento que nos conduziu ao fim da era dos mestres da crítica. Com tanta oferta, e não havendo mais um cânone, por mais que alguns críticos tenham tentado voltar a ele – lembro aqui o es- forço de Harold Bloom3 – a crítica passa a ser uma prática tão fragmentada

quanto a produção.

3 BLOOM, Harold. O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de

Podemos, portanto, concluir que a crítica de rodapé se inviabiliza diante da impossibilidade de acompanhar a produção cultural da modernidade, e agora da pós-modernidade, e não por uma ação predatória da universidade sobre ela, embora o prestígio crescente dos estudos universitários sempre atue para minimizar a importância dessas avaliações mais transitivas. Não é correto, penso eu hoje, culpar a universidade, e seu método de compartimentação, pelo fim da crítica de rodapé.

Esquizofrenia

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Se a multiplicidade se fez a principal marca do pensamento contemporâ- neo, as esferas tradicionais de recepção vivem a nostalgia da alta literatura. Seja no âmbito do mercado ou do pensamento universitário, há a necessidade de se fazerem escolhas por conta da falta crônica de espaço. Ou seja, num cur- so de graduação ou de pós-graduação, nas definições dos temas e autores para pesquisa, a universidade, por mais multicultural que seja, acaba priorizando autores, idiomas ou temas, o que a leva a um processo seletivo similar ao dos meios de comunicação. As preferências da universidade apenas não coincidem com as do jornalismo cultural, mais mercantilizado, mas o movimento é o mesmo – optar por alguns entre milhares. Nem a proliferação de faculdades a que fomos submetidos nas últimas décadas mudou isso, pois, se, no jornalis- mo, a opressão do mercado cria uma padronização de nomes, obras e temas, na universidade o financiamento das pesquisas e os convites para eventos e publicação promovem também certa homogeneidade, embora bem menor do que a dos cadernos e revistas literárias.

Uma obsessão é recorrente nesses dois meios: saber quais são os autores ou obras culturalmente válido(a)s, o que desencadeia as incessantes listas dos me- lhores isso ou aquilo ou os rankings de obras do ano, da década, do século, dando ao leitor comum a certeza de poder consumir algo com qualidade e, ao especia- lista universitário, a confirmação de que sua pesquisa está no caminho certo.

As maneiras de operar desses campos de poder se confundem, mesmo quando já não persiste a menor crença num conhecimento centralizado.

Em seu ensaio, “Crítica literária: questões e perspectivas”4, José Luís Jobim

faz uma leitura acertada dos “mestres da crítica”, que ditavam modas cultu- rais reproduzidas na periferia. Depois de uma análise deste modelo, Jobim se pergunta se a força do mercado, sempre preocupada em chegar às massas, não ocupa hoje este lugar de mestre da crítica: “E esta estrutura ‘de massa’ – diz ele – não seria parceira do ‘mestre da crítica’, mencionado por T. S. Eliot, já que se baseia no modelo de muito poucos falando para multidões?”. O mesmo processo também se manifestaria em menor escala, acrescento eu, nas vogas universitárias.

Diante desta abertura dos portos para manifestações culturais as mais di- versas, toda tentativa de coleta seletiva, na ilusão de separar o que tem do que não tem valor, revelará sempre um comportamento esquizofrênico.

Orfandade crítica