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Para a grande maioria dos autores que ficam de fora, ou que ocupam uma posição secundária nesses espaços de consagração – pedestal midiático ou universitário –, resta a zona livre da internet, com sua lógica relacional, nas- cida do eu-leio-você-e-você-me-lê, eu-comento-o-seu-texto-e-você-comenta- -o-meu.

Já na década de 1970, o poeta paranaense Paulo Leminski (1944-1989), que seria guindado à condição de ídolo pop da poesia jovem brasileira, fa- lava na criação de um ecossistema, de uma ecologia5. Os poetas, editores de

revistas artesanais conhecidas como nanicas, estabeleciam redes alternativas de comunicação numa época dominada por uma ideologia repressora. Esta resistência cultural tinha um valor de vanguarda, pois garantia as liberdades negadas pelo sistema.

Nos anos de 1960 entra em cena o escritor como mascate de si mesmo, como alguém que constrói a sua própria imagem, naquele momento dentro 4 Apresentado também no Ciclo “Perspectivas da Crítica”, no dia 23 de agosto de 2011, na ABL. 5 Diz Paulo Leminski em Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica (São Paulo: Editora 34, 1999): “nosso

de um gueto, uma cultura grupal, no corpo a corpo com os seus potenciais leitores. A recepção se dava assim no contato entre poeta e leitor, na troca de revistas e livros que lembrava muito a troca de senhas, de códigos proibidos, uma vez que havia um latente conteúdo questionador neste material de na- tureza autobiográfica, prosaicamente apresentado como poesia. Esta talvez tenha sido a primeira sistematização de uma rede social, ainda de natureza presencial (nos bares e nos happenings) ou semipresencial (quando as obras e as revistas carregadas de vivências dos autores eram enviadas pelo correio). Tal processo fazia uma transposição, para o cenário brasileiro, das leituras públi- cas de poesia e da publicação mimeografada dos beatniks. Lá, a resistência ao mercado. Aqui, à ditadura militar.

A estratégia ecológica é a marca desta geração que furou o bloqueio da mí- dia e o desprezo do pensamento universitário por meio das relações pessoais, dotando o escritor (agora entregue à lógica da mitologia do eu) do poder de formar público, tarefa que antes cabia à crítica, jornalística ou universitária. Talvez esta seja a expressão mais literal de uma crítica viva porque feita ao vivo pelos autores.

Usando publicitariamente a própria biografia e seu potencial verbal (fic- cional e estético), o escritor se descobre um agente cultural com espaço no mundo contemporâneo. O que outrora se dava como resistência, um contato direto com o público, sem mediação, no agora da internet virou um caminho para a profissionalização, atribuindo um valor-mercadoria à biografia do es- critor.

As festas literárias, as feiras de livros, as oficinas, as semanas de literatura, as visitas a escolas e instituições públicas e privadas, enfim, a grande agenda nacional de eventos que cobre todo o país, de pequenos municípios a grandes centros, colocou o escritor em contato permanente com a massa leitora, fo- mentando uma crítica endógena, pois além de escrever os seus livros deve ele avaliar a própria produção, em viva voz e por escrito, e também tratar da obra de seus pares mais próximos.

Neste processo, os espaços de publicação on-line (blogs, twitters etc.) funcio- nam como réplicas dos encontros, reforçando a rede de relações.

Na atualidade, esta é a maior área de manifestação da crítica, um continen- te em que foi suspenso o rigor de avaliações que se querem isentas, embora na verdade sejam apenas idiossincraticamente seletivas. Esta crítica ecológica, para continuar dentro do termo anteriormente proposto, não faz questão de disfarçar o seu comprometimento. O escritor, falando de sua própria obra ou da de seus confrades, busca legar-se e legar aos seus um público, dentro da estratégia imediatista que tem marcado a cultura contemporânea, e que Paulo Leminski tão bem resumiu: “Talvez não haja mais tempo para a glória. Só para o sucesso”6. Um sucesso que se busca a todo preço e o mais rápido

possível, usando todo um aparato crítico em prol da construção da mitologia pessoal.

Falação

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Como força viva submetida aos mecanismos da sociedade do turismo con- sumista e do culto do eu, estas análises mitificadoras da própria obra ou da dos parceiros – tão comuns nos encontros literários e nos blogs – contamina- ram boa parte do jornalismo cultural, carente de um corpo de colaboradores que possa dar conta da imensa produção contemporânea.

Tudo começa com a filtragem, a escolha do autor que deve ser objeto de distinção midiática, uma responsabilidade a cargo principalmente de profis- sionais da edição, que detêm agora um poder quase absoluto sobre o que pode ou não ser divulgado como boa literatura. Eles ocupam assim o vácuo deixado pelos mestres da crítica, mas sem a formação e a preocupação cultural desta figura obsoleta.

Modismos, amizades (a lógica relacional se manifesta também aqui, mas de forma velada), ganchos jornalísticos, prestígio universitário e outros fatores extraliterários funcionam como critério.

Eleitos os livros que serão comentados, resta encontrar quem possa fa- lar sobre eles. Num grande número de vezes, quem vai falar é o próprio 6 LEMINSKI, Paulo. Ensaios e anseios crípticos. Campinas: Editora da Unicamp, 2011, p. 303.

autor, convocado a explicar suas intenções. A entrevista se tornou, portanto, o grande instrumento jornalístico de divulgação de lançamentos. Com isso, transferiu-se para o autor a responsabilidade de pensar a sua produção, ou, no mínimo, de revelar entradas para a obra. Nem melhores nem piores do que outras opiniões e chaves de leitura, esses depoimentos servem como reflexões acaloradas sobre o fazer literário e fortalecem as teorias do eu. Com a perda de centralidade da literatura no debate cultural, cabe ao escritor falar e falar sobre ela, na esperança de contagiar outras pessoas.

Este falatório todo desempenha, mesmo que com uma boa dose de narci- sismo, uma função formadora. Não se pode, pois, negar que se trate de uma instância crítica legítima, fortalecida pela retração tanto da crítica jornalística quanto da universitária. Se os métodos de filtragem são os mais diversos, a avaliação do livro feita pelo próprio autor constitui parte de um processo maior de entronização do literário.

Nesta cadeia autopromocional, a internet é sempre o principal campo. An- tes de ser muito lido, o escritor tem que falar e ficar falado, num percurso de consagração em que a crítica não se diferencia muito do boato.

Heroicização do escritor