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Leitores ou escritores? Ȅ

A internet é um campo totalmente dominado pelos emissores. Talvez a maior mudança que ela tenha operado em nossas relações com a escrita tenha sido a da indiferenciação entre emissor e receptor, autor e leitor.

Dono de um pequeno nicho de expressão, o internauta assume um papel ativo na escrita. Os blogs permitem o que Foucault, em 1983, chamou de es- crita de si. Estes “cadernos de páginas infinitas” podem funcionar como uma antologia de textos alheios, réplica da caderneta de anotações em que o eu vai colecionando frases, poemas, contos, crônicas, fotos, charges, num processo de apropriação do outro por meio da sua fixação num espaço nominal, den- tro de um conjunto textual que o representa. Usando as palavras de Foucault sobre os antigos cadernos de nota, os blogs constituem “uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas”8. Estes espaços de escrita não são secre-

tos como no passado; ao contrário, busca-se a máxima visibilidade, levando o leitor a interagir, a somar-se.

Paralelamente a esta coleção de textos alheios, o internauta apresenta a sua própria escrita – contos, poemas, aforismos, crônicas etc. –, num exercício que pode ir da mediocridade ao vanguardismo. Nos blogs, mesmo naqueles que não se assumem como literários, haverá sempre uma tentativa autoral, em que o eu se reconhece como uma voz e uma escrita. Assim, é comum encontrar uma indefinição entre o texto do eu e do outro, já que estas fronteiras não são respeitadas na hora da postagem. Tudo cabe no blog, que é uma espécie de ter- reno baldio em que se aceita entulho. Ali, a reprodução de outros textos e os escritos pessoais postados compõem um “romance” que está sendo escrito e lido dia a dia, numa narrativa em tempo real, com a possibilidade de inclusão de comentários. É uma escrita altamente coletiva – tanto do ponto de vista do estilo quanto do material e da interação.

Neste espaço aberto, entram as avaliações de obras literárias, de filmes e de outros produtos. O internauta quer se representar por meio de seu 8 FOUCAULT, Michel. “A escrita de si”. In: O que é um autor? 7.ª edição, tradução de António Fernando

consumo de bens culturais, e desempenha um papel analítico, recomen- dando ou não leituras, postando outros comentários, fomentado o debate no âmbito de seu meio ambiente virtual. Quem cultiva blogs se vê como um leitor criativo e crítico, revelando-se com um rosto (ficcional ou real), hábitos explicitados e um perfil intelectual implícito no que lê ou no que transcreve.

Dando poder ao anônimo, a internet permitiu que todo leitor fosse tam- bém um escritor: mesmo aquele que não sonha em editar um livro, e a maioria sonha com isso, passa a ser “alguém que escreve”. Neste universo relacional, os leitores/autores estabelecem um contato com os escritores propriamente ditos, aqueles já socialmente consagrados, participando do grupo como se- guidores. Tal vinculação cria para o escritor uma obrigação que está implícita no código de uso da rede: a de ler os seus seguidores. Dessa forma, o escritor se faz leitor de seus leitores, reproduzindo textos e opiniões críticas, numa inversão dos papéis tradicionais de emissor de um lado, receptor de outro. Os emissores são também receptores; e vice-versa.

Tal indistinção horizontaliza as relações na estrutura do ecossistema. O conceito de comunidade, tão caro aos jovens dos anos 1960 e 1970, tem aqui uma versão virtual. Vive-se em múltiplas comunidades, dominadas por escritores e voltadas ao culto da leitura e da escrita, com o dispositivo de po- der sair delas diante da menor contrariedade.

É no âmbito desses nichos que acontece hoje boa parte da crítica literária, das indicações de leitura, das análises dos lançamentos e também dos lincha- mentos públicos de artistas. Qualquer escritor que acompanhe a recepção de sua obra vai notar que, a cada novo título, cresce o número de “matérias” produzidas especialmente para o espaço on-line. A repercussão editorial hoje está vinculada aos sites e aos blogs, aos leitores que exercem essa nanocrítica, de caráter altamente impressionista, ressuscitando, dessa forma, o velho modelo do rodapé.

O que boa parte destes leitores faz em termos de avaliação dos livros cor- responde ao conceito de crítica que tinha Alceu Amoroso Lima, que foi, no seu tempo, o grande oficial desta profissão. Para ele, crítica era a “visão da

vida através das obras alheias e, simultaneamente, uma concepção das obras alheias através da vida”9, tarefa exercida na era da internet não por uma figura

intelectual em destaque, mas pelos milhares de leitores semianônimos que ocupam os blogs e que mantêm uma relação vital – e não profissional – com as obras. É principalmente aí que reside a crítica literária hoje, não importa se com fragilidades teóricas, com incapacidade de desencadear grandes repercus- sões, com limitações de autonomia avaliadora ou mesmo com uma queda para a negação agressiva do outro. É esta a grande – em extensão – manifestação crítica de um momento em que o autor contemporâneo – apenas mais um na multidão – tem dificuldade de chegar aos espaços consagradores. Hoje, é possível manter uma carreira literária ativa contando apenas com a recepção nos espaços virtuais, o que demonstra – independentemente da questão qua- litativa – as potencialidades da rede social e seu poder de furar os bloqueios da mídia e da seleção de espécies do ensaísmo universitário.

Murmúrio